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O naufrago

O naufrago

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Vai ficar aí até aprender a ser gente, disse a mãe enquanto fechava o filho no quarto. Levado ao pé da letra, seria um longo castigo, mas na prática isso se convertia no período de uma tarde. Isso não diminuía o aborrecimento de Jorge; em seus sete anos, estava inconformado pela punição. Tinha certeza de sua inocência.

A mãe insistiu para que ele brincasse com o filho da vizinha, uma mulher gorda que as vezes aparecia para tomar café depois do almoço. Mas como iriam brincar juntos? Jorge era o único sobrevivente de um acidente aéreo, se encontrava sozinho em uma ilha tropical deserta; teria que comer cocos, bananas, e o que mais a natureza selvagem lhe oferecesse. Não cabia na história uma segunda pessoa, menos ainda o filho da vizinha. O moleque tentou brincar a força, adulterando a história, tentando convencer Jorge de que dois poderiam ter sobrevivido ao desastre de avião. Não, só um pode sobreviver!, rebatia Jorge em sua lógica infantil. E como essa lógica não convenceu o filho da vizinha, que insistia em pentelhar, Jorge se atracou com o moleque puxando cabelos e dando socos espalmados. Daí veio o castigo.

No quarto, com o bico do tamanho de uma tromba, ficou deitado de bruços sobre a cama, deixando a cabeça pender para fora enquanto olhava o chão. Só um podia sobreviver, repetia seu argumento em silêncio.

Nesse momento, um pontinho preto, um pouco amarronzado, cruzava o chão de piso branco do quarto. Jorge olhou atento. O pontinho se aproximava, e quando chegou perto, podia ver se tratar de uma formiga. Com suas mãos fofas e dedos roliços de infante, olhos em faísca pela descoberta, o menino atirou-se ao piso para cercar o pequeno inseto. Agora você é minha, bradou animado, esquecendo do castigo que cumpria.

Voltou a ser um homem ilhado, preso em uma ilha calorenta de palmeiras e praias, com a diferença de que tinha encontrado um outro sobrevivente do acidente aéreo, um cachorro. Mas faltava um nome ao animal, dilema que Jorge resolveu chamando-o, cheio de companherismo, de Bidu.

A formiga estava cercada, não podia escapar para lugar algum; as mãos de Jorge a impediam, e como se rebatesse nelas, ficava indo de um lado ao outro no pequeno espaço que o cerco deixara. O homem agora cruzava a ilha ao lado de seu animal, explorava cavernas nunca antes pisadas, procurava por água que não fosse do mar e frutos maduros que pudesse comer.

Mas para tanta exploração, tinha que se movimentar. Jorge não queria deixar a formiga escapar, mas também não podia deixa-la ir embora. Fazia parte da história. As mãos que até então cercavam o pequeno inseto, agora tentavam apanha-lo. Jorge percebeu que era grande demais para pega-la. Pensou em uma pinça, mas também não daria certo. Dispondo só de sua engenhosidade de criança, esticou bem o indicador e tentou fazer com que a formiga subisse nele.

Para onde aquelas perninhas minúsculas corressem, Jorge antecipava seu dedo na frente do caminho, mas a formiga não cedia. Ao encontrar com o dedo, mudava a direção. O dedo acompanhava cada guinada dada pelo inseto. Na ilha Bidu fugira, e o sobrevivente do acidente aéreo corria a ilha toda em sua busca.

Por um instante, as tentativas de fazer com que a formiga subisse em seu dedo fez Jorge divertir-se mais com elas do que com a brincadeira que corria solta em sua imaginação. Dava aquelas risadas curtas e espontâneas, se animava cada vez que acreditava ter tido exito; o inseto não subia, evitava aquele indicador que o perseguia, mas Jorge se ria.

Tanta foi a animação que seu dedo ao invés de deslizar pelo chão no encalço da formiga, agora parecia digitar um teclado de uma tecla só. Dava pequenos tapas com o dedo, tão rápidos quanto conseguia, totalmente concentrado na perseguição. Sua exaltação foi tanta que fugiu do controle, e ainda tinha um sorriso divertido no rosto quando notou que seu indicador pousara violentamente sobre o inseto.

O rosto ficou cinza e os lábios murcharam. Temeroso, ergueu o dedo e pode ver que a formiga, em sua delicada natureza, estava morta. Mais do que isso, tinha esfarelado, desprendendo patas do corpo, e o próprio corpo se fez em duas pequenas partículas sem vida alguma. Pedaços inertes como o olhar surpreso de Jorge. Não teve reação.

O sobrevivente não encontrou mais Bidu. Sentiu brotar a tristeza e uma solidão implacável. Com a ilha toda só para ele, teria que procurar por agua, cocos e outros frutos sem nada nem ninguém para lhe ajudar. Teria sido bom se mais alguém tivesse sobrevivido, concluiu cabisbaixo, sentado debaixo de uma palmeira enquanto contemplava o infinito azul do mar fundir-se no infinito azul do céu.
 

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