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O Estrangeiro - Albert Camus

[align=justify]Ok, mas esse antes de eu dormir, me perdoem a vastidão:

Manu M. disse:
Concordo com o que vc diz sobre personagem. Mas a parte em itálico... hmmm... é e não é, né? "não existe uma 'natureza' humana através da qual as pessoas podem viver". Hmmm... Será? :think: Ai, minhas aulas de antropologia... Acho que existe sim. Por exemplo, é parte da natureza humana a necessidade de relacionamento, isso não é construção social, ao menos foi o que aprendi e mal observei até hoje. Aquela história toda de o "ser e o outro" e a entidade terceira que é o relacionamento - e, no caso, a sociedade. E uma coisa social e historicamente construída não deixa de ser natural, uai. É efeito colateral da simples existência humana. Bem, é o que penso até agora...

Sim e não. A palavra natureza dá uma idéia de fechamento, de cerceamento e falência de quaisquer alternativas, como se as coisas já estivessem definidas e ponto final. Não é assim que gosto de pensar sobre a 'natureza humana'. Não sou aqueles otimistas que acham que tudo depende de nós, de nossa força de vontade, blá, blá, blá, auto-ajuda e papinho motivacional.

Qualquer coisa que é fruto da ação do homem, seja material ou intelectual, inevitavelmente será histórica, visto que está inscrita no tempo, foi feita em determinadas condições que não se repetem em seus mínimos detalhes. Assim como as condições históricas influenciam a forma como os homens agem, também os 'homens-agentes' são produto do meio onde se encontram, logo, nada é absolutamente universal. Isso pode soar bastante desanimador dependendo de como você encara certas coisas, mas, enfim, é o que penso e que cada vez tenho mais certeza.

Você está totalmente certa a respeito da 'alteridade', de como as coisas são constituídas relacionalmente, já que é na relação entre os sujeitos e com os objetos que se manifesta a subjetividade. As pessoas e as diferentes sociedades assumem determinadas feições por conta do solo histórico no qual se constituem, isso não é meramente uma decisão consciente, o homem não age exatamente na forma como quer, justamente porque constrói sua história em condições dadas, ele não escolhe tintim por tintim como será a sua vida, como agirão os outros ou se ele vai nascer mais ao norte ou mais ao sul, ele age dentro dessas coordenadas, tendo como escopo as condições materiais e subjetivas de sua existência, de modo que não exista uma natureza que seja universal ou universalmente aplicável. Existem modelos, tipos ideais e tudo o mais, mas todos eles são históricos, não existe um ensaio pré-vida em que se definem esses detalhes, vivemos neles constantemente.

Manu M. disse:
E uma coisa social e historicamente construída não deixa de ser natural, uai. É efeito colateral da simples existência humana. Bem, é o que penso até agora...

Pois é, não dá para ser de outro jeito, afinal, partimos de algo externo a nossa vontade para nela se constituir. Quando eu disse natural, estava me referindo, por exemplo, ao natural tipo ter fome e morrer: não existe quem não vá morrer ou não sentir fome, porque faz parte de sua natureza, está inscrito biológica e fisiologicamente na sua constituição. Mas, por exemplo, o gosto por comida ou as reações a morte e a forma como lidamos com ela são historicamente construídas.

Não sei se me fiz entender. Qualquer coisa dá um toque aí.[/align]
 
Não sei a data exata de publicação do livro, mas sempre me pareceu que Camus mandava um recado a todos aqueles que seguiam a razão à risca. Ex-amigo de Sartre, sofreu duras críticas deste quando se posicionou pela libertação da Argélia do domínio da França. Porque Sartre, apoiado pelo marxismo, via com bons olhos essa dominação pois iria desenvolver o capitalismo no país e levá-lo mais próximo da revolução socialista. O que para Camus significava um verdadeiro absurdo: as pessoas não poderiam ter suas vidas negadas por nenhum sistema filosófico (pela racionalidade, de modo mais geral), ou seja, em nome de uma teoria, muito sofrimento era tolerado e negado.
Mersault é exatamente esse sujeito racional, incapaz de se envolver com as pessoas. Analisa tudo com muito cuidado e segue a racionalidade como parâmetro de entendimento do mundo. Desta forma, um corpo vivo não difere muito de um corpo morto. Sua mãe morta não lhe afeta mais do que o assassinato que comete (e que vale a pena notar, não o faz questionar nem por um momento sobre a metafísica da vida, ou seja se era seu destino ou se havia cometido um erro). Sua retórica é impressionante e tendemos a simpatizar com a qualidade de seu raciocínio, embora sabiamente Camus tenha construído seu personagem como um homem comum, sem nada de extraordinário (recurso que nos faz abandonar uma postura crítica em relação ao personagem). A meu ver, tanta racionalidade de Mersault só faz negar nos outros uma possibilidade de relacionamento. Ele não é capaz de perceber um sentimento, um sonho, qualquer coisa que entendemos como subjetivo e que nos dá personalidade.
Assim, mesmo se tornando vítima de sua própria impessoalidade, ele é incapaz de se permitir desespero, preferindo analisar a situação racionalmente e concluindo que as coisas vão bem. Mersault me parece o tipo de homem que Camus temia na humanidade: aqueles que fecham os olhos para consequencias não previsíveis de suas ações e que não podem ser quantificadas, que se aferram a suas verdades e, por não reconhecer a individualidade do outro (construída a partir de tudo que sentimos e pensamos, inclusive pela própria razão também), não desistem nunca de seus objetivos. Exemplos? Kissinger, George Bush, Margaret Tatcher, Bin Laden, etc.
Não acredito em nenhum momento que Mersault seja vítima da sociedade ou que buscasse atenuantes para seu crime. Do ponto de vista racional, que decide operar, essas questões são puramente desprovidas de sentido, são como especular sobre o sexo dos anjos. Seriam fatores subjetivos, impossíveis de racionalizar...
 
O livro é fantástico, tive que lê-lo na faculdade e devorei-o sem dó. Eu acho que Mersault era simplesmente uma pessoa cansada de toda a teatralidade do mundo, dessa necessidade que as pessoas têm de cumprir um papel na sociedade. Ele não chorou no enterro da mãe simplesmente porque não deu vontade de chorar, não se sentia próximo a ela. Não quer dizer que não a amava. Ele é considerado um monstro simplesmente por não fingir. Mostra como as pessoas se comportam frente a alguém que não cumpre um contrato social. Um homem tem que fingir amor, fingir firmeza, fingir preocupação, fingir gostar de coisas apenas para serem aceitas em grupos. Necessidade humana de se relacionar? Ok, mas acho que levamos isso a extremos. Mersault não queria interpretar, por isso a aparência de apático, o ar de quem não se importa com nada.Na minha opinião, esse é o absurdo da vida: por que as pessoas fingem?
 
O livro é fantástico, tive que lê-lo na faculdade e devorei-o sem dó. Eu acho que Mersault era simplesmente uma pessoa cansada de toda a teatralidade do mundo, dessa necessidade que as pessoas têm de cumprir um papel na sociedade. Ele não chorou no enterro da mãe simplesmente porque não deu vontade de chorar, não se sentia próximo a ela. Não quer dizer que não a amava. Ele é considerado um monstro simplesmente por não fingir. Mostra como as pessoas se comportam frente a alguém que não cumpre um contrato social. Um homem tem que fingir amor, fingir firmeza, fingir preocupação, fingir gostar de coisas apenas para serem aceitas em grupos. Necessidade humana de se relacionar? Ok, mas acho que levamos isso a extremos. Mersault não queria interpretar, por isso a aparência de apático, o ar de quem não se importa com nada.Na minha opinião, esse é o absurdo da vida: por que as pessoas fingem?

Entendo seu ponto de vista, mas vou discordar. Não é o não chorar que significa a convenção social que vc fala, mas o ir ao funeral da mãe. Não é o não se envolver com o trabalho, mas simplesmente trabalhar, ou ter algo como um relacionamento amoroso. Porque se ele estivesse disposto a afrontar as convenções como vc fala, simplesmente não se colocaria nessa posição passiva. Mersault quer levar a vida sem grandes problemas formulando juízos racionais sobre tudo na espera de que isso lhe garanta não ser surpreendido por nenhuma novidade. O absurdo de sua existência me parece decorrer justamente disso: apesar de toda a racionalidade e previsão, o imponderável aconteceu e ele continua agindo como se seu sistema lhe privilegiasse diante de todas as outras pessoas. Então, me parece que devemos distinguir aquilo que Mersault fala aos outros personagens, a maneira como se relaciona com eles e o discurso privado (íntimo) que temos acesso e os personagens não.

Camus propositalmente descreve o funeral de modo lento, pegajoso mesmo (para mostrar o calor e lentidão, o suor de Mersault sob o sol). Queremos que aquilo acabe, que todos parem de tentar dizer palavras de consolo, nós concordamos que aquilo não tem sentido (é justamente por conseguir conquistar a simpatia do leitor que esse livro é fantástico a meu ver). Mas cadê o enfrentamento de Mersault? Ele acata resignadamente a situação e torce pela libertação. Dessa forma, é um alívio quando o funeral termina. Assim, me parece mais que o personagem não é um contestador, e quando o faz (no momento em que questiona o padre) o faz também de acordo com outras convenções, afinal hoje é lugar comum questionar o papa, a postura da Igreja e das Religiões de modo geral.

O existencialismo de Camus não era uma crítica à sociedade como se essa corrompesse os homens. Sua visão partia de uma modificação essencialmente da ética do indivíduo diante do mundo. Apesar de sua controvérsia com Sartre vale lembrar a conhecidíssima frase: "O inferno são os outros", ou seja, não adianta culpar a sociedade. Menciono isso porque o ponto de partida é totalmente diferente.
 
Exato Marc, me desculpe se dei a entender que ele queria afrontar ou agir de forma que mostrasse revolta. Ele não me parece querer afrontar as convenções. É simplesmente cansaço, uma falta vontade ou de capacidade de sentir e transparecer sentimentos como os outros. Não acho que ele agia segundo um sistema que lhe privilegiasse diante de outras pessoas, mas apenas não via sentido em participar do sistema comum. Ele não é contestador, é passivo mesmo, assim como vc disse.

Mas isso é o meu ponto de vista, é o aspecto que me tocou mais no livro, eu também sou daqueles que não sei fingir interesse, huashuasuhsa.

Esse é o grande mérito de uma grande obra, alcançar nas pessoas algo que as incomode, que as faça olhar para si mesmas e para o mundo, cada um partindo de seu ponto de vista. Não entro na parte que toca o existencialismo de Camus, ou sua relação com Sartre, isso vai além do meu atual alcance intelectual, mas obrigado por discordar de mim, se todos simplesmente concordassem, não me acrescentariam nada, não é?
 
Parabéns pelos posts marc_dell e ElRafael, muito bons os pontos levantados por vocês.

Marc, quero insistir e explorar um dos pontos que você apontou aqui e que achei interessantíssimos por contradizerem em grande parte o que eu penso (ou quem sabe pensava depois das tuas respostas, hehe) sobre o Mersault: o fato de a racionalidade exacerbada dele ser uma crítica do Camus.

1. Não sou conhecedor de Camus, mas de fato, o que você escreveu faz sentido, racionalizando tudo, ainda que de formas bastante subjetivas e frias pela própria natureza a-sentimental do pretenso 'racionalismo puro', Mersault acabou mostrando que...bem, pensar racionalmente é escolher uma forma de pensar que exclui certas características que constituem o ser humano e que estruturam a realidade social e individual, justamente porque são inerentes ao ser humano. Levando em consideração teu argumento e considerando que Camus estivesse criticando a racionalidade exagerada, que possível 'saída' estaria subjacente a sua (a de Camus) crítica?

2. O absurdo apareceria como o fator impossível de ser 'pesado' racionalmente? Como algo que estaria fora da alçada da razão?
 
Obrigado pelo comentário. Minhas referências partem da contextualização do pensamento de Camus, embora tenha me permitido não entrar em detalhes de sua filosofia. Mas para responder vou começar pela sua segunda pergunta:

Para Mersault o absurdo é a impossibilidade de seu sistema coerente de compreensão do mundo prever tudo que lhe acontece. Há uma piada sobre o positivismo que talvez você já tenha ouvido: um positivista tem a chave para todas as portas, mas se encontrar uma que não consegue abrir, nega que aquilo seja uma porta. E no período que Camus viveu, mesmo que autores como Freud (o do fim, não o do começo, vale lembrar) e Nietzsche já fossem lidos, sua influência ainda não era tão grande como hoje, e a crítica ao racionalismo era muito necessária. Ele tinha na mira essa racionalidade exacerbada que os franceses (“todos cartesianos” ) viviam e que poderia ser destrutiva porque simplificava as questões mais importantes.

Mas para Camus o absurdo é justamente o contrário: que mesmo diante de todas as evidências, da constante falha em nossa relação com o mundo, continuamos trilhando o mesmo caminho. Assim, temos a impressão em alguns momentos que Mersault é vítima do mundo, simplesmente porque parece assumir uma postura crítica (mesmo que niilista), mas Camus jamais seria capaz de afirmar esse tipo de coisa. Somos bem responsáveis por tudo que criamos em nossas vidas, de acordo com Camus. Não que existam vilões e Mersault seja simplesmente mau, mas esse mesmo pensamento que ele imagina possuir é apenas uma formalização de pensamento, repleto de clichês no trato com o Outro. E literalmente mata a possibilidade de vida, basta ver a maneira que se refere a Marie.

E se levarmos em conta sua controvérsia com Sartre, essa crítica fica mais clara porque o valor mais importante sempre será a vida, independentemente de vivermos sob o capitalismo ou o socialismo ou seja lá o que quisermos pensar. Mas Sartre, na visão de Camus havia transformado a vida de milhões de pessoas em simples instrumento para se chegar à revolução. Estava dando um recado bem incisivo ao amigo sobre prioridades.

A postura de Camus, para responder a primeira pergunta, visava uma agregação do não quantificável, de tudo que é subjetivo ao pensamento. Porque era a única saída para essa formalização cega: admitir que havia muito mais no mundo que nós mesmos enquanto indivíduos. É uma ética totalmente voltada para a responsabilidade das relações sociais. Afinal, Mersault em momento algum está preparado para lidar com as diferenças, tanto que comete assassinato sem nem saber porque, não há idéias para provar (e acredito que um estudo interessante seria comparar Mersault a Raskolnikov, porque este é um humanista no fim das contas), nem ódio, nada. É apenas um gesto para ele, mas trata-se de uma vida afinal, o que ele não consegue ver. Muito próximo do que Freud poderia escrever de certa forma, Camus salientava que a relação interpessoal é uma constante busca de equilíbrio entre nossa forma de ver e aquilo que podemos efetivamente realizar. Ou seja, que o pensamento deve tomar consciência de sua falibilidade e de que o Outro pode trazer verdades diferentes das nossas que cabe considerar.
 
Mais ainda, era necessário ao pensamento buscar revoltar-se contra essa existência engessada, digamos e construir uma revolução real, onde o principal valor não seria a inversão do poder (proletários no comando), mas uma valorização da existência e do convívio.
 
Pensar em Camus criticando o racionalismo exacerbado em O Estrangeiro é análogo a ver Maquiavel sendo sarcástico com O Príncipe. Realmente, se tem que ser muito cínico pra defender Mersault.
 
Quatro xícaras de café e 40 posts depois....



Li O Estrangeiro e, sim, estou como quem tomou um direto no estômago. :)



1 - Sobre Mersault ser ou não culpado.

Manu o chama de "capitu dos franceses". Será que nunca saberemos se ele é culpado ou não? Se pensarmos que a culpa de Mersault está na sua condição de "estrangeiro", no sentido de Outsider, como apontou Rodovalho, ele é sim. A extrema inadequação de Mersault o torna culpado; seu desânimo (falta de "alma"), sua quase patológica indiferença a tudo o condenam.

2 - Sobre a história ser aburdo ou não.


Um homem que nunca mente - mente uma só vez no livro, porque estava cansado; um sujeito desprovido de qualquer ambição; um rapaz indiferente a morte da mãe, ao casamento, a iniciar ou não uma amizade. Ora, para a sociedade, ele é o absurdo.




Vejo Camus criando um personagem irreal, que pra mim só se sustenta por um transtorno psíquico. Durante a leitura do livro, a todo instante pensei em Mersault como alguém profundamente deprimido ou portador de alguma síndrome.

O absurdo é que ele nega convenções sociais. Todos querem que ele entre na máquina ambição/casamento/deus, mas ele se nega. É como se ele fosse uma entidade zombeteira ou um santo.

Ele se "suicida". Assim como no livro Desonra (Coetzee), onde o professor universitário se vê expulso do mundo acadêmico por não atirar sua intimidade a seus colegas/juízes, Mersault também se "desliga da máquina" porque se nega a cumprir ritos - chorar no enterro da mãe, se casar, ter amigos... No final, é isso que o condena, essa sua estranheza


Rodovalho indica que "uma pedra nos rins" poderia salvá-lo, que ele precisava de uma dor. Mersault, no seu quase altismo, só responde a estímulos do corpo: ele tem vida sexual, come e fuma. É interessante pensar nisso.... talvez lhe faltasse um conflito fora da mente.


Mersault pode ser visto como um rebelde, foi visto por muitos dessa maneira. Mas Sartre acusa Camus de revestir conformismo de rebeldia. O que vcs acham?
 
Alguém leu que "a morte feliz" e "Sísifo", ambos do Camus, complementam o "Estrangeiro"? A morte... seria um preâmbulo e Sísifo, sua explicação.


Alguém leu esses?
 
Mersault pode ser visto como um rebelde, foi visto por muitos dessa maneira. Mas Sartre acusa Camus de revestir conformismo de rebeldia. O que vcs acham?

Mersault está muito longe de ser um rebelde. Mas a partir do momento em que ele age com tanta indiferença a tudo o que o resto da humanidade dá tanta importância, faz com que a gente passe a questionar a importância dessas coisas. É aí que está a transgressão.
 
Ao invés de questionar a importância dessas coisas desprezadas questionamos as razões desse ser desprezível. Mas se Gandhi podia se rebelar fazendo greve de fome, porque não se rebelar não dando a mínima pro processo penal?
 
Certo, mas são coisas totalmente distintas. O processo de imperialismo era mais fácil de questionar justamente em nome dos valores morais (sendo que a lei é, de certa forma alimentada pela moral).

Como já disse em outro post, a posição de Camus é uma tentativa de mostrar o quanto instrumentalizar (e relativizar) os valores é perigoso. Às vezes imagino Mersault com a cara de Sartre...
 
Creio que o absurdo de Camus não é uma situação impossível de acontecer, mas sim o fato de que a existência é em si absurda. Mersault matou o árabe por medo, já que os dois já haviam brigado pouco antes. No entanto o juiz, por crenças pessoais, somou ao seu crime o matricídio, pois ele não só não chorou durante o enterro, como também pegou a Marie, ou seja, seguiu sua vida como se nada tivesse acontecido. O absurdo aqui pode ser tanto a falta de profissionalismo do juiz ou a frieza de Mersault, mas tudo isso faz parte da realidade. Julgamentos assim (baseados em motivos pessoais ao invés da lei) acontecem todo o dia e algumas pessoas são frias e desinteressadas. Não é a história absurda, mas sim a realidade. Foi assim que entendi pelo menos.
 
Olha, confesso que li e não achei grande coisa.
Ainda quero ler as outras obras do Camus. Pois O estrangeiro foi meu primeiro contato.
Achei legal, vi os questionamentos da sociedade em cima do Mersault, mas não mexeu em nada comigo o livro.
Como o livro é curtinho,vou fazer uma releitura em breve.

E sobre o titulo,interpretei como sendo o estrangeiro o próprio mersault
 
Obrigado pelo comentário. Minhas referências partem da contextualização do pensamento de Camus, embora tenha me permitido não entrar em detalhes de sua filosofia. Mas para responder vou começar pela sua segunda pergunta:

Para Mersault o absurdo é a impossibilidade de seu sistema coerente de compreensão do mundo prever tudo que lhe acontece. Há uma piada sobre o positivismo que talvez você já tenha ouvido: um positivista tem a chave para todas as portas, mas se encontrar uma que não consegue abrir, nega que aquilo seja uma porta. E no período que Camus viveu, mesmo que autores como Freud (o do fim, não o do começo, vale lembrar) e Nietzsche já fossem lidos, sua influência ainda não era tão grande como hoje, e a crítica ao racionalismo era muito necessária. Ele tinha na mira essa racionalidade exacerbada que os franceses (“todos cartesianos” ) viviam e que poderia ser destrutiva porque simplificava as questões mais importantes.

Mas para Camus o absurdo é justamente o contrário: que mesmo diante de todas as evidências, da constante falha em nossa relação com o mundo, continuamos trilhando o mesmo caminho. Assim, temos a impressão em alguns momentos que Mersault é vítima do mundo, simplesmente porque parece assumir uma postura crítica (mesmo que niilista), mas Camus jamais seria capaz de afirmar esse tipo de coisa. Somos bem responsáveis por tudo que criamos em nossas vidas, de acordo com Camus. Não que existam vilões e Mersault seja simplesmente mau, mas esse mesmo pensamento que ele imagina possuir é apenas uma formalização de pensamento, repleto de clichês no trato com o Outro. E literalmente mata a possibilidade de vida, basta ver a maneira que se refere a Marie.

E se levarmos em conta sua controvérsia com Sartre, essa crítica fica mais clara porque o valor mais importante sempre será a vida, independentemente de vivermos sob o capitalismo ou o socialismo ou seja lá o que quisermos pensar. Mas Sartre, na visão de Camus havia transformado a vida de milhões de pessoas em simples instrumento para se chegar à revolução. Estava dando um recado bem incisivo ao amigo sobre prioridades.

A postura de Camus, para responder a primeira pergunta, visava uma agregação do não quantificável, de tudo que é subjetivo ao pensamento. Porque era a única saída para essa formalização cega: admitir que havia muito mais no mundo que nós mesmos enquanto indivíduos. É uma ética totalmente voltada para a responsabilidade das relações sociais. Afinal, Mersault em momento algum está preparado para lidar com as diferenças, tanto que comete assassinato sem nem saber porque, não há idéias para provar (e acredito que um estudo interessante seria comparar Mersault a Raskolnikov, porque este é um humanista no fim das contas), nem ódio, nada. É apenas um gesto para ele, mas trata-se de uma vida afinal, o que ele não consegue ver. Muito próximo do que Freud poderia escrever de certa forma, Camus salientava que a relação interpessoal é uma constante busca de equilíbrio entre nossa forma de ver e aquilo que podemos efetivamente realizar. Ou seja, que o pensamento deve tomar consciência de sua falibilidade e de que o Outro pode trazer verdades diferentes das nossas que cabe considerar.

Certo, mas são coisas totalmente distintas. O processo de imperialismo era mais fácil de questionar justamente em nome dos valores morais (sendo que a lei é, de certa forma alimentada pela moral).

Como já disse em outro post, a posição de Camus é uma tentativa de mostrar o quanto instrumentalizar (e relativizar) os valores é perigoso. Às vezes imagino Mersault com a cara de Sartre...

Isso torna o dilema de todo O Estrangeiro em um belo imbróglio kafkiano, só que mais moral e mesmo abstrato, não?

Arrisco esse palpite não só como uma provocação saudável (ou não, veremos, hehe) porque o questionamento do Camus parece ser contra uma racionalidade que não está expressa somente nos aparatos jurídicos-institucionais-estatais, mas incrustado na própria moral e nas condutas que 'devem' orientar a existência dos sujeitos. Quando ele diz, como você citou, 'o inferno são os outros', ele estende à 'opinião pública' o próprio status de cadeia, não necessariamente por sua racionalidade ou sistematização fria e calculista, mas sim porque pressupõe uma postura modelar que deve moldar as individualidades. Essa postura modelar que grassa essa 'opinião pública' (todas as aspas são necessárias nessa hora) é que torna Mersault um sujeito passivo de sofrer as consequências que sofreu.

Não que as circunvoluções do aparato jurídico-burocrático-penal-etc.e.tal emane pura e simplesmente da famigerada 'opinião pública', mas não se pode dizer que exista à revelia dela. Basta lembrar que não são só os juízes (em tese braços do Estado e do aparato jurídico) que resolvem condená-lo, o escândalo público está expresso ao longo de todo o livro em diferentes momentos.

De fato é uma grande obra, basta olhar a extensão (de tempo e de posts) da discussão do livro.
 
OK, embora a questão jurídica de fato ocupe uma grande parte do livro, acredito que está lá mais no sentido de servir como armadilha para o leitor. Explico: diferentemente de "Lolita", por exemplo, onde antes de ler o relato do personagem principal sobre os eventos somos apresentados a uma análise científica da personalidade de Humbert Humbert com o claro objetivo de direcionar a leitura para determinado ponto (e certamente a crítica, se protegendo desde o início de possíveis acusações de apologia à pedofilia por parte de Nabokov). Mas no caso de Camus essa condução não existe, e me parece que isso dificulta tudo, porque ele parece assumir uma posição de vítima na história. Assim, surgem as interpretações de que foi penalizado por não ceder à moral, etc. Mas essa é a grande armadilha do livro, fazer com que o leitor termine se reconhecendo em Mersault, enxergando a sociedade como hipócrita por condená-lo apenas por ter tido coragem de fazer o que muitos não teriam (afinal o que é matar um árabe? É expurgar o invasor, o diferente, o que pode trazer uma ameaça por sua mera existência). Portanto a sociedade não iria querer que ele fosse julgado por isso, por fazer algo que moralmente poderia ser até aceitável...

Mas apesar de condenado no livro, Mersault quase sempre é inocentado pelos leitores. Camus sabia muito bem no que estava mexendo, sabia que o exemplo que usava seria perfeito e colocaria essa moralidade em dúvida, porque se matasse um francês não haveria dúvida alguma de que era um criminoso. Quando ele é condenado e dizemos: "sociedade hipócrita" estamos mais uma vez nos inserindo no sistema a-crítico de uma racionalidade instrumental, que tem por base uma moralidade dúbia e se perde por partir ora dos fins e ora dos meios. É uma crítica muito abrangente se vc pensar bem, porque agora acabei de citar Maquiavel, mas também Lenin, e antes que alguém se esqueça, Weber, que parecia de uma corrente totalmente diferente de pensadores...

O que estava em cheque não era se a sociedade seria capaz de se olhar no espelho e ver que afinal Mersault era apenas um deles e absolvê-lo. Essa racionalidade implícita (e evito o termo moralidade porque ele remete sempre a valores que dão a impressão de serem elevados, além de não parecer necessariamente ligado à ação, o que é o caso aqui), é dúbia por enxergar que a vida pode ser um valor relativo em determinados momentos. Mesmo que não existam revoluções pacíficas e, como diz Nietzsche, a civilização tenha se construído através de muito sangue derramado, a pergunta que fica é: de que vale a vitória depois que todos estiverem mortos?

Mas a sua pergunta é mais no sentido de porque essa mesma sociedade que é capaz de aceitar esse assassinato termina condenando. E a resposta é essa, de que Mersault fica perplexo porque entende que moralmente todos o absolvem, logo, não há crime. Mas o condenam apelando a situações externas que podem não ter relação alguma com o caso porque ele não se vê dotado de um pensamente diferente de todos. Mas ele precisa ser condenado (e fazer com que o leitor o absolva, isso é o essencial na intenção de Camus) simplesmente porque retirado tudo assassinato é um crime.

Assim, Camus mostra que nós leitores somos totalmente contaminados por essa racionalidade de Mersault, que podemos simpatizar com ele. Que diante de um caso não anormal e defendendo a vida, somos capazes de condenar à morte (não Mersault, mas o árabe o não-humano).
 

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