Não posso dizer que o Fernando Henrique Cardoso sempre constrói os seus prefácios dessa maneira, mas, tanto em
Casa Grande & Senzala como em
O Príncipe, ele parte da pergunta: "Por que é um clássico?"
Dada a partida, vai tecendo suas considerações, muito elucidativas, que terminam por apresentar um novo ângulo da obra.
Em
O Príncipe, ressalta que, muito mais que um manuscrito filosófico de comportamentos e verdades atemporais, as linhas de Maquiavel são frutos de seu tempo, repletos de transformações sociais, políticas, culturais e econômicas. Tirá-lo desse contexto é empobrecer sua análise. Até aí, nenhuma novidade. Hoje. Ao longo dos séculos, porém, o tempo histórico não encontrou importância, sendo, quando não totalmente desconsiderado, posto em segundo plano. Assim, a obra encontrou elogios e repúdios. Correntes a satanizaram por ser o manual para déspota; correntes a elevaram, por representar uma sátira engenhosa que desnuda práticas autoritárias de governo, revelando o ideal republicano de seu criador.
Vou dar uma geral, bebendo do FHC e do também sociólogo Carlos Estevam Martins:
Maquiavel escreveu
O Príncipe isolado em sua pequena propriedade rural. Havia sido expulso da cidade e da vida política quando os Médicis voltaram ao poder em Florença. Fora acusado de traição, torturado. Como quem tem juízo, tem medo, não protestou quando o despacharam para longe. No bucolismo, mergulhou nos clássicos da Antiguidade, buscou os gregos, os romanos, se municiou da antiga sabedoria:
“Quando a noite cai, eu volto para casa e me encerro em meu escritório; e, na soleira, tiro a roupa de todo dia, sempre coberta de barro e lodo, e ponho vestes régias e curiais; e, vestido de maneira mais adequada, adentro as antigas cortes de homens antigos e por eles sou amavelmente acolhido, e lá saboreio o alimento que é só meu e para o qual nasci (...).
Do flerte com os antigos, observou as práticas contemporâneas e, num diálogo entre passado-presente, temperado com observações acerca do comportamento humano, deu à luz ao seu controverso livro.
Enquanto o lia, embora devidamente advertido que ali se trataria do que é, não do que deveria ser, o julgava: Maquiavel, seu grande filho da puta! Mas fui ligeiro no julgamento! Como redenção, voltei ao século XV e XVI. Deixando de lado a transformação nas mentalidades que o Renascimento conduzia, passei para o campo político. Melhor, para o caos político da Penísula Itálica. Num território confuso, dividido em diversos principados governados à mão de ferro, onde a ascensão ao poder se dá via usurpação e demais mecanismos de conquistas, sendo o carácter dinástico irrelevante - portanto é natural, uma vez que conquistados pela força, que essa força se desloque entre diversos príncipes que almejam o mando, como também é natural que, aquele lançado ao “trono”, se utilize de meios violentos e desumanos para própria preservação no poder. Assim, dividida e perdida em meio à ocupações e desocupações entre fortes personalidades, a Itália se vê carente e impossibilitada da criação de um Estado Central, que seja capaz de edificar um exército próprio e poderoso, terminando o uso de milícias que só obedecem aos caprichos do dinheiro, tendo, dessa forma, a possibilidade – para Maquiavel a única e certa - de se encerrar as manobras militares e políticas dos governos organizados que disputam a hegemonia na Penísula, como o francês, o espanhol e os membros da Igreja Católica.
Fruto desse período, vivendo esses contextos – e os vivendo intimamente, uma vez que foi funcionário florentino com trânsito pelos corredores do poder – Maquiavel condensa suas reflexões, colhidas dos antigos e desse cenário zoneado, num livrinho de pouco mais de cem páginas. Meteu no bolo, também, seus conhecimentos de psicologia: segundo ele, os homens, independente da época, são todos egoístas e ambiciosos e, soltos, são capazes das maiores vilanias. Muito antes de Hobbes, ele antecipa um poder que coaja os homens à boa convivência. Tal coação se faz com benefícios – medidos, dosados, homeopáticos - e punições – rápidas, intensas. Numa mescla de amor e temor, a ordem se mantém. Nas palavras do próprio:
“(...) Por isso as injúrias devem ser cometidas de uma vez só, de modo que, por sua brevidade, ofendam menos ao paladar; ao passo que os benefícios devem ser feitos aos poucos, para que sejam mais bem saboreados”.
A punição, ainda, deve impossibilitar a reação, porque se os homens
“podem vingar-se das pequenas ofensas, das grandes não podem; de modo que a ofensa que se faz ao homem deve ser suficiente para neutralizar qualquer possibilidade de vingança”.
Dessa forma, conhecendo a índole humana nas suas motivações e reações, os exemplos dos grandes homens do passado passam a ser fundamentais, pois estes já caminharam pelo mundo lidando com as mais diversas paixões. Olhar a História é conhecer a maneira adequada de agir frente a cada perigo, interno ou externo, bem como antever as possíveis consequências de cada atitude realizada.
Mais: sendo um manual – na falta de melhor adjetivo – pode-se interpretar
O Príncipe como uma tentativa de matematizar, tornar exata uma prática política: para se evitar óbices, tal procedimento; para se combater distúrbios, tal remédio. Entendimento que é reforçado pela leitura da carta que Maquiavel endereça ao Magnífico Lourenço de Médici, quando diz que não poderia ofertar
“maior dom que proporcionar-lhe a faculdade de poder, em brevíssimo tempo, entender tudo o que eu, em tantos anos e por tantas aflições e perigos, conheci e entendi”. No entanto, percorrendo todo o corpo do texto, principalmente seus últimos capítulos quando nos são apresentados os conceitos de fortuna (circunstância, tempo presente, sorte) e
virtú (capacidade de controlar, de lidar com ocasiões e acontecimentos, com a fortuna), temos o rompimento com uma realidade dada e imutável. Noutras palavras, temos o destino – desvinculado de uma concepção divina – e a capacidade do homem de evitá-lo, modificá-lo e conduzi-lo. Em suma, fortuna e virtú são características temporais, mesmo que na concepção de Maquiavel a história seja cíclica. Cabe ao príncipe de virtú, portanto, analisar a fortuna e buscar – não apenas em seu manual – mas nas semelhanças de acontecimentos pretéritos a solução encontrada pelos ilustres e repeti-la, respeitando a particularidade dos tempos.
Assim, a iniciativa deve estar em consoante com as circunstâncias e, também, com as características próprias de cada organização política. Maquiavel as dividiu, sempre tendo em mente que os conflitos internos devem ser controlados e regulados pelo Estado – detentor de boas armas e boas leis -, em principados e repúblicas, dedicando, como o título da obra sugere, maior destaque aos primeiros, subdividindo-os em hereditários e novos. Ainda que com particularidades, com variações nos métodos de domínio – sendo que os principados novos exigem mais cuidados e atos de violência e desagrados – as formas de manutenção são similares: evitar a opressão ao povo e diminuir o poder de quem pode se configurar em ameaça. Ambos os processos se valerão da habilidade do príncipe de
virtú em dissecar a situação real - sem floreios - e ação imediata.
Uma vez dominados e em relativa paz, os príncipes devem agir para que a fortuna não os apanhe desprevenidos. Fiel ao que se propôs de indicar caminhos, o autor exemplifica de forma crua as características que um governante deve conservar para evitar desvios bruscos e perda de poder. E, ao abordar itens que tornem o príncipe imune ao ódio dos súditos, como liberalidade ou parcimônia, crueldade ou piedade, amor e temor, honra à palavra dada, notamos que o sentido clássico de virtude é desconsiderado, passando a se denominar como a atitude que manterá o governo (lembrando que no principado, governo e príncipe são um), e as práticas, por mais desprezíveis que possam parecer, almejam um fim benéfico a todos: ao príncipe, segurança em seu poder; ao povo, estabilidade da qual herdará boas leis e instituições. Com isso podemos dizer que, embora imbuída de certa razão, é precipitada e simplista à crença de que para Maquiavel os fins justificam os meios.
Ainda nesse ponto de crueldade, reforço que somente o príncipe deve agir de forma violenta e apenas condicionado à manutenção do poder, gerando a já citada estabilidade, fator fundamental para a gestação de uma legislatura justa e surgimento de boas instituições. Disso resultará a participação do povo na construção de uma nação forte que, coesa internamente, não padecerá de assédios externos. O povo, assim, mesmo nos principados, é de fundamental importância para o advento de um Estado forte.
Maquiavel termina conclamando a Casa dos Médici a proceder da maneira que for necessária, segundo muitos dos seus “conselhos” e exemplos, para tomar a Itália e libertá-la. Ele, que havia iniciado alertando que trataria daquilo que é, não do que deveria ser, reforçando ao longo do texto esse intuito, ao dizer que
“ pareceu-me mais conveniente ir direto à verdade efetiva da coisa que à imaginação em torno dela. E não foram poucos os que imaginaram repúblicas e principados que nunca se viram nem se verificaram na realidade” , termina com apelo esperançoso:
“Que não se deixe, pois, passar esta ocasião, a fim de que a Itália veja surgir depois de tanto tempo seu redentor (...). A todos cheira mal este bárbaro domínio. Que vossa ilustre Casa assuma, pois, este empenho com o mesmo ânimo e a mesma esperança om que se assumem as campanhas justas (...)"
Ou seja, qualquer semelhança com a "BOTA" do XV e XVI não é mera coincidência.
Finalizando, Maquiavel pode não ser o marido que desejamos pra nossa filha, mas, dentro do contexto, não é tão sangue ruim assim...
Leiam o livro. Vale a pena!