Jorge Leberg
Palavras valem por mil imagens
A Odisséia é atribuída, de acordo com a antiguidade, ao poeta grego Homero. Quase nada se sabe sobre Homero. Supõe-se que tenha vivido no século VIII a.C. em Quios. Segundo a tradição, Homero era cego. Também lhe é imputada a autoria da Ilíada; juntas, Ilíada e Odisséia são os dois grandes poemas épicos da antiguidade ocidental, até hoje duas das maiores obras-primas da literatura universal de todos os tempos, irrefutavelmente. A importância das duas epopéias não só para o campo fundamentalmente artístico-literário, mas igualmente para a filosofia, a psicologia e a antropologia, é sobremodo ímpar. Ainda retornando à autoria dos dois grandes poemas, é imprescindível transcrever os seguintes trechos, os dois primeiros extraídos do breve prefácio explanatório do livro (Editora Cultrix):
A Ilíada e a Odisséia são relatos de narrativas heróicas preexistentes na História e na mitologia grega. O que ocorreu foram as compilações dessas histórias, até então transmitidas oralmente. E não se tem certeza se Homero realmente existiu, sendo seus poemas registrados de forma escrita mais tarde, ou se nunca houve Homero, mas sim vários aedos que cantavam as epopéias, nenhum deles destacando-se em particular. É uma incógnita.
A Ilíada relata a guerra de dez anos pela conquista da cidade de Tróia, guerra esta supostamente suscitada – conforme o mito – pelo rapto de Helena, tida como a mulher mais bela do mundo em sua época. Obviamente que se trata de uma narrativa repleta de fatos mitológicos, e não todos reais. A Odisséia conta as peripécias e desventuras do rei Odisseu – Ulisses em latim – após a Guerra de Tróia. Ele pena dez anos, por mares e terras, antes de finalmente chegar à sua terra natal, Ítaca. Suas aventuras e padecimentos incluem: os lotófagos (comedores de lótus); o ciclope Polifemo; a prisão na ilha da deusa-feiticeira Circe, que transformava homens em porcos; uma descida ao Hades, as terras infernais para onde desciam as sombras dos mortos, antes de irem ao Tártaro, aos Campos Elísios ou por lá mesmo perdurarem – uma definição diferente da mitologia cristã, onde o Inferno é um lugar de tormento eterno aonde serão lançados e subjugados os “iníquos” –; sereias e monstros praticamente inexoráveis como Cila e Caríbdis; além de uma temporada coagida em Ogígia, a ilha da deusa Calipso, que o cobiçava para esposo. Após vencer e passar por tantas atribulações incomensuráveis e tarefas aparentemente inexeqüíveis, Odisseu consegue voltar à sua pátria. E ainda terá de reconquistar seu reino e derrotar uma horda de pretendentes à mão de sua esposa, Penélope, que não só a almejam, porém também dissipam insidiosamente seus bens, desde que não se teve mais notícias dele, muitos o declarando como morto. Simplificando, pode-se afirmar que o itinerário calejado de Odisseu simboliza a própria trajetória humana, e que a força motriz da historia é a busca de um homem pela retomada de uma vida plena e da honra.
A trama da Odisséia é provavelmente conhecida por quase todos, pelo menos em partes. Todos nós já ouvimos falar ou lemos sobre ela, seja na escola, na TV, em livros e revistas, cinema e HQ. Está praticamente no inconsciente coletivo. É da Ilíada e da Odisséia que brotaram arquétipos do herói tão difundidos e, pode-se declarar, venerados, nas páginas da História, na arte, no inconsciente coletivo, em suma – ele de novo. Aquiles é a força bruta, aliada à resistência, que fere e derrota muitos combatentes. Odisseu é a sagacidade, o espírito astuto e capcioso, que dribla a força bruta; além de, várias vezes, submetê-la a seus desígnios. São os dois protótipos de heróis mais idealizados e representados na arte de maneira abrangente, principalmente em livros e esculturas; e mais recentemente – além de largamente –, tendo em mente as artes “jovens”, no cinema, nas HQs e na teledramaturgia (seriados, novelas, etc). É bom salientar que Odisseu não é um herói franzino, parco de dotes físicos; ele possui força muscular e maneja armamentos como ninguém, mas é a solércia sua maior e mais eficaz arma.
E não é apenas nos arquétipos heróicos que consiste a contribuição inegável e contundente da Odisséia nas artes e em outros campos distintos do conhecimento. Os versos da narrativa são autênticos “lavores” finíssimos de estilística; apresentam descrições de teor grandioso e imponente referentes a pessoas, às cidades, aos palácios e aos lugares de modo geral, o que podemos denominar por “realismo grandiloquente”; assim, denotando o típico habito da Grécia Antiga de enaltecer, além de exagerar em termos de beleza e/ou suntuosidade, os ambientes e entes como heróis, nobres, reis e deuses, quando representados pela arte (pintura, escultura, literatura, etc). São características que inspiraram posteriormente outros poemas épicos, como A Divina Comédia, de Dante, Os Lusíadas, de Camões, Paraíso Perdido, de John Milton, dentre outras obras, que buscavam o “polimento” estilístico e o ideal de beleza quase obsessivo - calcado especialmente no extremo equilíbrio das formas físico-corporais – dos padrões greco-romanos.
Não só Odisseu é um exemplar de herói, mas também outros arquétipos figuram na Odisséia, como Penélope, o ideal da mulher-modelo: bela, sensata, inexoravelmente fiel e exibindo-se incólume – mesmo que sofrendo plangente pelo sumiço do marido quando reclusa em seus aposentos. Telêmaco é o filho recém adentrado na “maturidade” do mundo adulto, entretanto que resiste à perfídia dos homens, demonstrando sensatez, senso de justiça, coragem e respeito à imagem e, conseqüentemente, à honra do pai. Aliás, honra é um dos valores firmemente defendidos pela epopéia, além de bravura, nobreza heróica e de sentimentos, hospitalidade, respeito aos mais velhos e sábios, submissão ao intento dos deuses, etc. A despeito de alguns desses valores revelarem caráter lábil, belicista e até mesmo subserviente/condescencente ante o poder – especificamente o despótico –, em relação à nossa mentalidade, é imprescindível para se compreender o panorama político-social da era; e, todavia, alguns desses ditames também são de natureza atemporal, genuínas aulas de sabedoria.
Vale ressaltar que Odisseu não é um herói perfeito. Ele também erra, é por vezes imprudente e arrogante; inclusive tem lá seus momentos efêmeros, no início do enredo, em que desafia a ira de deuses, voluntariamente ou não. Ele é humano, acima de qualquer outro aspecto. Contudo, a Odisséia não é uma obra de cunho humanista, já que os falhos e frágeis seres humanos, mesmo respondendo por suas conseqüências das suas ações, estão constantemente a mercê dos planos e caprichos das divindades. Inclusive, a deusa Atena é a fiel e inabalável “guardiã” de Odisseu, auxiliando-o no seu regresso a Ítaca, e demais intentos.
Outro parágrafo da introdução explicativa da obra, que vale a pena trasladar (as observações entre colchetes são minhas):
“Essas obras resultam aparentemente da fusão de poemas de autores desconhecidos, realizada, através do tempo, por uma corporação de aedos intitulados Homéridas, isto é, descendentes de Homero, que os transmitiam oralmente de geração a geração. A mais antiga edição escrita de que se tem notícia não foi certamente a primeira que se fez. Foi a determinada, no século VI a.C., por Pisístrato, tirano de Atenas, ou por seu filho e sucessor, Hiparco.”
“O texto que conhecemos é o que compilaram, expurgando erros e vícios, eruditos de Alexandria, a serviço dos Ptolomeus nos séculos III e II a.C.”
“O filólogo alemão Friederich August Wolf sugere que os textos da Ilíada e da Odisséia são compilações de vários poetas, que até então só haviam sido divulgados oralmente.”
A Ilíada e a Odisséia são relatos de narrativas heróicas preexistentes na História e na mitologia grega. O que ocorreu foram as compilações dessas histórias, até então transmitidas oralmente. E não se tem certeza se Homero realmente existiu, sendo seus poemas registrados de forma escrita mais tarde, ou se nunca houve Homero, mas sim vários aedos que cantavam as epopéias, nenhum deles destacando-se em particular. É uma incógnita.
A Ilíada relata a guerra de dez anos pela conquista da cidade de Tróia, guerra esta supostamente suscitada – conforme o mito – pelo rapto de Helena, tida como a mulher mais bela do mundo em sua época. Obviamente que se trata de uma narrativa repleta de fatos mitológicos, e não todos reais. A Odisséia conta as peripécias e desventuras do rei Odisseu – Ulisses em latim – após a Guerra de Tróia. Ele pena dez anos, por mares e terras, antes de finalmente chegar à sua terra natal, Ítaca. Suas aventuras e padecimentos incluem: os lotófagos (comedores de lótus); o ciclope Polifemo; a prisão na ilha da deusa-feiticeira Circe, que transformava homens em porcos; uma descida ao Hades, as terras infernais para onde desciam as sombras dos mortos, antes de irem ao Tártaro, aos Campos Elísios ou por lá mesmo perdurarem – uma definição diferente da mitologia cristã, onde o Inferno é um lugar de tormento eterno aonde serão lançados e subjugados os “iníquos” –; sereias e monstros praticamente inexoráveis como Cila e Caríbdis; além de uma temporada coagida em Ogígia, a ilha da deusa Calipso, que o cobiçava para esposo. Após vencer e passar por tantas atribulações incomensuráveis e tarefas aparentemente inexeqüíveis, Odisseu consegue voltar à sua pátria. E ainda terá de reconquistar seu reino e derrotar uma horda de pretendentes à mão de sua esposa, Penélope, que não só a almejam, porém também dissipam insidiosamente seus bens, desde que não se teve mais notícias dele, muitos o declarando como morto. Simplificando, pode-se afirmar que o itinerário calejado de Odisseu simboliza a própria trajetória humana, e que a força motriz da historia é a busca de um homem pela retomada de uma vida plena e da honra.
A trama da Odisséia é provavelmente conhecida por quase todos, pelo menos em partes. Todos nós já ouvimos falar ou lemos sobre ela, seja na escola, na TV, em livros e revistas, cinema e HQ. Está praticamente no inconsciente coletivo. É da Ilíada e da Odisséia que brotaram arquétipos do herói tão difundidos e, pode-se declarar, venerados, nas páginas da História, na arte, no inconsciente coletivo, em suma – ele de novo. Aquiles é a força bruta, aliada à resistência, que fere e derrota muitos combatentes. Odisseu é a sagacidade, o espírito astuto e capcioso, que dribla a força bruta; além de, várias vezes, submetê-la a seus desígnios. São os dois protótipos de heróis mais idealizados e representados na arte de maneira abrangente, principalmente em livros e esculturas; e mais recentemente – além de largamente –, tendo em mente as artes “jovens”, no cinema, nas HQs e na teledramaturgia (seriados, novelas, etc). É bom salientar que Odisseu não é um herói franzino, parco de dotes físicos; ele possui força muscular e maneja armamentos como ninguém, mas é a solércia sua maior e mais eficaz arma.
E não é apenas nos arquétipos heróicos que consiste a contribuição inegável e contundente da Odisséia nas artes e em outros campos distintos do conhecimento. Os versos da narrativa são autênticos “lavores” finíssimos de estilística; apresentam descrições de teor grandioso e imponente referentes a pessoas, às cidades, aos palácios e aos lugares de modo geral, o que podemos denominar por “realismo grandiloquente”; assim, denotando o típico habito da Grécia Antiga de enaltecer, além de exagerar em termos de beleza e/ou suntuosidade, os ambientes e entes como heróis, nobres, reis e deuses, quando representados pela arte (pintura, escultura, literatura, etc). São características que inspiraram posteriormente outros poemas épicos, como A Divina Comédia, de Dante, Os Lusíadas, de Camões, Paraíso Perdido, de John Milton, dentre outras obras, que buscavam o “polimento” estilístico e o ideal de beleza quase obsessivo - calcado especialmente no extremo equilíbrio das formas físico-corporais – dos padrões greco-romanos.
Não só Odisseu é um exemplar de herói, mas também outros arquétipos figuram na Odisséia, como Penélope, o ideal da mulher-modelo: bela, sensata, inexoravelmente fiel e exibindo-se incólume – mesmo que sofrendo plangente pelo sumiço do marido quando reclusa em seus aposentos. Telêmaco é o filho recém adentrado na “maturidade” do mundo adulto, entretanto que resiste à perfídia dos homens, demonstrando sensatez, senso de justiça, coragem e respeito à imagem e, conseqüentemente, à honra do pai. Aliás, honra é um dos valores firmemente defendidos pela epopéia, além de bravura, nobreza heróica e de sentimentos, hospitalidade, respeito aos mais velhos e sábios, submissão ao intento dos deuses, etc. A despeito de alguns desses valores revelarem caráter lábil, belicista e até mesmo subserviente/condescencente ante o poder – especificamente o despótico –, em relação à nossa mentalidade, é imprescindível para se compreender o panorama político-social da era; e, todavia, alguns desses ditames também são de natureza atemporal, genuínas aulas de sabedoria.
Vale ressaltar que Odisseu não é um herói perfeito. Ele também erra, é por vezes imprudente e arrogante; inclusive tem lá seus momentos efêmeros, no início do enredo, em que desafia a ira de deuses, voluntariamente ou não. Ele é humano, acima de qualquer outro aspecto. Contudo, a Odisséia não é uma obra de cunho humanista, já que os falhos e frágeis seres humanos, mesmo respondendo por suas conseqüências das suas ações, estão constantemente a mercê dos planos e caprichos das divindades. Inclusive, a deusa Atena é a fiel e inabalável “guardiã” de Odisseu, auxiliando-o no seu regresso a Ítaca, e demais intentos.
Outro parágrafo da introdução explicativa da obra, que vale a pena trasladar (as observações entre colchetes são minhas):
"O leitor arguto notará [na Odisséia] inúmeras repetições de epítetos [alcunhas largamente reproduzidas como "solerte Odisseu", "sensata Penélope", "ajuizado Telêmaco", "Atena, deusa de olhos verde-mar", "Aurora de róseos dedos", "Calipso, deusa de ricas tranças", etc], de versos inteiros e mesmo de grupos de versos. Não lhe será difícil inferir daí o caráter popular da composição. Nossos cantores populares, principalmente os cultivadores do gênero desafio, têm à mão a sua coleção de rimas, e de versos já prontos, que muito ajudam a improvisação [expressão cultural comum no meu Nordeste]. O mesmo se passava nos tempos homéricos, cujos autores recorrem livremente a um arsenal de fórmulas prontas."