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O Veredicto (Franz Kafka)

Lucas_Deschain

Biblionauta
[size=medium][align=center]O Veredicto (Franz Kafka, 1912)[/align][/size]

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Sinopse:

[align=justify]O Veredicto (Das Urteil em Alemão) é uma novela escrita por Franz Kafka em 1912, então com 29 anos. A obra explora essencialmente o conflito entre pai e filho (Georg Bendeman, protagonista da história), este prestes a se casar e que mantém uma estranha relação por cartas com um amigo distante.

O conflito paterno é um dos temas mais caros na obra kafkiana, podendo inclusive atribuir-se a esta obra uma forte projeção pessoal de Kafka que mantinha uma difícil relação com o pai. A novela é dedicada a Felice Bauer, que conhecera há poucos dias e que se tornaria sua noiva. Em virtude dela nomeou a personagem Frieda Brandenfeld, noiva de Georg Bendeman, com as mesmas iniciais (F.B.).[/align]

Fonte: Wikipedia

[align=justify]Vamos lá então, está aberta a temporada de discussão dessa obra do Kafka. Minha pergunta se refere mais ao aspecto externo do livro (apesar da Wikipedia chamar de novela): poderia ser caracterizada como novela, "pequena narrativa" (o termo que serve de subtítulo a Um Médico Rural), conto ou talvez romance mesmo?[/align]
 
Acabei me cafundindo na hora de postar :timido:

Vou colocar minha antiga resposta no tópico errado:
E O Veredicto? Está na mesma edição. Li num pulo... E. Bem. A relação de Georg com seu pai é muito parecida e remete muito com a de Kafka e de seu pai. Alegoricamente, o amigo russo de Kafka seria uma espécie de literatura, um personagem que Kafka ainda não encontrou concretamente. Diria até mesmo que é um tipo dostoievskiano (a barba, etc) que remete à miséria humana. Mas isto é batatinha demais. O que me espantou foi que em momento nenhum senti pena de Georg ao ver seu pai o humilhando, entre aspas. Pois parece ser Georg quem deixa o pai às moscas; pois parece Georg quem abandona o pai para viver numa realidade que não é a sua (que não é a de ninguém).

Aliás: o que assustava Georg era o fato de seu amigo deixar de ser seu amigo ("você não me enviou uma carta dizendo que iria se casar [...]"); ou o medo de que seu pai, pessoa real, física, anti-Coisa (Coisa: objeto de todos os desejos, segundo Freud), invadisse sua imaginação?

Minha tese para o fato de Georg ter se matado (ou melhor, seja lá o que diabos ele fez no final) é que como seu pai havia invadido este seu espaço de imaginação; como ele tinha confirmado e como ele tinha, até certo ponto, feito com que o próprio Georg questionasse seu mundo e seus amigos -- isto tudo fez com que o Veredicto fosse acatado de pronto.

Ou isso ou então a morte (ou a queda dele, ou o porque da empregada ter clamado por Jesus) de seu pai, o elo-real que rompe a todo instante com Georg-imaginário. É claro que a esposa de Georg atua também com um papel parecido: ela questiona as amizades de Georg; mas não satiriza, não se importa, não é pai ou mãe que tem, além do caráter legitimador um tanto quanto egoísta ("meu marido não fala com estranhos"), possui o caráter social-familiar gerador -- caráter este que, sob certa ótica, por si só é o suficiente para que o Veredicto seja aplicado. Pois se o amigo de Georg existise, é o veredicto de seu pai que o faz não existir da mesma forma como faz com que o filho se mate e ainda diga "eu os amo".
 
[align=justify]Putz, acho que tenho que reler esse livro, porque não me lembro de várias coisas que tu postaste aqui Mavericco.

Quando você fala do pai invadir a imaginação, não posso deixar de pensar na célebre passagem de Carta ao Pai em que o Kafka desabafante diz que a sombra do pai cobre quase todo o mapa-múndi, de modo que somente onde essa sombra não alcança é que ele pode estar ou se sentir menos oprimido por sua tirania odiosa. A questão do relacionamente traumático com o pai parece ser a chave para compreender esse livro.

A figura paterna é quem introduz desordem na vida de Georg, mesmo que a vida desse não pareça assim tão plena de ordem. O pai, por mais tirânico que seja para o universo de Georg, ainda assim parece ser uma referência fundamental para ele. Por mais que ele seja do jeito que é, por mais que faça as coisas do jeito que faça, ele continua sendo peça-chave para o "funcionamento" da realidade de Georg.

Tanto que sua palavra é o veredito, a decisão final e irrevogável. Ela é a palavra final, doa a quem doer. Aqui, para mim, repousa a significação congregada dessa obra: o pai, o fatalismo e a impessoalidade inumana do mundo burocrático (no caso as leis e a dimensão jurídica desse mundo). O pai é figura central (introdutor da desordem sob diferentes formas e matizes); o fatalismo é inevitável (incapacidade de contorno, de superação, de libertação, de esperança e no fim o suicídio como "solução" ou "punição"[?]); e o oficialidade burocrática materializada no termo caro a terminologia jurídica, veredicto (a decisão cabal, outorgada pela estrutura "socialmente" aceita: a lei).

O pai condena através do "veredito", investido pela força da lei, mesmo que sua decisão apareça sob outras e diferenciadas formas, que desemboca na aporia, no beco sem saída que leva a derrota final.[/align]
 
E o interessante desta dependência do Georg para com o pai é que... Quem leva o pai no colo para a cama é o Georg! O pai dele depende do Georg; mas as dependências físicas estão longe de serem o escopo principal de Kafka... As dependências jurídicas, legislativas, espirituais, psicológicas etc são sempre mais pesadas e sempre mais decisivas no universo kafkiano: afinal de contas, o que prende Gregor Samsa numa carapaça de inseto é muito mais que uma simples carapaça de inseto!
 
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Mavericco disse:
E o interessante desta dependência do Georg para com o pai é que... Quem leva o pai no colo para a cama é o Georg!

Pois é, isso é o que há de diferente em Kafka (uma das coisas, na verdade), a meu ver: não é que ele esteja desatento ou que não perceba a dominação, a condição "escravizada" (não que carregar o pai para cama seja escravidão, que isso fique bem entendido) ou as inúmeras amarras nas quais estamos enredados, ele tem noção disso, mas não vê saída.

Isso é o que Kafka tem de melhor, porque ao invés de fazer como tantos outros que "chutaram o balde" e largaram mão de continuar insistindo nesse escopo, digamos assim, ele persiste mesmo conhecendo sua condenação. Ele via a grade da cela, conhecia as implicações disso, mas parece ter abandonado a esperança de escapar da condição de encarcerado.

Isso é genial, pois a condição de Kafka, sua atitude descrente perante a capacidade de extrapolar a situação escravizante, o põe em diálogo com outra faceta dessa história: ele não é nem o dominador nem o dominado buscando escapar da dominação; ele é o dominado consciente da sua incapacidade de subtrair-se a dominação. Isso permite que ele enxerga o mundo ao seu redor de uma maneira muito diferente do que viram outros autores, essa condição o põe em contato com uma realidade bastante diferente, com outros problemas, outras questões, outras angústias.

Tenho receio de estar exagerando no derrotismo de Kafka, mas é um escopo de análise bastante interessante. Depois quero falar mais sobre outras "teorias" minhas de que Kafka não era tão fatalista assim.

Mavericco disse:
o que prende Gregor Samsa numa carapaça de inseto é muito mais que uma simples carapaça de inseto!

Muito bem notado Mavericco, é justamente isso. As limitações da condição de Gregor Samsa, do ponto de vista do livro, advém justamente da carapaça de inseto e do aspecto bizarro em que ele se encontra.

Mas não levando isso tão ao pé da letra, ou não analisando em termos puramente literários, levando em consideração que a história ficcional funciona como metáfora da realidade ou uma "mensagem metamorfoseada" que se ancora na realidade de diversas formas, a carapaça de inseto é a materialização dessa realidade opressora, da situação de exclusão, do sentimento de não-pertencimento, de ser um estranho em meio a não-estranhos.[/align]
 
Lucas_Deschain disse:
[align=justify]Putz, acho que tenho que reler esse livro, porque não me lembro de várias coisas que tu postaste aqui Mavericco.

A figura paterna é quem introduz desordem na vida de Georg, mesmo que a vida desse não pareça assim tão plena de ordem. O pai, por mais tirânico que seja para o universo de Georg, ainda assim parece ser uma referência fundamental para ele. Por mais que ele seja do jeito que é, por mais que faça as coisas do jeito que faça, ele continua sendo peça-chave para o "funcionamento" da realidade de Georg.

Tanto que sua palavra é o veredito, a decisão final e irrevogável. Ela é a palavra final, doa a quem doer. Aqui, para mim, repousa a significação congregada dessa obra: o pai, o fatalismo e a impessoalidade inumana do mundo burocrático (no caso as leis e a dimensão jurídica desse mundo). O pai é figura central (introdutor da desordem sob diferentes formas e matizes); o fatalismo é inevitável (incapacidade de contorno, de superação, de libertação, de esperança e no fim o suicídio como "solução" ou "punição"[?]); e o oficialidade burocrática materializada no termo caro a terminologia jurídica, veredicto (a decisão cabal, outorgada pela estrutura "socialmente" aceita: a lei).

O pai condena através do "veredito", investido pela força da lei, mesmo que sua decisão apareça sob outras e diferenciadas formas, que desemboca na aporia, no beco sem saída que leva a derrota final.[/align]
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Aparentemente também perdi várias coisas... Aliás, acho que a tradução não facilitou muito a compreensão apesar de ser a de Modesto Carone. Tem alguns trechos confusos ou fui só eu? No posfácio ele fala da opacidade do texto de Kafka, do claro enigma, mas não sei se é isso. Não tive essa dificuldade em A Colônia Penal.

De qualquer forma concordo que o pai seja uma figura perturbadora no caso em questão: antes de ele entrar na história, tudo parece calmo, uma história normal. De repente temos o ponto de vista do pai, contestando Georg.

O filho nunca é bom o bastante. É um traidor, que pretende, se casando, se livrar do pai, que se faz de vítima. De vítima, o filho, oprimido, passa a opressor, egoísta. O amigo seria um filho melhor.

Para mim, o pai é um tipo mentiroso, autoritário, com problemas de auto-confiança, senão mentais. É quase um tipo social. Tudo que ele diz sobre conhecer o amigo da Rússia é uma mentira para manipular Georg.

Esse, humilhado, tenta se revoltar contra o pai três vezes (uma quando o chama de "Comediante", outra quando deseja que caia e morra e outra quando responde com ironia que o amigo sabe "Dez mil vezes melhor!"), mas se sente culpado e aceitando a culpa, aceita o veredito, mesmo jurando até o fim que ama o pai. Aliás, esse pai seria incapaz de aceitar esse amor, tão egoísta que é. A inutilidade desse amor filial é bem triste. Mas enfim, chega de extrapolar a leitura. Algo disso faz sentido?[/align]
 
[align=justify]Certamente Jota, a figura do pai está sempre a pairar sobre a obra do Kafka, embora ela não seja a única 'entidade' opressora que aparece em suas obras.

Ultimamente tenho tido umas dúvidas com relação a figura paterna na obra do Kafka, que podem ser infundadas, mas que vale a pena serem discutidas: o pai é figura opressora, um tirano, um déspota digno de desprezo e maledicência, mas vocês já pararam para pensar que essa pode não ser a 'essência' do pai? Isso é o que Kafka tem a nos dizer sobre ele, não quer dizer que seja 'verdade' só porque ele disse.

Sem querer suscitar discussões sobre o estatuto de veracidade da literatura ou não (não é esse o meu ponto aqui, mas se quiserem discutí-lo vamos lá), mas é que estamos ficando 'reféns' da visão do Kafka, sendo que cada vez que olho mais para isso, mais vejo que o pai podia ser problemático, mas a têmpera, as concepções e o modo de enxergar o mundo de Kafka contribuíram para isso tomar um vulto bem maior.

Tenho para mim (não excluo, em definitivo, a possibilidade de estar errado) de que o problema do pai não estava necessariamente no pai, mas na relação desse com Kafka em sua singularidade. O que nos transpassa a obra de Kafka é que o autor não tinha lá muito jeito para lidar com a realidade a seu redor, procurando em sua literatura deslindar o quanto ela tinha de opressiva e o quanto ela contribuiu para que o autor sucumbisse a ela. Diversas outras pessoas passaram pela mesma realidade e não tiveram a mesma visão do Kafka (OK, isso se chama individualidade ou particularidade), o que não exclui a opressividade da realidade, mas a coloca em outro patamar quando pensada por Kafka.

Longe de mim tentar imacular o pai, até porque nem tenho notícias desse pai para além do que o próprio resolveu trazer a tona, mas é um prisma a ser pensado, não?[/align]
 
[align=justify]Há uma máxima de La Rochefoucauld que diz que o mal que os outros nos fazem não nos atinge de acordo com sua força, mas de acordo com nossa fraqueza. Seria mais ou menos por aí, certo?

Ao mesmo tempo é difícil lidar com pais assim, acho eu. Você tenta agradar eles de todo jeito, mas é impossível. Isso gera sentimentos muito ruins. Às vezes só um observador externo consegue perceber as coisas melhor. Parece um carma. Parece que as pessoas estão presas em um círculo que só gera insatisfação e infelicidade. Seria preciso que elas percebessem as coisas por elas mesmas para poder quebrar esse ciclo. É difícil, portanto. E para Kafka a literatura pode ter sido um jeito de trabalhar isso. (Difícil não fazer análise psicanalítica de uma obra de Kafka, né?... =/) E digo (e sei) de tudo isso por observar casos próximos. É absurdo pensar na influência que duas pessoas (pai e mãe) têm na nossa vida. Leva a pensar que algumas pessoas deveriam ser proibidas de ser pais... =P

Poderia ser interessante estudar a "verdadeira" figura do pai por trás da "representação" que Kafka deixou dele..., ou talvez não, se fosse para confirmar a figura medíocre que ele pode ter sido.[/align]
 
[align=justify]Pois é, acho uma boa interpretação, a literatura como forma de expurgar certos demônios ou de fazer as coisas serem diferentes, ainda que por um tempo apenas, ou mesmo como forma de melhor lidar com toda a situação na qual se está inserido.

Lembrei até de uma citação do Nicolau Sevcenko, daquele livro Literatura como Missão, que, ao trabalhar com litertura no meu TCC, acabei citando para dimensionar a relação História e Literatura:

Sevcenko disse:
A literatura portanto fala ao historiador sobre a história que não ocorreu, sobre as possibilidades que não vingaram, sobre os planos que não se concretizaram. Ela é o testemunho triste, porém sublime, dos homens que foram vencidos pelos fatos. (...) Pode-se, portanto, pensar numa história dos desejos não consumados, dos possíveis não realizados, das idéias não consumidas (p. 21)

Penso que o Kafka, como já disse em algum outro tópico foi alguém que conseguiu enxergar as cadeias nas quais estava enredado, mas que, mesmo tendo as visto, não conseguiu delas se desvencilhar, por isso é que sua angústia é tão evidente em sua literatura. Não duvido que o pai tenha sido um catalisador desse sentimento em Kafka, mas certamente o autor, em sua visão pessimista da realidade, elevou a angústia a outro patamar.

Vale ressaltar isso de novo, mas o pai é uma das figuras que representa a opressão na qual vive Kafka, e, portanto, não a única. Às "forças" que o oprimiam eram encarnadas, a meu ver, na burocracia, na inumanidade das leis, nas estruturas construídas pelo homem mas que tem por parâmetro algo que não o homem, o moralismo, as condutas modelares ou o que a sociedade (esse termo que vira cada vez mais uma muleta conceitual) acredita que uma pessoa deva ser. (isso me faz pensar em O Estrangeiro, de Camus, onde Meursault também sofre com esse não-alinhamento ao que seria 'socialmente certo')

Kafka tinha tudo para explodir, como fizeram tantos outros, e mandar às favas tudo isso, mas ele se torna peculiar por parecer ter sucumbido a essa situação. Ou seja, ao invés de explodir, ele implodiu, e no refluxo dessa implosão produziu sua literatura, por isso ela é tão visceral, angustiante, melancólica, quase abafada pelas próprias trevas que lhe deram origem.[/align]
 

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