III
Se havia algo de temeroso na vida eram os dias nublados e o azedo no coração que lhes acompanhava como um acólito silencioso, meio gordo e com manchas de vinho na toga, um sacristão bêbado é coisa que só os mais fortes podem aguentar dentro de si. Lépido não podia ser Romão, e o era ainda menos vivendo tão cercado de amor por todos os lados e arrumando seus pequenos prazeres. Ele tinha mais o que enfrentar. Começara a tomar aulas com dona Lourdes, pela luz da manhã ao declínio da mesma e decorava fórmulas históricas, crônicas matemáticas, ciências e alguma metafísica, animado pelo medo puramente físico da palmatória da matriarca. Diga-se que era física e se insisto é por uma boa razão, não haveria como não ter pelo menos respeito e gratidão para com aquela idosa que os recolhera das fossas mais nojentas das ruas e cantos piores de Garaba para lhes restituir algo de dignidade natural. Ela era amada por essas crianças e as amava, o que não a impedia de lhes usar para certos fins que não convém repetir, como não impedia os diabretes de lhes roubar jóias e vender nos becos escuros, contrabandear bebidas e cigarros às escondidas se utilizando da despensa da casa, de frequentar as garotas da casa, e nesse último caso as meninas não ficavam excluídas.
Romão não deixava de pensar com seu sangue em Piedade e rememorar a sensação também física de pântano que supunha ser a forma mais mística de amor e os traços de brejo deixados em si, mas ao se encontrar com ela, esta lhe deixava não mais que um beijo casto no rosto e ele lhe respondia com uma aversão insuportável, um estremecimento incontrolável e um gelo inesperado na virilha. Um ventre gelado é coisa horrível que ocorre a um homem apaixonado, está a levar a ele a prova de que amar não tem nada a ver com puro instinto simplesmente, mas ao mesmo tempo deixa ao homem dúvida sobre quem reina ali, se Deus ou Satanás. Nada é muito certo nesse vale de lágrimas.
Enquanto isso as coisas começavam a esquentar fora do casarão de madame Lourdes, conforme seus filhos iam dando o ar de sua desgraça pelo povoado. Dessa vez foi encontrada na cama de Macário Gonçalves, em uma água-furtada mais escondida que as economias do velho quitandeiro, uma menina. Em meio ao poço de sangue e vísceras moles que conspurcavam um leito já imundo em um quarto imundo localizado em uma rua imunda, se podia identificar mal e mal as feições descarnadas de olhos vidrados e faces inchadas da pequerrucha Adelaide Sá-Maria da Silva, filha do Silva, um dos chefes da Associação dos Proletários Unidos, os zangões. O Silva liderara já vários assaltos às instalações da fábrica e arranjara violentos piquetes que se transformaram nos episódios mais sangrentos da história garabaiesa, como o degolamento de cinco capangas do velho Salgado, realizados pelas próprias mãos do terrorista-mor, dotado de uma musculatura blasfêmica e de um vigor homérico além de uma fúria satânica e um ativismo político deveras cristão. Possuía fama titânica e era temido por todos e respeitado pelos demais zangões. Cabe acrescentar que se cria que a menina fora violada antes de ser picada de forma quase esquartéjica por uma profusão de punhais vorazes e apaixonados, movidos certamente por uma mão só.
- Vai dar merda. – disse o comissário Dutra, ao observar aquela cena.
O homem mal podia imaginar o sentido profético daquelas suas palavras, ele que dizia pouco e pausadamente. Cumpre notar que o comissário e seus guardinhas eram zangões subalternos escolhidos para policiar o povoado, prevenir os crimes e prender os trombadinhas em geral, se fazendo de cegos às traquinagens mais violentas das crianças de Lourdes. Dito isso, digamos também que a obra de arte sangrenta e violatória fora um dos trabalhos mais requintados de Macário Gonçalves, o filho caçula de dona Lourdes e tramoiento rapaz, de olhos verdes e intenções desconfiáveis ao se dar por infiltrado na casa do ínclito Silva com fins de cortejamento inquestionáveis e totalmente questionáveis no conjunto e na essência.
A obra lenta e de refinamento estético insigne na verdade apenas se esboçava nos olhares longos e ardentes do jovem Macário para a pequena Adelaide nas saídas ocasionais para a missa na cidade e nas idas aos mercados e à quitanda para sua mãe. Os olhares, inicialmente solitários, começaram a se acostumar a serem olhados de volta, a serem acompanhados por pequenos e curtos raios de luz de retorno e cumpre dizer que o retorno era morno mas foi se amiudando e se aquecendo. Há muito que se dizer sobre o lento cozinhamento do olhar pelo fogo de olhares apaixonados. Só o que posso dizer também é que não é preciso muito esforço para se passar dos olhares para a mui conhecida valsa do corpo caminhante e gestual, culminando nas mãos que se juntam, nas mãos que escrevem cartas onde é visível o sentimento fervido, até a erupção abrasante de braços que se tocam, se enroscam, se tateiam com as pontas dos dedos e as palmas e a vermelhidão nas faces, e a noção, perigosíssima, de que certas carícias são interditas aos olhos das demais pessoas. Certo moralista diria que toda clandestinidade no sentimento é prenúncio de tragédia.
Não sei se há de ser sempre assim, sei, porém, e de fonte segura, que os encontros privados entre os dois amantes nunca foram tão privados como estes desejavam visto que a particularidade de seu amor era a de se tornarem um abalo sísmico que transtornava as estruturas do mundo, abalava as paredes de madeira do barracão de ferramentas do velho Ananias, recanto de seus contínuos e exaustivos pecados, abalava a morosidade sonora da comum algazarra dos pássaros de várias cores e tipos que adornavam a vila como adornavam aquele antro por onde escorria o sangue virginal de Adelaide, sangue que continuaria a escorrer ainda por vários dias, enchendo o solo duro e seco de uma umidade lúgubre e excitante, que fez germinar gramíneas e pequenas flores vermelhas e que ninguém conseguia identificar a origem e o nome mesmo pelos jardineiros da Casa Lourdes. As flores se espalharam por todo o solo do povoado, por todo seu chão de terra, pelas casas, nas paredes e caibros, nas portas e nos vidros das janelas, espalhavam-se incontrolavelmente pelos chãos das residências e nas latrinas, enchendo os poços de merda de uma fragrância equívoca e desconfiada e, no entanto, doce, como preenchiam outros pontos das casas com seu cheiro e uma gradual destruição das estruturas humanas que faziam pressupor o fim do mundo e sugeriam temas propícios a sermões de pregadores, se estesp or acaso ali existissem. Na falta deles, as senhoras se fartavam de admoestar umas às outras e às filhas e netas para não destruírem a terra com o pecado das carnes esfogueadas.
O abalo também ia além do som, do sangue e dos estremeções, conta-se que estes coincidiam com um tremor de pernas nas moças do povoado, com um sanguinolice em seus ventres e uma vontade irresistível destas irem esfregar as coxas em algum lugar, em postes, vigas de suas casas, pedaços de madeira e tacos toscos de bilhar, embora com isso jamais ficando satisfeitas e tentando se consolar com leques, substituindo os vestidos paramentados por camisolas e vivendo em dias mais quentes que realmente eram sem roupas íntimas e dormindo nuas enquanto os rapazes passavam dias insuportáveis de suadouros inexplicáveis, dores inferiores agudas, olhos vidrados e pensamentos jamais fixos em alguma coisa, obcecados por alguém ou alguma coisa que não se sabia o que era, se esquecendo de seus ofícios e indo varar suas noites em oceanos de suor dentre as pernas incandescentes e magmáticas das moças de dona Lourdes que nessa época não se deixavam ficavam na casa apenas mas vagavam pelo povoado, nuas em pelo, desvairadas, perdidas,com olhos e cabelos desalinhados de dar dó, e de dar mais coisas. As coisas estavam nesse pé e as mães não as conseguiram resolver por estarem igualmente prostradas e envergonhadas demais para ir buscar no antro de putas da vaca velha da Lourdes’ embora indo se aliviard o calor, de uma forma ou de outra. O uso de surras constantes, palmatórias e chicotes, posto que freqüente e abundante, não resolvia o problema ainda que o aliviasse, fazendo as pobres crianças ansiarem por mais cacetes e pedindo, em lágrimas luxurientas, que se batesse aqui, ali e acolá para equilibrar as ardências, e gemiam de forma nada penitencial com as porradas que levavam nas coxas, braços, costas, e faces, lambendo com gozo seus próprios fluidos corporais, o sangue etc.
Nesse estado caótico de frenesi vadio e indecente, em que Romão observava a vida se desmantelando em um inferno delicioso que não lhe deixava em paz, presenciou quando certos munícipes de saco cheio de viverem com o saco cheio em dor polvorosa, suspeitaram das ausências misteriosas e cada vez mais longas de Adelaide e da falta dos distúrbios de bebedeira freqüentes do jovem Macário e somando dois mais dois, tentaram principiar por pôr ordem nas coisas tentando resolver aquele mistério. Mas chegaram tarde.
As ardências que assolavam o povoado eram apenas um reflexo fantasmagórico do abismo de amor em que se havia transformado o cubículo de madeira. Imaginemos que as trocas de contato entre as pontas dos dedos se transportaram aos dedos dos pés, que os contatos das palmas dos pés e das mãos se deram parte a parte ao consórcio das coxas e braços e pernas, que esse monstro alucinado de mil braços e pernas se deram um ao outro ao cabo de várias semanas, atos divididos em cenas de horas e mais horas de terremotos que envergonhavam e orgulhavam céus e purgatórios, de tapetes estragados e lençóis encharcados de suor menos que do sangue virginal gorgolejante da moça, entre arquejos demoníacos, berros estridentes de ursos se estrangulando, gemidos febris e endoidecedores de divindades babilônias. Todo um carnaval lodoso e mesmo asqueroso de desejos contidos antes em olhares amarelos e doentes e em pensamentos guardados para noites quentes onde a mãe ainda cria que a filha se molhava de xixi e não do suco do amor guardado, mordido, remordido e gozado antecipadamente, tudo isso, todo o universo de sensações contraditórias, apaixonadas, de queimações, de sonhos de uma bela face endurecida pelo vício e cheia de cabelos ondulados como a face de Deus, de umas mãos calosas e com alguns pelos loiros e uns braços magros e fortes como os de um touro que lhe envolvia a cintura fina como um dedo, como seu dedo longo que passava por suas costelas que se viam de suas costas nuas e vermelhas, e suadas, um dedo que arrepiava os pelos das costas, da barriga, do sexo e fremia de êxtase ali embaixo, beijada pelo monstro que lhe vinha devorar e explorar com uma curiosidade e uma doçura e uma languidez no beber, no escavar e uma repentina e contínua fúria de mirmidão sedento. Um dedo que passava pelas costas, pela nuca, pelo pescocinho fino, pela boca brilhante, como os lábios que eram sugados pelos seus, engolidos por aquela bocarra gigantesca, por onde escorria o amor mais profundo, mais belo que uma rapariga já provou: o sangue da dinastia dos Gonçalves, o mesmo sangue que percorria suas entranhas, enchia seu ser desse mesmo amor, dessa força musculosa que ganhava vida dentro de si, forte como a vida e, no entanto, se aproximando cada vez mais e mais da morte:
-Me come, filho da puta!
Levando mais e mais a sério os desejos irrefletidos e selvagens da pequena moça que trepa em seu corpo enorme e moreno e de pelos loiros, inclinando-se e se agarrando cada vez mais e mais forte no limite absurdo entre a vida e a morte, imerso na lama mais gostosa desse universo, o rapaz não deixou de lhe preencher naquela última noite, continuou enquanto lhe apertava as coxas e quebrava os braços, enquanto rasgava sua pele com os dentes, enquanto arrancava pedaços de sua carne a dentadas e beliscões animalescos em uma volúpia de sangue, até seu coração parar de bater, continuou metendo até sua cabeça descair, seus lábios embranquecerem, sem perceber que os gritos de prazer eram gritos de dor e que essa dor já não mais gritava, que em vez de gemidos que lhe enlouqueciam só ouviu um último suspiro de satisfação derradeira. Ainda nela amava a sombra de uma vida que não mais existia, ainda se deleitava naquele corpo quebrado, destroçado, rasgado, apertando aquelas pernas finas, sentindo o sexo gelado enquanto ele se aquecia, aquecia, aquecia, até cair da cama, quase inconsciente, mas ainda se esfregando lascivamente nos restos de sangue e tripas soltas em um amor de desastre que abalou o mundo por uns breves segundos da vida de Deus.
Como ter pena de Adelaide Sá-Maria da Silva? A moça viveu toda a curta vida esperando o amor acontecer em meio a bamboleios, febricitações de todo tipo e quando o encontrou, morreu de amor. Não só se saciou da vida do mundo como sua própria vida e até mesmo sua morte foram consumidas pelo homem que foi seu Deus por um curto verão de febre, sem planos, esperanças, futuro. Só amor.
Romão pensava em tudo aquilo quando foi dormir. Não se preocupava com o que aconteceria com Macário, ele já estava morto em vida mesmo, que importava os zangões terem lhe esfaqueado diversas vezes, desfigurado sua existência, arrastado seu cadáver enrolado nos intestinos, sujo, cheio de feridas abertas e tendo sangue até na alma? Ele morrera muito antes disso. Romão se lembrava. Como era querer morrer? Querer não morrendo? Não era entre aquelas pernas que vivia, que sentia a vida exatamente por nunca ter estado tão perto da morte?
Pensava assim, mas levantou-se no meio da noite e foi para o quarto de Piedade. Lá entrou por debaixo dos lençóis, se aninhou entre seus braços, apertou seu peito contra os dela e dormiu, murmurando, enquanto ela acordava:
-Quero dormir aqui coma senhora.
Ela lhe beijou a testa e ambos dormiram, reconciliados com todos os deuses e com o mundo.