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O personagem só faz o que quer? Ah, conta outra!

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O personagem só faz o que quer? Ah, conta outra!
13/10/2015, Sergio Rodrigues
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O personagem de Jeff Daniels sai da tela em ‘A rosa púrpura do Cairo’, de Woody Allen

A primeira referência que encontrei à autonomia dos personagens literários me impressionou muito. Era adolescente, começava a tentar pôr de pé o plano insensato de um dia escrever livros e fiquei boquiaberto ao descobrir que um escritor podia se declarar impotente diante do livre-arbítrio manifestado por criaturas que ele próprio tinha criado. Como assim – então não era o autor que mandava? A revelação constava de um dos prefácios que Erico Verissimo, meu primeiro ídolo literário, havia escrito para suas (ainda incompletas) obras completas, coleção de capa dura azul que ocupava lugar de honra na estante lá de casa. Não demorou para que meu estranhamento desse lugar a uma profunda reverência diante do supremo mistério da criação.

Não registrei na memória o momento exato em que mudei de ideia, mas lembro-me de, poucos anos mais tarde, abrir um sorrisinho sarcástico toda vez que esbarrava – e esbarrava o tempo todo – num artigo ou entrevista em que um escritor evocava o supremo mistério da criação, alegando que seus personagens só faziam o que bem entendiam e tal. Pô, aqueles caras pensavam que estavam enganando quem? Tremendo caô, claro. Tentativa canhestra de mitificar e dar caráter quase divino a algo que era apenas fruto de trabalho, esforço, um conjunto de decisões racionais postas no papel. Sem mencionar o fato de que era muito cômodo jogar nas costas do personagem, esse ser fantasmagórico, uma responsabilidade – política, ética – que era do escritor e de mais ninguém.

Demorou um pouco para que eu, escrevendo, reescrevendo, quebrando a cara, tentando outra vez, começasse a entender que aquela história de autonomia dos personagens nada tinha de papo furado – embora se prestasse, sim, a diversas estratégias de romantização do fazer literário, um miasma que parece inerente ao meio – e que as razões disso não são esotéricas, mas perfeitamente sensatas e explicáveis. Sendo assim, tentarei explicá-las.

A discussão sobre o que vem a ser exatamente um personagem é longa e animada. Em seu livro “Como funciona a ficção” (Cosac Naify), o crítico James Wood situa os dois extremos entre os quais ela se desenvolve: de um lado a crença excessiva no personagem (cultivada por gente que quer se identificar com eles, que exige que eles se desenvolvam ao longo da história, que sejam “pessoas legais”) e do outro a descrença excessiva no personagem (postura de críticos pós-modernos para quem o personagem não existe, é um mero conjunto de palavras no papel – como se a própria literatura fosse outra coisa).

Wood assume uma posição no meio do caminho. Se não chega a matar a charada do que faz um personagem saltar da página enquanto outro fica deitado lá como se estivesse num caixão, tem o mérito de relativizar o famoso mandamento do romancista E.M. Forster de que, para serem realmente bons, os personagens devem ser “redondos”, tridimensionais, complexos, em vez de caricaturas chapadas e dotadas de apenas um ou dois traços convenientes para fazer avançar a trama. Como lembra Wood, a história da literatura prova que caricaturas podem ser vivíssimas, enquanto certos sujeitos, mesmo meticulosamente esféricos, não conseguem disfarçar o rigor mortis.

De qualquer forma, chapados ou redondos, sensatos ou malucos, realistas ou não, descritos de forma sumária ou exaustiva, o que acabei aprendendo é que os personagens, como todos os elementos de uma composição literária, sempre obedecem antes ao texto que ao autor. Isso parece um sofisma, mas não é. Aquela minha ideia juvenil de que um escritor tem inteira liberdade – e, portanto, controle total – na hora de escrever era, em sua tentativa de combater o romantismo do “personagem autônomo”, também uma noção romântica.

A liberdade total só existe enquanto a página está em branco. A primeira palavra já lhe tira um naco ao sugerir um tom. A segunda e a terceira começam a desenhar uma cena, um ritmo, um páthos. Cada palavra escrita reduz a liberdade autoral um pouco mais, subordinando as que virão à lógica inclemente das que existem até ali. Sim, claro que sempre é possível refazer tudo, voltando à página em branco, mas isso significa recomeçar o jogo e não mudar sua regra. Não se trata tampouco de uma apologia da coerência absoluta ou da caretice narrativa: se a opção for pela incoerência ou pela fragmentação, também elas logo imporão suas leis. A regra é uma só: o texto manda cada vez mais, o autor cada vez menos. Chegando ao ponto final, o escritor não passa de um escravo ou autômato que nada pode fazer além de, justamente, pingar o ponto final.

É nesse sentido que o personagem ganha autonomia. Não por ser uma entidade sobrenatural, uma espécie de “pessoa” de verdade, só que de mentira, capaz de impor sua vontade ao autor. E sim porque o texto ao qual ele deve sua existência demanda que tenha certas ações e certos pensamentos em vez de outros, sob pena de que o edifício inteiro, soando falso, desmorone aos olhos do leitor.

Fonte: http://todoprosa.com.br/o-personagem-so-faz-o-que-quer-ah-contra-outra/
 
Última edição por um moderador:
Por causa das palavras, os textos são imitação da realidade, ou melhor imitações reproduzidas por ela, e na qualidade de arte copiam a vida, podendo inclusive ganhar vida. Poderiam até desejar mudar a linguagem ou o veículo, etc... mas ainda que fosse apenas um simples personagem na mente do autor sendo transmitido por algum mecanismo diretamente na mente do leitor aquela seria uma memória subordinada também pelas circunstâncias.
 
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