Esse é o texto pelo qual tenho exposto minha teoria noutras comunidades tolkienianas; leiam-no novamente, quem já tenha lido, quem sabe isso pode dar uma alavancada novamente na discussão.
A Origem dos Orcs, uma visão alternativa
Um dos grandes mistérios de todos os escritos de Tolkien remete à origem da raça órquica. Afinal de contas, de onde poderia vir uma raça dotada de tanto ódio por todos, até mesmo por seus supostos mestres? O “problema” da origem dos orcs é uma questão muito delicada. É tão delicada que nem mesmo o próprio Tolkien chegou a se definir por uma versão correta e definitiva. Ao menos não deixou nada escrito que determinasse, com certeza, de onde, ao final das contas, vinham os orcs.
A maioria dos leitores mais leigos e mais desinteressados em relação aos escritos do Professor acreditará que os primeiros orcs foram elfos deformados, graças a uma citação que diz que os elfos achavam que os orcs fossem deturpações de prisioneiros elfos, e que, infelizmente, eles não estavam longe da verdade.
Vamos ao trecho em questão:
“ (…) Wolves there were, or creatures that walked in wolf-shapes, and other fell beings of shadow; and among them were the Orcs, who afterwards wrought ruin in Beleriand; but they were yet few and wary, and did but smell out the ways of the land, awaiting the return of their lord. Whence they came, or what they were, the Elves knew not then, thinking them perhaps to be Avari who had become evil and savage in the wild; in which they guessed all to near, it is said.” (The Silmarillion – Chapter 10 – Of The Sindar).
Tradução livre do grifo (tentando manter ao máximo o sentido original): “De onde eles vieram, ou o que eram, os Elfos então não sabiam, pensando que talvez fossem Avari que tinham se tornado maus e selvagens na incivilidade; o que eles adivinharam com proximidade, é dito”.
Agora, vamos aos fatos que refutam essa idéia. A primeira refuta vem numa simples questão de lingüística. Primeiro de tudo, o Silmarillion cita com todas as palavras que essa idéia, de Orcs = Elfos Deformados, era uma idéia na qual acreditavam os elfos; o Silmarillion, simbolicamente, é um livro escrito por elfos; obviamente, portanto, ele conterá o ponto de vista élfico da coisa toda. Segundo, quando é dito que aquilo que os elfos adivinharam era próximo, isso indica que sim, houve elfos no processo para alguma coisa, mas essa mesma expressão automaticamente refuta qualquer certeza empírica de que a realidade fosse tal; ela não significa e nem garante, em nenhum momento, que é aquela a verdade, a realidade. E ainda, eles estavam próximos da verdade, era isso que “era dito”, pois diziam que eles estavam próximos da verdade, mas ninguém garantiu; o que distancia ainda mais a certeza dessa possibilidade, da mera deturpação de elfos.
Para os teimosos que ainda assim insistem nessa citação do Silmarillion, nós podemos então citar, em contraponto, a autoridade máxima na questão: J.R.R. Tolkien. No seu ensaio sobre os Orcs, contido no volume X da coleção History of Middle Earth (HoME) e intitulado Morgoth’s Ring:
“Mas os homens não haviam aparecido ainda, quando os orcs já existiam. Aulë construiu os anões de sua memória da Música; mas Eru não sancionaria o trabalho de Melkor a fim de permitir a independência dos orcs, (a não ser que os orcs fossem ao final remediáveis, ou pudessem ser corrigidos e ‘salvos’?).
Também parece claro que embora Melkor pudesse corromper e arruinar indivíduos completamente, não é possível contemplar sua perversão absoluta de um povo inteiro, ou grupo de pessoas, e sua criação que afirma hereditariedade [Adicionado posteriormente: Este último deve (se um fato) ser um ato de Eru].
Neste caso os elfos, como uma fonte, são muito improváveis. E os orcs são "imortais" no sentido élfico? Ou os trolls? Parece claramente implícito no Senhor dos Anéis que os trolls existiam no seu próprio direito, mas foram ‘consertados’ por Melkor”. (grifo meu).
Neste trecho, o próprio Tolkien já refuta a idéia de elfos sendo deformados como fonte para os orcs.
Durante seus tempos de soberania, Melkor corrompeu muitos espíritos ancestrais para o seu serviço, tenha sido na sua época de majestade ou depois. Alguns desses espíritos eram maiores em poder, como Sauron ou os balrogs, mas certamente havia outros sob o serviço de Morgoth, de menor estatura, mas de mesma essência ancestral; no mesmo ensaio sobre Orcs, Tolkien confirma que esses “Maiar menores” poderiam assumir a forma de orcs e procriar, de forma semelhante como Melian concebeu Lúthien a Thingol:
“Em qualquer caso, é provável ou possível que mesmo os menores dos Maiar tornar-se-iam orcs? Sim: tanto fora de Arda como dentro dela, antes da queda de Utumno. Melkor corrompeu muitos espíritos - alguns grandes, como Sauron, ou menores, como balrogs. Os menores poderiam ter sido primitivos (e muito mais poderosos e perigosos) orcs; mas, por procriar quando encarnados, eles (como Melian) tornar-se-iam cada vez mais ligados a terra, incapazes de retornar ao estado de espírito (mesmo forma demoníaca), até serem libertados pela morte (assassinato), e eles definhariam em força. Quando libertados eles seriam, claro, como Sauron, "condenados": isto é, reduzidos à impotência, infinitamente recessiva: ainda odiando, mas incapazes cada vez mais de fazê-lo fisicamente eficaz. (ou não seria o estado órquico muito definhado de morte um poltergeist?)”.
Entramos aqui, porém, numa nova questão; procriar com quem? Esse talvez fosse o grande “porém” vislumbrado por Melkor para obter uma grande quantidade de exércitos eficientes e ainda zombar dos Filhos de Ilúvatar. É bastante óbvio que dois Maiar encarnados como Orcs não poderiam procriar. A idéia dos Ainur gerando filhos entre si foi abandonada por Tolkien muito tempo antes de ele escrever esse ensaio, logo, tal união não seria possível.
A alternativa inicial viria da obviedade dos fatos: Thingol e Melian, encarnada como elfa, geraram uma elfa de grande poder sub-criativo e completo livre-arbítrio. As primeiras gerações de orcs poderiam vir, portanto, da procriação de Maiar menores encarnados em orcs (ou seres “órquicos”) com elfos cativos, uma procriação obrigada e violenta, ou seja, um estupro.
Mas então, temos uma questão delicada que também envolve diretamente a Origem dos Orcs; Ilúvatar proveria fëar a essas criaturas? Em teoria, as criaturas providas de fëar eram também dotadas do livre-arbítrio, capazes de atuar como quisessem e contra quem quisessem, capacitadas até de questionar o próprio Criador em questão, como vemos no caso da corrupção dos númenorianos por Sauron. Existiam motins e rebeliões entre os orcs, mas eles demonstram tendência inerente ao “mal”, à destruição, e não a uma liberdade misteriosa em todos os sentidos, como garante o fëa dos Filhos de Ilúvatar. Em todos os sentidos, essa tendência demonstra uma inclinação devida ao Morgothismo, pois no seu desdém, Morgoth passou a buscar a destruição de tudo, e sendo Melkor a encarnação do Mal em Arda, a herança das vontades dos orcs seria de Melkor.
“As vontades dos orcs e balrogs etc são parte do poder de Melkor ‘dispersado’. O espírito deles é de ódio. Mas o ódio é não-cooperativo (exceto sob medo direto). Daí as rebeliões, motins, etc., quando Morgoth parecia estar distante. Orcs são feras e balrogs Maiar corrompidos. Também, Morgoth, não Sauron, é a fonte das vontades dos orcs. Sauron é apenas outro (senão maior) agente. Orcs podem rebelar-se contra ele sem perder sua própria fidelidade irremediável ao mal (Morgoth).
(...)
Isto sugere - embora não seja explícito - que os ‘orcs’ eram de origem élfica. Sua origem é tratada mais claramente em outro lugar. Um ponto apenas é certo: Melkor não poderia ‘criar criaturas’ vivas de vontades independentes”.
Como se pode notar com facilidade, Tolkien explica as rebeliões dos orcs por seu “espírito” ser de puro ódio, pois sua vontade era provida pelo poder do próprio Melkor. Essa independência, contudo e de certo modo, demonstra que talvez houvesse uma origem élfica nos orcs.
“A maioria deles claramente (e biologicamente) era corrupções de elfos (e, posteriormente, de homens provavelmente também). Mas sempre entre eles (como servos especiais e espiões de Melkor, e como líderes) deviam haver numerosos espíritos menores corrompidos que assumiram formas corpóreas semelhantes. Estes apresentariam personalidades aterrorizantes e demoníacas”.
Agora, vamos com calma; ter origem em elfos e biologia semelhante não significa que eles sejam elfos deturpados. Aliás, bem da verdade, “elfo deturpado” pode não significar simplesmente a deturpação do indivíduo; um orc não deve ser um elfo que foi deitado numa maca, teve ser corpo deformado e sofreu uma lavagem cerebral. Os primeiros orcs deviam ser criaturas meramente “élficas”, no sentido de que ele teve uma origem em algum elfo, possuindo certos "elementos élficos".
Suponhamos que um Maia menor assumisse uma forma “órquica” e procriasse com um elfo, a criatura resultante não seria nem um elfo e nem um orc propriamente dito, seria uma criatura tão “élfica” quanto “órquica”. Lúthien, por exemplo, só é uma elfa no sentido físico, já que Melian encarnou como elfa para concebê-la, mas ela é mais que simplesmente uma elfa. De modo semelhante com os primeiros orcs; esses “orcs-primitivos”, gerados dessa forma supracitada, seriam espécies de “super-orcs”, na verdade, não tão terríveis quanto seus geradores Maiar encarnados, porém mais fortes que seus descendentes, já que eles possuíam uma herança Maia no sangue muito elevada.
Mas ainda que existissem esse tipo de orcs, frutos do estupro de elfos feito por Maiar encarnados como criaturas órquicas, o próprio Tolkien discorreu que a vontade dos orcs é fruto do poder dispersado de Melkor. No mesmo texto, ele escreve que os orcs provavelmente tinham origem mista:
“Uma vez que Melkor não poderia ‘criar’ espécies independentes, mas tinha imensos poderes de corrupção e distorção daquelas que caíam em seu poder, é provável que estes orcs tivessem uma origem mista”.
O que nos leva a um impasse: como Melkor poderia dispersar seu poder em vontades de uma raça inteira, subservientes enquanto servidoras do Mal, mas suficientemente independentes entre si e entre seu feitor? Evidentemente Melkor não poderia moldar orc por orc para criar todo um exército. É sabido, inclusive, que os Orcs se multiplicaram na ausência de Morgoth, enquanto ele esteve cativo em Aman. Ninguém além de Ilúvatar poderia criar raças totalmente livres, mas os Valar certamente tinham poder para criar “bonecos” subservientes à sua vontade, mas de capacidades biológicas totalmente funcionais. O caso de Aulë e dos anões demonstra isso.
Morgoth era um perversor habilidoso e o senhor das mágicas de crueldade; ele poderia, então, ter moldado algumas criaturas da mescla de inúmeras feras até atingir alguma biologia próxima a dos Filhos de Ilúvatar, tomando como base, talvez, os Maiar encarnados em formas “órquicas”, que eram mais demoníacos e perversos ainda. Essas criaturas meramente “órquicas”, Melkor imbuiu com sua própria vontade, dispersando seu poder, é verdade, mas certificando o ódio nessas criaturas. Então, em toda a baixeza de seu espírito, Morgoth forçou a procriação, a cópula dessas criaturas com elfos cativos, dando início às primeiras e pouco numerosas gerações de orcs, que seriam perversos mas ainda mal desenvolvidos e talvez de vida curta, em razão da dualidade das vontades herdadas de Melkor em pessoa e dos elfos cativos,e também da biologia confusa.
Ainda que tivessem vida curta, contudo, ela era suficiente para que esses “Orcs-Primitivos” copulassem entre si. Desse modo teríamos um amadurecimento da raça e, portanto, seu fortalecimento; suas vontades de puro ódio herdadas de Melkor, e uma estranha independência gerada por esse ódio, mas também por sua herança élfica. Isso não relega a possibilidade da procriação com os Maiar menores encarnados como orcs, e seus herdeiros certamente seriam os mais eminentes e os líderes dos orcs; uma “linhagem nobre” de uma raça decaída. Evidentemente, dado a grande reprodutibilidade da raça dos Homens, eles também seriam usados, mais tarde, nessa grande mestiçagem, garantindo ainda maior velocidade na procriação dos orcs e, talvez, garantindo uma grande variação nas tribos e espécies de orcs.
Concluindo, podemos enumerar as fundações da raça dos Orcs: biologia semelhante a dos Filhos, graças aos elfos e também às criaturas que Melkor teria feito; e também, talvez, aos Maiar encarnados. As vontades dos orcs teriam uma leve herança élfica, arruinada e perturbada, deturpada pela vontade de ódio de Melkor, que ele imbuía naquelas criaturas com quem forçava os elfos a copular; a essência de Melkor sobreviveria dentro dos Orcs. Mesmo os Maiar decaídos têm a vontade de Melkor em si mesmos, por o terem adotado como Senhor Supremo. Essas primeiras gerações de Orcs seriam o que chamamos aqui de “Orcs-Primitivos”, que depois, do cruzamento entre si, começariam a gerar as “versões finais” dos Orcs; os Homens mais tarde seriam, também, usados no aperfeiçoamento da raça dos Orcs. Os Maiar encarnados como orcs, se gerassem descendentes, provavelmente gerariam os líderes dos orcs e a “nobreza” dentro dessa raça arruinada.
Finalizando, era dito que a “criação” da raça dos Orcs fosse um dos feitos mais terríveis de Melkor, e talvez a sua maior afronta a Ilúvatar; esse método mesquinho parece bastante apropriado a alguém da laia de Morgoth Bauglir. Essa alternativa também deixa em aberto, de certo modo, a existência ou não de fëar nos orcs, já que, como Tolkien, essa teoria não garante nem a sua presença e nem a sua ausência, enquanto que a idéia de meros elfos deformados já remete a uma existência de fëar.