A MORTE SEGUNDO TOLKIEN
"O Silmarilion" é, na minha opinião, a base de toda a obra de John Tolkien; aproveito até para aconselhar que deverá constituir o primeiro contacto com as histórias fantásticas de Arda. E um primeiro contacto com a impressionante coerência com que estão construídas as personagens e cenários das suas narrativas. Ao longo deste livro é desenhado um mundo até aos seus mais ínfimos pormenores, com uma mitologia, filologia, geografia e história próprias. Os heróis, homens ou elfos, têm uma linhagem definida; a sua biografia pode ser traçada com uma exactidão quase total.
Esta coerência manifesta-se não só n´"O Silmarilion" mas em toda a obra de Tolkien e dá-lhe a base necessária, a capacidade, para ser uma monumental reflexão sobre a condição humana. Um mundo criado de novo, povoado de símbolos, cuja história é uma série de situações nas quais pode ser avaliado o comportamento das personagens. Tolkien não quis discutir a coragem, colocando os seus heróis num cenário, por exemplo, da Primeira Grande Guerra. Criou um mundo, definiu quando e porquê iria ocorrer a guerra, e então fez lá a sua experiência. Foi ele próprio um deus todo-poderoso, mais do que qualquer outro romancista; ele é Eru Ilúvatar, o Único, criador de Arda, o mundo, e cujos desígnios insondáveis são as suas próprias histórias.
A relação dos habitantes de Arda com a morte é diferente consoante são elfos, imortais, ou homens, mortais. O povo dos elfos é chamado de primogénito, pois foi primeiro criado por Eru. Os homens vieram depois e foi-lhes dado o dom da morte. Levanta-se a primeira questão: Considerar a morte como dom é de um tremendo orgulho humano, já que é esta que distingue o Homem dos eventuais prefeitos, primogénitos ou "belos", como são também chamados pelo autor. É curioso que a morte dos Eldar possa ser provocada; eles podem morrer em resultado de ferimentos. Com isto consegue ainda mais realçar-se o carácter temporal da imortalidade dos elfos e, por oposição, o carácter temporal da mortalidade dos homens. O que os distingue, na realidade, não é a vulnerabilidade, mas sim o tempo e a sua manifestação mais importante, a morte. Por outro lado, apesar do facto de os homens serem considerados como algo que foi criado em segundo lugar, a obra de Tolkien tem um fim narrativo humanista. O fim foi dedicado ao homem, toda a história de Arda desemboca na partida do povo belo e na restauração do reino dos homens. A história de Arda é a preparação da história dos homens.
Falo de restauração pela simples razão de que existiu durante a segunda era (as narrativas de Tolkien prolongam-se por quatro eras) um reino de homens, na ilha de Numenór. A "Akalabeth", ou queda de Numenor conta como o último rei desrespeitou a imposição dos Valar e navegou com uma armada para Ocidente, até à ilha sagrada, decidido a guerreá-los e roubar-lhes o segredo da imortalidade. Num rasgo de coragem suprema, o homem tenta matar o que é imortal, para se tornar ele próprio imortal. O rei numenoreano, instigado pelo senhor das forças do mal, Sauron, revolta-se contra os seus deuses, desesperado com a sua condição. A ansiedade, o querer mais do que lhe é permitido, é mau; o mal é imperfeição, e logo só encontra eco num ser imperfeito que é o homem. E nisto se revela o verdadeiro titanismo em Tolkien. A angústia humana perante a morte, simbolizada por aqueles que a impõem, como motivação estética.