O relógio de algarismos vermelhos trocou de minuto, seis horas da manhã. O pequeno celular vizinho se acendeu, começou a vibrar e com os alto-falantes iniciou uma contagem. Um. Dois. Três. Quatro! Uma canção.
Wake up and live, y’all,
Wake up and live!
Wake up and live now!
Wake up and live!
O homem despertou num estalo descobrindo-se e sentando no ninho de sua cama. Com a visão ainda embaçada tateou pela parede atrás do interruptor. O quarto iluminou-se com uma fraca luz amarelada barrenta. Passou à mão nos emaranhados cabelos, apoiou-se nos joelhos e ficou estático, ouvindo o som da manhã. Desligou o celular.
O lugar em que se encontrava era precário, como um apartamento de fim de estrada, cinco dólares à noite. As paredes descascavam enquanto o teto suado gerava bolor. Tomadas tinham fios exposto e desencapados. Fora o estado da mobília. O guarda-roupa velho e quebradiço. A cama bamba de lençóis verdes. O criado mudo sem gavetas. O único bem de valor era um toca discos Toshiba.
Ele se pôs a andar descalço. Foi ao banheiro vestindo apenas seu calção. Coçou a banda esquerda do traseiro.
O local jamais passaria numa inspeção sanitária. A velha privada sem acento implorava socorro enquanto regurgitava suas entranhas. Um espelho quebrado e ensebado pairava sobre uma pia com produtos de higiene. O chuveiro pedia por reparos, ou criminosos a serem eletrocutados. Mas ele não parecia se importar. Urinou e escovou os dentes. Passou espuma de barbear no rosto, seguida da lâmina. Cortou-se próximo a orelha.
Ao observar o corte no espelho espantou-se com sua aparência. Nenhum sinal de velhice, sem rugas ou fios brancos. “Quantos anos tenho?”, pensou. Usou um esparadrapo, limpou o rosto na toalha e saiu pensativo do banheiro.
Cruzou o quarto até a cozinha. Nada chamativa, possuia uma mesa acompanhante da solitária cadeira. Antigos eletrodomésticos vermelhos. No armário sem portas cinco latas enferrujadas com rótulos de fita adesiva escrita frijoles. E uma cortina amarela florida na janela lacrada. Puro charme.
Sobre a mesa havia uma garrafa de Jack Daniel’s ao lado de um papel de carta rosa com filhotinhos de cães brincando no cabeçalho. Nele uma mensagem escrita de caneta e boa caligrafia: “Um pequeno presente. Bom trabalho.”
Era do seu chefe. Não era surpresa ele mimar o funcionário nos dias importantes.
O homem pegou a garrafa e a guardou na geladeira. Apreciava as intenções dele, mas infelizmente possuía repulso a álcool. Sempre que bebia tinha pesadelos. Uma maneira de seu corpo lembrar-lhe seus pecados, mesmo de fato ele nunca ter-los esquecido.
Sempre o mesmo sonho, as mesmas imagens. Ele dirigia um carro numa estrada de pouca iluminação. Não chovia, mas relâmpagos mostravam sua ira. Ao seu lado um vulto, um ser, um estranho familiar. Ele ria e pulava no banco lhe apontando o dedo. E quando o homem movido pela curiosidade se virava ao desconhecido o carro batia, capotava e ele acordava. Mas agora dormia tranqüilo, sem sonhos, por favor.
Vasculhou o interior gelado da Brastemp em busca de algo para comer. Encontrou garrafas d’água, uma Coca pela metade. Frutas estranhas e enrugadas. Um queijo branco semi-inteiro. Bolo gelado. Pegou o queijo e o bolo. Esquentou água no fogão para o café. Arrumou a mesa e se serviu de café amargo e pedaços dos produtos gelados. Uma refeição solitária.
Voltou ao quarto, largando a mesa com sua sujeira. Uma decoração digna do local. Fez algumas barras num cano do teto, fratura exposta do podre lugar. Flexões no chão. Ia se banhar, mas antes queria algo para ouvir.
A caixa de vinis valia muito. Pelo menos em valor sentimental. Um tesouro enterrado no entulho. Ele a folheou como um livro. The Who. Beatles. Stones. John Denver. Armstrong. E muitos outros clássicos de variados tipos e gostos. Sentia-se como uma criança numa sorveteria de mil sabores. Acabou escolhendo um de seus favoritos. O álbum era The Times They Are a-Changin do Bob Dylan.
Tirou o disco, analisou e o encaixou no aparelho musical. Ele girou e girou. Colocou com delicadeza cirúrgica a agulha sobre ele e foi calmamente se banhar.
No banho ouvia a melodia. Acompanhava mentalmente a letra nostálgica.
De volta ao quarto nu em pelos jogou a toalha num canto qualquer. Viu-se em frente do espelho duplo do guarda-roupa, o abriu e encontrou um montinho de roupas suavemente dobrado e separado. Suas roupas de trabalho.
Vestiu primeiro as meias e a cueca preta. Calça branca e camisa azul celeste de riscas brancas. Cinto negro de fivela dourada. Sapatos pretos muito bem engraxados. Uma gravata azul escuro com um grampo prateado. E finalmente um paletó branco de riscas negras. Tinha que ficar elegante para as congratulações do chefe após seu trabalho. Afinal aquele era o último.
Passou perfume e óleo nos cabelos. Os penteou. Prendeu seu Rolex cor de bronze no pulso direito. Colocou um lenço azul, do mesmo tom da gravata, no bolso do paletó. Olhou-se no espelho para verificar possíveis problemas com fios de cabelo fora do lugar ou migalhas de comida entre os dentes. Nada. Estava perfeito, elegante. Só faltava um detalhe.
Pegou seu coldre e o afivelou junto ao cinto. Nele foi depositado uma Ruger Redhawk de calibre 44. junto a algumas balas. Era prateada com empunhadura de madeira envernizada, onde havia em letras garrafais as inicias de seu nome.
Como ainda tinha tempo decidiu revisar seu dever. Pegou um pequeno envelope amarelo do armário, o abriu e releu o material. Memorizou todas as informações ali contidas, inclusive a aparência das pessoas que em breve deveria conhecer. As três fotos na papelada. Dois homens e uma mulher.
Uma simples tarefa. Depois era só colher os frutos, a esperada promessa do chefe, tão importante que fora necessário uma vida de servidão para obtê-la. Mas agora, perto do fim, começou a se questionar. Ainda se importava? Quando enfim ela se cumprisse ainda teria o mesmo valor? Poderia ele retornar ao lar? Já sabia as respostas. Não. O homem que outrora usou desta sua carne, aquele que se importava e tinha um teto para chamar de lar morreu em dor. Ele era outro, do corpo remodelado com a argila de longas caminhadas. Tinha nas mãos um invisível tom vermelho vivo, nos olhos a cansada expressão de eras. Outra vida substituía à antiga.
Tentou uma vez mudar seu destino. Em Pérolas reencontrou o caminho, aprendendo no trajeto como perdoar e voltar a viver, a amar. Foi feliz até a chegada de nuvens agourentas. O fogo que lutou para levar calor a seu coração apagou-se com o rompimento das correntes. Uma pequena brasa incandescente, chamada esperança, ainda se esforçava para existir, motivada pela promessa. Mas a muito se apagou. Junto com seu passado.
O antigo homem sonhador em busca de conquistas? Morto. O antigo homem de negócios, de família? Morto. O antigo homem renascido, dono do limoeiro? Morto. Todos podres e enterrados. Só restava o homem de terno, um mero peão em jogos maiores. Uma marionete que dançava com dedos, de cordas tão curtas que seu senhor quase o agarrava. E ele sabia disso.
Então porque continuava a se submeter? Ora, o que mais poderia fazer? Estava vivo e como todo ser lutava por essa chama, temia o escuro. Terminará com tudo e seguirá em frente até suas pernas cederem. Até tudo nele ceder. Jurou para ela no último instante, no desentrelaçar de dedos.
Bateram na porta:
_Senhor, hora de ir.
O homem jogou os papeis com desdém. Foi até a lascada porta, abrindo-a e encontrando o pobre garoto, de cicatrizes no corpo e péssima saúde:
_Bom dia Gaspar, está pronto?
_Sim meu senhor. _ começou a tossir, cuspindo uma mistura de saliva com catarro. _ Me desculpe por isso.
_Tudo bem. Vamos indo.
O homem de terno olhou uma última vez para o apartamento. Viu que eram dez para a sete. Riu, estava quase atrasado. Mas não se importava ali o tempo não existia.
A porta bateu deixando Dylan a cantar sozinho.
Estavam no segundo andar sobre um chão de tacos de madeira suja. O corredor era iluminado por uma cadeia de fios com pequenas lâmpadas, como luzinhas de natal. Na porta as costas havia letras gastas de ferro penduradas formando a palavra MAN GE. As demais portas do corredor, quatro no total, estavam todas lacradas com tabuas podres e má pregadas. Uma grade de um suposto elevador podia ser vista, com uma desanimadora placa de “CONDENADO” acompanhando-a.
Os dois seguiram pelo lance de escadas, o rapaz à frente com o homem atrás. A cada passo dado nos degraus à madeira rangia, querendo dividir-se e prender pés surpresos. Gaspar respingava a medo, apertava sua lanterna como uma criança aperta a mão dos pais em filmes assustadores.
Chegando ao primeiro andar sentiu-se ainda mais sufocado pelo terror. Como no andar acima, existiam cinco quartos e estes estavam lacrados. A principal diferença dos dois andares, além da altura, era apenas uma. Sussurros.
Era possível ouvir vozes de dentro dos quartos, palavras de lamento e desespero. Frases repetidas de loucura e perdição.
Sons de bola quicando acompanhados de risadas. “É como voar!” _ dizia uma mórbida voz de criança.
Sons de salto de mulher misturados com xícaras quebrando. “Meu bem, estou grávida.” _ dizia a mulher acompanhada de sons de disparo, carne ao chão, gritos masculinos e outro disparo.
Risadas de um velho enlouquecido que balbuciava palavras sem sentido seguido de madeira caindo, teto rangendo e algo balançando.
As últimas palavras de uma mulher que no desespero amaldiçoava seu criador.
E eles se repetiam, de novo e de novo, até o ponto em que o infinito não seria algo tão distante.
Gaspar tapava seus ouvidos com as mãos, não gostava daquilo. O homem mesmo tendo sua humanidade extinguida pela grossa lixa do dever ainda dispunha de um pouco de compaixão. E a gastava com o garoto. Apoiou sua mão sobre o ombro do rapaz e acelerou o passo. Não foi preciso palavras, um simples toque de carne viva e quente bastou para Gaspar retomar suas rédeas e ignorar as diabruras do submundo.
Desceram para o térreo, o que outrora fora a recepção do motel Lua Vermelha. Que num diferente tempo estaria abarrotado. De casais apaixonados que em breve copulariam amor. De jovens na busca hormonal do nirvana sexual. De pessoas querendo descanso barato. De harmonia carnal e espiritual. Agora era apenas um punhado de pó. Seu pequeno bar, que em dias mais claros garantia sustento a barrigas, tornou-se uma sombra de mofo e imundice onde nem aranhas gostariam de morar. Cacos de vidro decoravam o chão junto a peças de roupas.
Cartazes lutavam para se manterem presos nas paredes. Alguns de moças de maiô eroticamente projetadas no papel. Outros com uma figura caricata de um maquinista, de olhos grandes e boca largamente sorridente, com quepe azul e macacão. Em seu chapéu havia um brasão de uma águia segurando um ovo dourado.
Divirta-se com moderação_ dizia em um deles. Proibido dar bebidas a menores_ em outro com o indicador fazendo não. Chega de opressão, viva! _ com o maquinista brincado de acerte a marmota, mas com figuras de soviéticos e Tios Sam.
Do outro lado da recepção estavam os pertences de Gaspar, juntos a um molho de chaves inúteis. Um saco de dormir, garrafas d’água, pacotes de bolachas e um despertador de ponteiros.
_Vai abandonar suas coisas? _ disse o homem.
_Sim meu senhor, não me pertencem mais. São de Zeppelin.
O homem suspirou:
_ Você não devia ter vindo garoto. Só estou aqui por que precisava relaxar para meu último trabalho._ era mesmo verdade? _ Aqui pode ser esquisito, mas me é familiar. Já você é como um estranho no ninho. Um perdido que sua a medo.
_Não meu senhor, Gaspar deve servi-lo. Sem mim o senhor ficaria sem quarto e comida.
_É verdade, o agradeço por isso. _ deu-lhe tapinhas nas costas.
Os dois saíram do estabelecimento. Seguiram os fios de energia. Eles além de alimentar a construção formavam uma estreita trilha de luz na deserta rua da cidade. Graças ao letreiro de neon, uma lua piscante, era possível se ter uma noção dos arredores. Aos lados construções enegrecidas de função desconhecida. Atrás a fachada do motel, janelas quebradas e mensagens na parede. “Que o Senhor nos proteja” em vermelho escorrido. “Luz” repetidas vezes. Um desenho infantil do maquinista com a frase “Morte a Billy Boy!” E a frente uma estação de monotrilho. De resto, breu.
Onde não era iluminado só existia o preto. Não o preto da noite, de estrelas, de repouso. E sim o preto da morte, da inexistência, do nada. Era como se um desastrado pintor ouve-se derrubado tinta preta por toda a superfície de um papel. As pequenas regiões não pintadas seriam o fulgor da esperança.
Seguiram por entre os cabos, na luz, com piche sinistro a lhes rodear. Os passos desatentos ignoravam historias esquecidas ao chão. Jornais. Bolsas. Relógios. Sapatos. Depois de poucos metros ficaram de frente com a estação. Do pouco que se via destacava-se um grande arco de madeira talhada, em cima de um largo túnel de tijolos sobre as catracas. Nas paredes pôsteres do maquinista, um dando adeus e outro dando boas vindas à Nova Zeppelin.
Gaspar ia sempre à frente, determinado a retornar ao lar. Atravessaram a catraca, chegando rapidamente à plataforma e ao antigo monotrilho. Era amarelo, de tom brilhante, possuindo somente um vagão. Seu trilho estendia-se por um longo percurso, flutuando no vazio sem fim. Os cabos de força estavam presos a essa pequena faixa de terra.
Entraram. O homem sentou-se nos acentos de ferro almofadados. Gaspar mexia no painel de controle, levantando chaves de energia e ligando o piloto automático. O monotrilho acendeu seus faróis e começou a se mover. Então tudo se apagou.
_Meu senhor, meu senhor! _ desesperava-se Gaspar.
_Calma garoto.
_Senhor, as feras...
Murmúrios o interromperam. “Onde está meu gato?” “Me perdoem!” “Agatha, o que teremos para o jantar?” “Vou me atrasar.” “Estou sangrando!” Som de água fervendo. De bolhas estourando. O vento gelado do nada. Riscos no quadro negro. A queda da moeda no poço. O terror do silêncio.
Mesmo com a total escuridão era possível ver movimentos nas sombras. Não com os olhos, e sim com pressentimentos, com a vida. Por que a vida é luz. E na sua ausência sua busca torna-se insaciável, usando como último recurso o brilho dos frascos da mente. Era isso que os espectros buscavam. Essa essência vital. O que lhes foi roubado.
O barulho aumentava. Sons de pés e mãos nuas no frio metal. Sons do abstrato atravessando a impenetrável matéria. Sons do esgotamento procurando calor. O próprio ar se enrijecia, suava. Surgia a urgência, o frio no abdômen, a sensação de proteger o fogo de velas num abissal tsunami.
_Meu senhor! _ tossiu.
_Calma.
O garoto se desesperava a ponto de soluçar. O homem sabia dos perigos, mas não teve medo. Sabia que a lanterna de Gaspar poderia solucionar temporariamente o problema, mas não a usaria. Ele tinha consciência de “quem” manipulava a situação. Tinha consciência do que iria acontecer.
As luzes reacenderam. A frente dos bancos meia dúzia de formas humanóides negras como pupilas estendiam suas mãos para tocá-los. Caíram de joelhos e gritaram ensurdecedoramente, fazendo o imutável homem de terno render-se e tapar os ouvidos. E como do nada de onde vieram, os espectros sumiram.
_Descansem em paz pobres atormentados. _ disse o homem.
Gaspar derramava lágrimas. Estava agarrado ao braço de seu senhor que o encarava. O soltou encabulado:
_ Desculpe Gaspar meu senhor.
_Tudo bem criança.
Finalmente começaram a se mover, dando adeus a Nova Zeppelin. Alguns minutos depois a câmera móvel do vagão criou vida, junto aos alto-falantes. Do interior acústico saia uma voz grave e alegre almejando atenção.
_Um, dois, três testando. Um, dois, três testando. Como é legal dizer isso! É... Por que o cozinheiro atravessou a rua? Para pegar a galinha, é claro. _ sons de risadas. _ Por favor, não foi tão engraçado. Não sou comediante, sou apenas o modesto Dr. Marco. _ sons de aplausos. _ Ei vocês no vagão, estão vivos certo? Falem comigo! Ou ficaram chateados com minha brincadeira? Admitam foi engraçado! _ sons de risadas.
A voz irritante ecoava pelo veiculo. Moscas seriam mais reconfortantes.
_Eu não posso ouvi-los. Falem no microfone do painel, estou com saudades. _ sons meigos de oh.
O homem enfureceu-se sacando sua arma e atirando contra os alto-falantes. Antes o garoto se surpreenderia com as habilidades de seu senhor, a mira apurada, a velocidade com que abaixava o cão. Mas já virá o homem em ação no passado. “Duas balas bem gastas”, foi tudo o que conseguiu pensar. De resto a viagem prosseguiu tranquilamente. Não havia muito que se olhar pela janela, a paisagem era piche negro. A câmera movia-se incansavelmente. De língua cortada nada podia fazer.
Passado um tempo avistaram a Cidadela. Impetráveis muros de concreto liso rodeavam o lugar, com pontos despedaçando revelando ossos de ferrugem por debaixo da carne rochosa. Uma dúzia de guaritas nascia de seu topo, e somente três ainda viviam com sua luz de farol a rodopiar nas orbitas de mecanismos. Todos de pintura descascada azul cinza, com a marca da águia e seu ovo, este com um G negro no meio, em destaque. Do monotrilho não era possível ver mais nada, com exceção da torre. De dentro dos muros erguia-se a gigantesca torre cor de bronze, de ferro, de antigo. Feita de puro metal em vários formatos, como a junção de muitas construções por um arquiteto preguiçoso. Saiam-lhe vértebras pontudas, calhas arrebitadas e canos que escoavam fumaça. Nos gumes e quinas viviam pequenas câmeras, girando loucamente de curiosidade. As poucas janelas eram lindas, de tom antigo, o vidro claro e transparente.
Os fios salvadores que os acompanhavam desde Nova Zeppelin rodeavam a muralha. Postes e luminárias de baixa intensidade iluminavam as calçadas do ambiente. A luz era fraca, mas comparando com o outro lugar, luxo.
O trilho seguia por debaixo da muralha, o veiculo acompanhou-lhe. Adentrou um túnel e acionou os freios. Parou. Agora iria dizer “favor cuidado ao desembarcar” se não tivesse sido tocado pela deficiência da fala. Abriu as portas.
A estação era chamativa. Apesar de ser no subsolo apresentava estrutura artística, as grossas vigas no teto enfileiradas igual espinha de peixe e arredondadas em meia lua eram pintadas de vermelho vinho, com bolotas de lâmpadas iguais faróis de carro. Acima telhas de amianto hora avermelhadas hora cor de pêssego, dependendo da iluminação. O chão com piso de branco marfim brilhava igual pérolas ao sol, intensificado por detalhes espiralados azul água. Alguns postes negros sobressaiam à vista, finos e com nervuras a decorá-los. Um relógio morto pendia de um deles, ao lado de bancos acinzentados. Nenhum lixo, nenhuma sujeira, nenhum ser. Bem vindos à estação dois.
O homem apertou a mão do rapaz e deu-lhe adeus:
_Tenha cuidado garoto, e obrigado.
_Até logo meu senhor. Gaspar também agradece.
E simples assim se despediram. O homem de terno desceu do vagão e Gaspar o religou. O veiculo voltou a se mover, não para a estação um, para as sombras da cidade. Mas em direção oposta, para além dos trilhos, além do alcance de seu senhor. Acenaram um ao outro em despedida. Mal sabia o homem que quando se reencontrassem o garoto não o reconheceria. Por que ele não seria mais seu senhor. Senhores são fortes, inalcançáveis. E ele não era assim. Futuramente o ruir de seu mundo revelará suas fraquezas. Machucará a planta dos pés nos cacos de sua vida sem sentido. E chorará de arrependimento. Só assim ficará forte. Pelo garoto. Por suas amadas. E talvez por todos. Menos o nada.
O homem agora sozinho cruzou a plataforma. Em seu final existiam duas escadas com um elevador no meio. Grossas portas de metal. Apertou o botão e aguardou o ponteiro mover-se em sentido anti-horário. Quando apontou para B2 as portas se abriram. Ele entrou e encarou a pequena câmera com desconfiança. Ignorou-a e escolheu seu destino.
Subiu.
Desceu em um dos andares superiores da torre. Num corredor estreito, vazio, de paredes lisas e desenhadas abstratamente em laranja. O teto desabado expunha centenas de canos cor de metal embaralhados, alguns vazando vapor, outros pingando óleo nas paredes. Andava com passo acelerado, batendo os saltos do sapato nos tacos e entulhos no chão. Passou por uma mesa e cadeira vazias, exceto por um interfone. Abriu violentamente a porta dupla no final.
_Marco!_ gritou.
Era um escritório. Estantes com livros e documentos, cheias de pó. Plantas mortas de desidratação em vários vasos espalhados. Cadeiras. Câmeras nos cantos. Quadros de motores e carros. Esquemas em papeis azuis de alguma engenharia. Recortes num quadro de mulheres estilo década de cinqüenta. Sobre a mesa uma flor morta, um interfone, material de escrever, uma presilha de cabelo, uma placa com o nome Marco Kimbel Jr. Atrás uma poltrona vermelha de frente a janela. No chão, bolas de papel. No lixo, ossos.
Acima da mesa três monitores estavam suspensos ao teto. Um grande, um médio e um pequeno. Todos de tela esverdeada. Fios saiam assustadoramente do teto, cipós da selva digital enraizados no plástico tecnológico. Os três se acenderam exibindo imagens monocromáticas. Do primeiro, o maior, surgiu à foto estática do busto de um homem com cabelos bem penteados e bigode, usando social e um prendedor de águia. Do segundo, o médio, a amedrontadora imagem de um olho, que se movia insanamente. E do terceiro, o menor, era reproduzido animações do maquinista Billy Boy em situações clássicas de desenhos de TV.
_Olá amigo! Aguardava sua chegada. _ dizia o grande monitor. O olho parou de rodar e encarou o homem.
_Não teve coragem de aparecer pessoalmente, Marco? Que espécie de joguinho foi aquele! _ disse o homem furiosamente.
O olho se expressou com alegria. Billy Boy tomava cereal.
_Eu o magoei? _ lágrimas no monitor médio. _ Me perdoe. Mas espere um pouco, que eu saiba as feras não o atacam. Estaria você com medo dos espectros? Mera fuligem na sopa? _ Billy viu um gorila escorregar em bananas e começou a rir loucamente.
_E o garoto? Ele poderia ter se ferido. Ou pior.
O olho girou em desgosto.
_Garotos, garotos. Facilmente repostos. Algumas trepadas e nove meses depois uma surpresa. Eu tenho que te ensinar tudo? A não. Esqueci completamente. Nisso você tem experiência. _ olho sarcástico e Billy caindo de um precipício.
_Maldito! _ pegou um dos vasos próximos a porta e jogou nos monitores. Porém na fúria não calculou sua força. Os monitores ficaram intactos, diferente da mesa central. Pedaços de cerâmica voaram junto à terra que se espalhou. Objetos se enterraram na nova concavidade da mesa. O olho fechou-se pela metade, em alegria.
_Não faça isso, _ disse Marco _ você sabe como é difícil arrumar faxineiras por essas bandas. Acalme-se, o garoto já está em casa está bem? _ o terceiro monitor passava micro vídeos de filhotinhos brincando, pássaros ao céu e preparação de suco em pó. _ Vamos ao que interessa. Aos negócios.
O homem tentava se acalmar. Sua ferida foi cutucada. Sentou-se próximo aos monitores numa cadeira de madeira. Apoiou-se nos joelhos e pôs as mãos ao rosto. “É o ultimo”, pensou. Não agüentaria mais daquilo.
_ Onde está Sem Nome? _ perguntou o homem.
O olho surpreendeu-se. O pequeno monitor exibia sinais de interrogação:
_Jamais esperaria essa pergunta de você. Ele está com G, um trabalho confidencial. _ Billy vestido de detetive.
Sem Nome era o mais antigo a serviço de G, o chefe. Provavelmente com Marco em segundo lugar. Diferente do doutor, SN não incomodava ninguém. Era um homem de idade, calado e indiferente. Sua boca só emitia sons ao chefe. G era outro mistério. Poucos o viram, só é sabido que surgiu e rapidamente construiu seu império. Sua marca é um G negro de pintura escorrida, normalmente dentro de um circulo.
O homem mais calmo continuou com as perguntas:
_ Será possível usar o monotrilho?
O olho fixava seu olhar nele. Imagens de operários eram transmitidas:
_Não, não será possível. Mas não se preocupe lhe ajudarei com isso.
O pequeno monitor exibiu imagens de uma das câmeras, uma sala na torre. Era circular, feita inteiramente de paralelepípedos rochosos. Um pequeno corredor dava a uma porta, única entrada e saída. Nas paredes varias cortinas cobriam as paredes.
_Use a sala do início. _ disse Marco. _ A preparei para você.
_Sem truques? _ desconfiou o homem.
_Sem truques. _ Billy Boy balançava o indicador negativamente.
Ele suspirou:
_Bom, ainda temos outro problema. Pelas informações que recebi será um trabalho complicado. Não tenho condições de realizá-lo sozinho.
Uma profunda risada saiu das laterais do grande monitor.
_Eu também preparei algo para auxiliá-lo.
O pequeno monitor mostrava uma criança apagando velas de aniversário. O olho observava a porta aberta e seu corredor. Percebendo o homem de terno virou-se e encarou o corredor, as portas do elevador se abrindo e aquilo saindo. De passos lentos, estes tão abissais quanto os do homem na Lua. A saliva empelotava em sua garganta tamanha sua reação. A visão do fruto de uma mente louca. Fruto da necessidade. Fruto de um gênio.
De insana genialidade.