Para quem não tem acesso à Revista VEJA, reproduzo abaixo a reportagem publicada sobre "O SEGREDO DE BROKEBACK MOUNTAIN":
CinemaA conquista do Oeste
Centrado na paixão entre dois caubóis, o esplêndido Brokeback Mountain é um sucesso até no "cinturão da Bíblia" americano
Isabela Boscov
No conto da escritora Annie Proulx, o caubói Ennis Del Mar se despede de Jack Twist, com quem passou a temporada de verão pastoreando ovelhas nas montanhas Brokeback, e é tomado por uma contração violenta no estômago, que o faz dobrar-se em dois. Na sua rudeza, Ennis leva um ano inteiro de cãibras para perceber que seu problema não é físico – é a necessidade de ter Jack junto de si. Em O Segredo de Brokeback Mountain (Brokeback Mountain, Estados Unidos, 2005), a adaptação dirigida pelo taiwanês Ang Lee, a iluminação de Ennis é imediata, e vem com um sofrimento tão intenso que o rapaz precisa esmurrar e bater a cabeça num muro repetidas vezes para substituir essa dor inesperada por outra, mais familiar. Aos 19 anos, pobres como ratos e cheios de planos, Jack e Ennis (Jake Gyllenhaal, ótimo, e Heath Ledger, soberbo, ambos heterossexuais confirmados) tiveram certa noite desse verão um encontro sexual, sem saber direito como nem por quê, e se apaixonaram completamente. Que esse seja um amor homossexual só não é irrelevante porque ele não cabe, em nenhum formato ou disfarce, no Wyoming de 1963. Pelas duas décadas seguintes, portanto, continuará a assombrar Ennis e Jack, proporcionando uns poucos momentos sublimes, em pretensas viagens de pescaria, e incontáveis outros de infelicidade, para eles e para as mulheres e filhos que não podem competir com essa paixão secreta.
Um western e um romance gay – tudo que, em tese, o público tenderia a rejeitar –, Brokeback Mountain, que estréia nesta sexta-feira em circuito nacional, revelou-se um sucesso estrondoso nos Estados Unidos. Não só nos grandes centros, como Los Angeles e Nova York. O que vem alimentando sua bilheteria agora são os chamados "red States", os estados de maioria republicana e conservadora. Do "cinturão da Bíblia" ao território mórmon de Utah, ele tem lotado salas, e há casos de redes de cinemas que receberam abaixo-assinados pedindo não o veto ao filme, como se esperava, mas sua exibição (e esse é um bom momento para frisar que Brokeback Mountain não sofre de nenhuma timidez quanto a explicitar a atração física entre Ennis e Jack, e em pelo menos duas cenas ela é de uma energia poucas vezes vista no cinema). Das cautelosas setenta salas em que o filme começou – estabelecendo um recorde histórico de renda por tela –, ele passou para 600, depois para pouco mais de 1.000 e, por pressão dos exibidores, logo deve expandir seu circuito para 2.000 cinemas. Candidato natural a uma meia dúzia de Oscar (as indicações serão anunciadas nesta terça-feira 31), Brokeback Mountain agora tem o aval para efetivamente vir a receber os prêmios que merece. Muito mais significativo, porém, é ele ter demonstrado que filmes verdadeiramente superlativos têm o poder de reverter expectativas e derrubar barreiras consideradas intransponíveis.
Rodado por 11 milhões de dólares e em pouco menos de um mês em locações no Canadá – fazendo as vezes do Wyoming –, Brokeback Mountain é a depuração daquilo que Ang Lee sempre fez melhor, de Comer Beber Viver a Razão e Sensibilidade: compartilhar com seus personagens a impotência diante de convenções sociais que parecem ter o propósito específico de coibir os indivíduos e frustrar qualquer aspiração pessoal. Nas suas escapadas, Ennis e Jack invariavelmente discutem a idéia de tocar juntos um rancho, como se fossem apenas dois solteirões. E invariavelmente a idéia é descartada por Ennis, que na infância foi levado pelo pai a uma excursão educativa, para ver o cadáver barbaramente desfigurado de um caubói que se acreditava ser homossexual (Ennis, aliás, suspeita que seu próprio pai tenha sido o autor do assassinato). Ennis diz que não quer morrer assim, mas o que o conto e o filme mostram é que há uma morte ainda pior do que aquela infligida pela intolerância – a morte lenta que advém da negação, e que nessas duas décadas de relacionamento incompleto vai engessar e confinar os dois amantes. Do idílio inicial na amplidão das montanhas, literalmente acima das regras e constrangimentos da vida em sociedade, os caubóis passam a ocupar espaços cada vez menores e mais sufocantes – até o trailer que restou a Ennis no desfecho –, como se o próprio espírito deles tivesse encolhido. (Para quem imagina que esse horizonte tão limitado em que vivem os personagens é uma manobra ficcional e que os Estados Unidos no período de 1963 a 1983 ofereceriam a eles um pouco mais de latitude, vale o lembrete de que em 1998, um ano depois da publicação do conto, Matthew Shepard, um estudante de 21 anos da Universidade de Wyoming que, como Jack e Ennis, gostava de rodeios, caça e pesca, foi linchado por ter passado uma cantada nos sujeitos errados.)
Nas palavras da autora Annie Proulx, Brokeback Mountain (publicado pela primeira vez na revista The New Yorker, em outubro de 1997) não é um faroeste, e sim a história de dois jovens pegos de surpresa por um sentimento que não compreendem e que não sabem administrar – mas do qual também não conseguem se desligar. Nem Ennis e Jack são, na verdade, caubóis. São pastores ou operários, conforme a situação se apresente, enamorados do mito do caubói, que serve para eles como álibi para essa situação peculiar. Em que pesem essas ressalvas, Brokeback Mountain subverte os cânones do gênero mais caro ao cinema americano ao trazer para a superfície uma corrente que sempre permaneceu subterrânea nele – a do homoerotismo ou, no mínimo, da homossocialidade. Ainda que a idéia pudesse causar indignação a John Wayne ou a muitos de seus admiradores, essa é uma forma bem razoável de descrever enredos que se definem por alianças que os homens estabelecem à exclusão das mulheres (estas, representadas sempre como as perturbadoras da paz, por seu convite à domesticidade ou à perdição, o que em qualquer um dos casos romperia essa harmonia masculina).
Até Brokeback Mountain, o único filme a explicitar esse viés gay fora Lonesome Cowboys, de Andy Warhol. Mas ele está lá, inequívoco, no rancor entre Rock Hudson e James Dean em Assim Caminha a Humanidade, nos modos muito conjugais de James Stewart e Walter Brennan em Região do Ódio, no fascínio mútuo de Paul Newman e Robert Redford em Butch Cassidy, na relutância de Alan Ladd em estabelecer vínculos em Os Brutos Também Amam ou na relação tutorial entre John Wayne e Montgomery Clift em Rio Vermelho (no qual o diretor Howard Hawks, que não era nenhum bobo, incluiu uma cena muito sugestiva em que Clift e um outro caubói comparam seus revólveres). Também são raros os westerns em que a infelicidade das mulheres seja tão absoluta e digna de empatia. No papel de Alma, a jovem esposa de Ennis, Michelle Williams (que acaba de ter uma filha com Heath Ledger) é um dos cernes de Brokeback Mountain: sua surpresa e mortificação ao testemunhar o desejo do marido por Jack – um desejo que certamente nunca teve similar no seu próprio casamento – são tão desesperadoras quanto a impossibilidade dos dois amantes de viver seu romance. Alma é a fachada atrás da qual esse romance se esconde, e como tal é também ela privada do direito a uma vida plena.
Nem Alma nem Ennis, tão taciturnos e tão pouco mundanos, seriam capazes de articular esses sentimentos em palavras. Em parte, é daí que vem a força de Brokeback Mountain. Recém-saído do conturbado Hulk, o diretor Ang Lee foi para o outro extremo, despindo o filme de todo ornamento e artifício, até torná-lo quase espartano. Não há aqui falas grandiloqüentes, trilha sonora que se avoluma para substituir a emoção das interpretações ou closes indiscretos de atores flertando com a câmera. Lee permanece na maior parte do tempo a meia distância de seus protagonistas, dando a eles a chance e o espaço para lidar como puderem (o que é quase sempre mal) com os conflitos em questão. Por isso é melhor não se informar demais sobre os rumos da trama – os próprios personagens, afinal, não estão no comando deles – e deixar que o filme diga o que tem a dizer a seu tempo e do seu jeito. Dando-se essa oportunidade a Brokeback Mountain, ele se constitui numa experiência poderosa e potencialmente devastadora. Poucas vezes aquilo que há de mais misterioso numa paixão, e de mais doloroso na sua agonia, foi retratado com tanta sensibilidade e tamanha razão.
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