Jacques Austerlitz
(Rodrigo)
Ontem à noite sonhei contigo. Eu não sonho contigo desde o tempo em que nós estivemos separados, uns anos atrás. Sonho enlouquecidamente, mas tu nunca aparece. De certa forma, e eu sei que tu entende, na realidade do sonho tu faz parte da minha vida, mas não faz parte da vida que eu vejo. No sonho de ontem eu estava perdido, era de noite, eu seguia por uma rua abandonada, abobadada por árvores, até chegar em uma avenida que era um pouco a Ipiranga e outro pouco a Assis Brasil. Em algum ponto, a avenida já não era nenhuma das duas, era mais como um parque. Eu andava pela avenida, sem saber onde eu estava e sem saber para onde ia. Quando a avenida foi se alargando, tornando parque, eu percebi que eu estava, ali, sim, fundamentalmente perdido. Não havia caminhos, era tudo um espaço aberto, indistinto. Não fazia sentido caminhar, porque não havia para onde ir. Mas eu andava porque eu precisava sair dali. Em um ponto adiante, sob a luz de um poste, eu vi um banco, uma mulher sentada nesse banco. Fui até ela, ela sentada com os ombros curvados, as pernas lado a lado, recatadas, as mãos espalmadas entre os joelhos. Eu perguntava para ela onde nós estávamos, como sair dali. Ela não me respondia, não se mexia, ela sequer piscava, como um manequim. Eu tocava nela, no rosto dela, e eu sentia a pele quente dela, mas ela não se mexia, sequer respirava. Eu lembro dessa sensação, do quão real era tocar na pele dela. Talvez eu estivesse na cama com o braço esticado, tocando o teu rosto, enquanto tu dormia, ou talvez tivesse te acordado, e tu evitasse te mexer, sem saber se o carinho que eu te fazia era consciente ou sonâmbulo. Talvez eu não tenha te tocado, na cama, talvez aquela sensação fosse só algum acesso do meu cérebro a uma lembrança física muito, muito forte, ou antiga, perdida. A mulher do sonho não era tu. Era alguém que eu conhecia, mas não conseguia lembrar. O banco de praça era esverdeado, não sei se de madeira ou de ferro, acho que de madeira. A luz que vinha do poste era baixa, amarela, mas o sonho parecia em preto-e-branco. Sob a luz eu via insetos num ar umidecido de sereno. Não parecia um sonho. A mulher do banco continuava firme, como uma estátua. Eventualmente eu me sentei ao lado dela, e copiei a posição em que ela estava. E foi então que tu apareceu. Tu apareceu antes que eu pudesse te ver no sonho. Tu apareceu quando eu prendi a respiração, mimetizando a postura dela, olhando firme para frente. Tu passou aflita pela minha frente e não me percebeu ali, nem percebeu ela. Eu me forçava a prender a respiração e a não mexer nenhum músculo do meu corpo, não até que tu passasse e sumisse. E tu sumiu. E quando eu percebi, a urgência que tomou conta de mim foi de berrar por ti e de correr atrás de ti. Mas aí eu já não conseguia me mexer, eu já não conseguia piscar, eu já não conseguia respirar. Eventualmente ela, que estava do meu lado, já não estava mais. Eu não a vi saindo, não a vi sumindo. Ela, enquanto eu olhava firme para frente era um vulto periférico, uma impressão, mais uma sensação, e não um corpo, e depois não era mais nada. E eu ali, inerte, eventualmente soube que só me restava esperar, e que se esperar não adiantasse, não me restava mais nada. Mas eu então não tinha mais nenhuma urgência, eu me sentia estranhamente aliviado por estar sentado ali, sozinho, por tu ter passado, ter sumido.