Comecemos pelo fim: não há nada que eu desgoste na obra Machadiana, mas vocês já sabiam disso. A pegada cética, cínica e pessimista que permeia quase toda a obra de Machado de Assis é algo que me ajuda a manter os pés no chão. Eu sou uma pessoa extremamente idealista, dum jeito irritante, até, e é preciso equilibrar as coisas, sabe? Acho que foi o Nietzsche quem disse algo como: "o idealista é incorrigível: se é expulso do seu céu, faz um ideal do seu inferno". Pois é, pois é.
Acho que a verve da literatura Machadiana ME INSPIRA a encontrar soluções para coisas que eu não pensei que tivesse como resolver. Acho as escolhas do Machado perfeitas para mostrar a realidade a partir do filtro do riso e do trágico. Mais do que o enredo, propriamente dito, na obra do Machado importa o que INSISTE, o que volta, com a mesma ou outra roupagem, e, por isso, faz com que tentemos entender o porquê de aquilo estar lá.
Quanto ao questionamento sobre a obra romântica do Machado ter aspectos de sua obra realista, o próprio nos respondeu: "o menino é pai do homem". A acidez e a ironia machadiana já estavam lá, mas de modo infinitamente mais velado do que no realismo machadiano. Um exemplo está no conto Marianna, cuja publicação data de 1871 (ano da Lei do Ventre Livre). Numa olhadela rápida, a gente pode pensar que se trata de uma clássica história romântica (no uso correto do termo!): mocinha se apaixona pelo patrão, não pode tê-lo, e se mata. Na verdade, é uma escrava, que se apaixona pelo filho de sua senhora. É um texto crudelíssimo: extremamente violento. As artimanhas linguísticas que escondem o preconceito já estavam lá, mas nós, que não somos o Machado, só passaríamos a estudá-las muito tempo depois: "COMO se ela fosse uma pessoa livre", "lhe tinham ATÉ certa afeição". O limite está muito marcado, e anuncia a tragédia de um ser humano que não é visto como tal.
O conto foi publicado em folhetins, numa revista que ia para a casa da elite. Só 15% da população brasileira sabia ler. Os negros não podiam frequentar escola. A Marianna sabe que não tem futuro no meio daquele rapazinho, filhinho de papai, que vai casar com a prima. Ele está noivo da prima, que rompe o noivado porque ele deu atenção a uma escrava; esta que fugiu porque estava apaixonada por ele, que não pôde salvá-la, porque ela se matou (a inversão da ideia de que alguém pode nos salvar, está aí, escancarada). A prima fica com ciúme da morta e rompe o noivado. OLHA AÍ O MACHADÃO NOS FAZENDO PENSAR SOBRE O NÍVEL DE BRUTALIDADE DO REGIME ESCRAVOCRATA.
Marianna tem a coragem absurda de amar: de ser dona do seu próprio desejo, do seu próprio sentimento, o que se nega à pessoa escravizada. Marianna dá a tônica de como seriam as personagens femininas do Machado, né? Mulheres independentes. E isso já está lá no primeiro romance do Bruxo do Cosme Velho: quando temos a figura de Glória, viúva, dona de si. Aproveito a deixa para avançar na linha do tempo da ficção Machadiana e mencionar que uma das poucas falas não dúbias, e verdadeiras, do Bento Santiago é esta: Capitu, isto é, uma criatura mui particular, mais mulher do que eu era homem.
Passemos, agora, para o Machado cronologicamente realista. Na tentativa de rastrear o narrador de Memórias Póstumas de Brás Cubas, que não é apenas o meu livro preferido do Machado, mas o meu livro preferido DA VIDA, notei que a volubilidade é, paradoxalmente, a única constante do livro. Ela dá forma e é formada por ele. Para isso, o narrador adota uma postura enciclopédica – apontada por Roberto Schwarz – de quem tudo sabe, costurada pela liberdade de estar morto e não mais pertencer à sociedade volúvel, e desigual, que se forma no decorrer das memórias, por meio de fragmentos de diferentes estilos. Estética que contribui para delinear a figura encarnada pelo narrador, isto é, a figura do burguês e seus privilégios.
Tal qual o Emplasto Cubas, que era uma ideia fixa, Brás Cubas, sob a égide das hesitações e oposições, procura fixar suas memórias. E para que esse projeto seja ainda mais ambicioso, ele tece essas memórias do além-túmulo, que é de onde, também, relata-nos o seu delírio pré-morte, o seu grandioso delírio. O delírio que, cheio de si, ele diz ser o primeiro a narrar, e que isso é um favor que ele fará à ciência. Esse narrador é uma legítima flor dos Cubas e, como seus antepassados, que alteraram a genealogia da família para que ela parecesse mais nobre do que era, tem delírios de grandeza.
Nesse campo de significação, o sétimo capítulo de Memórias Póstumas de Brás Cubas, denominado “O delírio”, ao mesmo tempo em que faz um tour pela história da humanidade, funciona como uma metáfora da volubilidade do narrador-personagem, Brás Cubas, uma vez que, de entrada, o delírio já apresenta as metamorfoses por que passa o narrador:
“Primeiramente, tomei a figura de um barbeiro chinês, bojudo, destro, escanhoando um mandarim” (ASSIS, 2020, p. 49); “Logo depois, senti-me transformado na Summa Theologica de São Tomás” (ASSIS, 2020, p. 49); “ultimamente, restituído à forma humana, vi chegar um hipopótamo, que me arrebatou”. (ASSIS, 2020, p. 49).
Nos trechos selecionados, o narrador aparece fazendo a barba de um mandarim, uma figura letrada e burocrata, depois, transforma-se na Summa Theologica, um discurso teológico e, em seguida, volta à forma humana. E o narrador, no capítulo em questão, mostra que faz o que bem quer, e quando quer. Por isso, interrompe a narração do próprio delírio para se dirigir ao leitor: “Imagina tu, leitor, uma redução dos séculos, e um desfilar de todos eles, as raças todas, todas as paixões, o tumulto dos impérios, a guerra dos apetites e dos ódios, a destruição recíproca dos seres e das cousas”. (ASSIS, 2020, p. 53).
Roberto Schwarz, em Um mestre na periferia do Capitalismo, disse que o narrador de Memórias Póstumas dispõe do todo da tradição ocidental, e ressalta que a sua superioridade consiste em não se deixar capturar, para tanto, adotando novos papéis para, em seguida, colocá-los de lado. Ou seja, Brás Cubas explica para confundir. Assim, quase no fim do capítulo "O Delírio", quando o leitor já está capturado pela viagem, e deseja descobrir o segredo do último século, o delírio acaba. Mas será que acaba, mesmo, ou era apenas uma dissimulação, já que o narrador utiliza o capítulo seguinte para encenar um diálogo, também ele delirante, entre a Razão e a Sandice?
Amo o fato de a natureza, em Machado, ser uma forma. Assim como as estruturas sociais em Machado são uma forma. Ele mostra o país de estruturas sociais, não o país de natureza. Também amo o tom cínico da psicanálise machadiana: ele dá o tom de que as coisas horríveis que acontecem sejam naturais. As inversões irônicas do Machado, ao mesmo tempo que provocam o riso, direcionam-nos às digressões. E, nesse ponto, entra a importância absurda da recepção para obra do Bruxo do Cosme Velho: ao fazer naturalizar para horrorizar, ELE CONTA COM O HORROR, POR PARTE DO LEITOR.
Sou apaixonada pelo fato de o Machado pegar temas recorrentes e trabalhá-los de modo a lançar luz sobre outros aspectos, como faz com o mito da narrativa gemelar, no maravilhoso Esaú e Jacó (que era o romance do Machado de que o Antônio Candido mais gostava). Nisso, acho que Machado de Assis faz um inquestionável uso da noção de que a ficção acolhe o paradoxo, e esse paradoxo é o que suscita novas interpretações da obra.
Eu poderia resumir todo o relato em: o que eu mais gosto na obra do Machado é a gama de artifícios que ele usa para sugerir; para afirmar negando, e para negar afirmando. O narrador machadiano é uma das estratégias narrativas mais louváveis do mundo. Ele tem um poder de convencimento tão grande que, vejam, só, vocês, convenceu-me a cursar Letras e, por conseguinte, morrerei de fome.