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O livro que leu a mente de Alfred Hitchcock

Bruce Torres

Let's be alone together.
O livro que leu a mente de Alfred Hitchcock
1 setembro 2016, 10:50 am

Há 50 anos foi publicado Hitchcock/Truffaut: Entrevistas, livro que reúne as conversas entre François Truffaut e o mestre do cinema de suspense, Alfred Hitchcock. Comemorando a efeméride, Nathan Heller, da The New Yorker, escreveu sobre a importância do livro que explora o processo criativo de Hitchcock, texto que reproduzimos a seguir (tradução de Carlos Alberto Bárbaro).

* * *
No começo de agosto acontece tradicionalmente o rescaldo da oferta cultural do ano. As salas de cinema estão repletas de filmes que — à semelhança de latas de sopa de feijão compradas e esquecidas há um tempão — ressurgem após não terem encontrado espaço no início do verão devido à sua insignificância e por serem barulhentos demais para o outono. De férias, e sem opções, as pessoas começam a recorrer àqueles livros que passaram o ano tendo outros livros empilhados sobre si; as canções do início do mês são, para dizer o mínimo, desconcertantes. Um dos raros destaques dessa temporada dos rejeitados é o aniversário de Alfred Hitchcock, que neste ano caiu num sábado, e marcou o fim de uma arrepiante semana hitchcockiana.

Hitchcock/Truffaut: Entrevistas, o livro em que o mestre do suspense revelou os recônditos de sua mente criadora numa série de entrevistas concedidas a François Truffaut, comemora os cinquenta anos de sua publicação_O livro merece ser novamente destacado porque, mesmo meio século depois de seu lançamento, permanece como um dos mais agudos e absorventes estudos sobre o pensamento criativo — sobre qualquer pensamento criativo — ainda em catálogo e disponível nas livrarias.

O projeto nasceu da devoção de um fã. Em 1962, Truffaut, ainda um jovem deslumbrado com as descobertas técnicas, entrevistou Hitchcock sobre o ofício do diretor, com a ajuda de um tradutor. A transcrição das sessões foi publicada — Truffaut, que acabou ficando obcecado pelo projeto, batizou-o de “o seu Hitchcock” — primeiro na França e a seguir nos Estados Unidos. Um livro de entrevistas parece algo tedioso, mas Truffaut explorou todo o seu campo criativo. Abrangendo filme por filme, o livro explorou toda a já então considerável obra de Hitchcock, e revelou que ele, considerado mundialmente um chamariz de bilheteria, não era simplesmente o mestre que os críticos da Nouvelle Vague desconfiavam ser, mas também um pioneiro da forma, responsável pelo progresso de uma jovem e popular forma de arte.

É normalmente do domínio dos críticos, entrevistadores e historiadores a análise dos mecanismos do trabalho criativo. E seus esforços nessa direção são importantes, porque as pessoas criativas não são normalmente lá muito boas em analisar o próprio trabalho. Artistas como Ingmar Bergman, Pablo Picasso e Bob Dylan responderam perguntas sobre seu trabalho por anos a fio, mas suas respostas sempre costumavam vir na forma deslizante de uma algaravia: sem solidez, confusas e cheias de pistas falsas. Hitchcock, por contraste, era o raro exemplo de artista moderno que não apenas sabia exatamente o que estava buscando, como conseguia colocar isso em palavras. Se você é do tipo que acredita que as artes duradouras são as que normalmente surgem das limitações do ofício — que o gênio tem um modo de se destacar em meio a incansáveis artistas que lutam contra as pressões de um mercado ao mesmo tempo em que tentam atender as exigências do público — , então as entrevistas de Hitchcock são a sua pedra de Roseta.

Bem, pelo menos para mim sempre foi. Ganhei meu exemplar deHitchcock/Truffaut: Entrevistas no meu primeiro ano de faculdade, de uma daquelas professoras legais de inglês, que se esforçavam para encontrar o texto ideal para cada um de seus alunos. “Eu aprendi tanto com esse livro”, ela escreveu na dedicatória. “Tenho certeza que você vai se conectar com ele como eu.” Talvez tenha sido a melhor recomendação que eu já recebi na vida e, desde então, sempre mantive o livro por perto. (Hoje ele está em uma prateleira estreita, bem ao lado de minha mesa, na qual estão os vinte e poucos livros mais caros para mim.) Eu o tenho na conta de uma obra literária, embora não seja, propriamente, escrito, e apesar de o ofício nele em discussão ser, obviamente, o cinema. O que a minha professora de inglês sabia também ficou óbvio para mim; o livro é sobre a arte de contar histórias, e é leitura obrigatória para qualquer pessoa em busca de construir uma história de modo a garantir que todo detalhe da narrativa seja importante.

Uma das coisas que mais gosto de fazer com meu exemplar é, como se faz com uma Bíblia, abri-lo ao acaso e ler um trecho fortuito.

Exemplo: eis aqui o diretor explicando seu uso frequente, e bailarino, da câmera suspensa para preparar a grande revelação do filme:

“[Alfred Hitchcock:] Elevei a câmera assim que [Anthony] Perkins sobe a escada. Ele entra no quarto e não o vemos mais, mas ouvimos: ‘Mamãe, preciso descer com você para o porão porque eles vêm nos vigiar.’ Depois vemos Perkins descendo com a mãe para o porão. Eu não podia cortar o plano porque o público ficaria desconfiado: por que será que subitamente a câmera se retira? Portanto, fico com a câmera suspensa, seguindo Perkins quando ele sobe a escada, entra no quarto e sai do enquadramento, mas a câmera continua a subir sem cortes e, quando estamos no alto da porta, a câmera gira, olha de novo para o pé da escada e, para que o público não se interrogue sobre esse movimento, nós o distraímos fazendo-o ouvir uma briga entre a mãe e o filho. O público presta tanta atenção ao diálogo que não pensa mais no que a câmera está fazendo, e graças a isso estamos agora na vertical e o público não se espanta ao ver Perkins transportando a mãe, e visto na vertical por cima da cabeça deles.

Ou no trecho em que Truffaut pergunta a Hitchcock sobre uma cena de amor deIntriga internacional, em que Cary Grant, no papel de um jovem executivo em fuga, e Eva Marie Saint, no papel tradicional da loira hitchcockiana, se esfregam num vagão de trem após um encontro formal no carro-restaurante:

“[François Truffaut:] Eles estão encostados na parede, beijam-se, e seus corpos giram sobre si mesmos escorregando contra a parede divisória. Na tela é perfeito, mas na filmagem devia parecer muito irreal.

[Alfred Hitchcock:] É, eles rodam diante da parede; é sempre o mesmo princípio: não separar o casal. Creio que há muito a fazer com as cenas de amor. Em geral, trata-se de colar o homem e a mulher um contra o outro, mas seria interessante tentar o contrário e colocar cada um deles numa extremidade do aposento. É impossível fazer isso pois, nesse caso, para que fosse uma cena de amor, eles deveriam se mostrar um ao outro e teríamos uma cena de puro exibicionismo

Se você não acha esse tipo de exposição detalhada sobre o ofício — o que John Updike definiu certa vez como “o avesso da tapeçaria” — emocionante, bem, então acho que você deveria arranjar um lugar no mezanino de um musical. A acuidade das entrevistas é largamente devida a Truffaut, também ele um diretor de cinema, além de fã informado e crítico sem meias palavras. (Ao abordarCorrespondente estrangeiro, um filme de 1940 de Hitchcock, Truffaut observa que o filme “é visivelmente um filme B.” Hitchcock, longe de ficar ofendido, não apenas concorda, mas explica o porquê.) Discutindo a primeira obra-prima americana de Hitchcock, Rebeca: a mulher inesquecível, Truffaut destaca uma sutil inovação do diretor, que seria crucial pra os seus filmes seguintes, a descoberta de que filmar dois planos em contraste e desequilíbrio poderia servir para criar uma tensão:

“[François Truffaut:] As relações [da protagonista] com a governanta, sra. Danvers, são algo novo em sua obra e que mais adiante encontraremos com frequência, não só no roteiro, mas também em termos plásticos: um rosto imóvel e outro rosto que o aterroriza, a vítima e o carrasco na mesma imagem…

[Alfred Hitchcock:] Pois é, aí está uma coisa que fiz de forma muito sistemática em Rebeca. A sra. Danvers quase não andava, nunca era vista se locomovendo. Por exemplo, quando entrava no quarto da protagonista, a moça ouvia um barulho e a sra. Danvers já estava ali, sempre ali, de pé, sem se mexer. Era um modo de mostrar a situação do ponto de vista da heroína: ela nunca sabia onde estava a sra. Danvers e assim era mais aterrorizante; ver a sra. Danvers andando a teria humanizado.”

À medida em que Truffaut vai pressionando Hitchcock sobre escolhas após escolhas, sobre um filme depois do outro, uma lógica elaborada e refletida surge na ribalta — o ponto em que ambos os diretores, cúmplices na inclinação por um meticuloso formalismo visual, estão prontos a revelar seus segredos. Em mais de uma ocasião, Hitchcock tenta negar sua autoria de um modo que beira as raias da cegueira. Minha primeira escolha de trechos ao acaso foi a discussão sobre Janela indiscreta, de 1954, para mim o maior dos Hitchcocks. (O filme tem tantas simetrias e lados estruturados de forma rígida quanto os de um diamante, e a despeito disso é um de seus filmes mais calorosos e fáceis de ver; os personagens são invocados em sua inteireza e com amor, o que, para ele, não é algo assim tão natural.) E apesar disso, a memória do diretor sobre esse filme em particular vai da indiferença ao desagrado. Ele rejeita a trilha sonora de Franz Waxman — cuja costura sobre uma cacofonia de sons urbanos ainda soa surpreendente até hoje — como desapontadora. Nem mesmo o mais determinista entre os diretores do cinema, aparentemente, conseguia enxergar com clareza o caminho que pavimentou em suas conquistas.

Numa introdução ao livro, Truffaut explicou que seu objetivo era inspirar uma reavaliação da obra de Hitchcock: “Então me veio a ideia de que […] se [Hitchcock]aceitasse, pela primeira vez, responder a um questionário sistemático, daí poderia resultar um livro capaz de modificar a opinião dos críticos americanos.” Em última análise, no entanto, Hitchcock/Truffaut: Entrevistas ajudou mesmo foi a lustrar certos mitos. A certa altura do livro, Hitchcock explica seu tropismo por “loiras sofisticadas”: “Creio que as mulheres mais interessantes, sexualmente, são as inglesas.” (Truffaut responde do único modo que um francês poderia responder: “Respeito seu ponto de vista.”) Se o livro conseguiu desfazer a imagem de Hitchcock como um operário dos estúdios, ajudou ao mesmo tempo a alimentar a sua recente reavaliação como um cafajeste dominador e intransigente.

Em outro sentido, porém, Hitchcock/Truffaut: Entrevistas fez exatamente o que se propunha fazer, e um pouco mais. O formato de entrevista longa tinha seus precedentes críticos no começo dos anos 1960 — a Paris Review havia começado as suas, centradas em nomes como William Faulkner, Ernest Hemingway e Dorothy Parker — mas o livro de Truffaut foi um dos primeiros projetos a ir além das questões biográficas e filosóficas e explorar os problemas da técnica. Truffaut, em suas perguntas, provou que uma teoria da composição podia ser luminosamente explicada durante o processo, que a invenção não era uma feliz obra do acaso, mas um hábito da mente. Hitchcock, em suas respostas, demonstrou que a ilusão da falta de empenho na produção de produtos de massa era oriunda de pequenas escolhas, fruto de intenção e cuidado. O legado dessa investigação se reflete hoje na hermenêutica da cultura pop, na televisão que reflete sobre a própria televisão e nas entrevistas em podcasts. Hitchcock/Truffaut: Entrevistas colaborou para dar forma à vida criativa atual. Mas o livro nos recorda também que a arte ainda guarda mistérios inalcançáveis até mesmo para as mais delirantes conquistas do ofício.

Fonte: The New Yorker

Fonte da Tradução: http://www.blogdacompanhia.com.br/2016/09/o-livro-que-leu-a-mente-de-alfred-hitchcock/
 

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