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O cano

Juliano andava. Estava escuro. Ele estava atrasado. As ruas de porto alegre estavam vazias; uma cidade fantasma, uma necrópole. Ele espirrou. Estava frio. Deus! Que noite horrível para se caminhar. Metros à frente ele via um porte alto, a luz descendia dele para o chão criando uma vaga mancha amarelada de luz no chão. Ele olhou cansadamente para frente. Caminhar à noite durante o inverno da região sul. Juliano, você é mais burro do que parece!

Vários metros à frente – uns dez postes à frente daquele pelo qual ele passava agora – ele viu um poste apagado. Pensou no que poderia ter acontecido para que aquele poste se apagasse. Pensou que talvez a lâmpada fosse muito velha, talvez algum moleque a tivesse estilhaçado com uma pedra. Devaneou.

Foi logo tirado de seu sonhar acordado. Um carro passou a toda pela estrada perto dele. Uma caminhonete passou zunindo pela estrada larga e freou do nada marcando o asfalto com duas listras de um preto escuro. Juliano parou e olhou para o carro curiosamente. O carro simplesmente parou no meio da estrada deserta e ficou lá. A película de “insulfilm” escura tapava todos os vidros da caminhonete vermelho-escuro e ele não pôde espiar lá dentro. O carro estava parado a uns seis metros à frente do poste apagado. O motor roncava trabalhosamente. O carro ficou lá quase um minuto antes de finalmente começar a se mover. Deu a ré – era ilegal naquela rua, mas ela estava vazia – até perto de onde estava Juliano e entrou numa garagem do outro lado da rua.

Juliano ficou ali mais um momento antes de balançar a cabeça para espantar o sono e pôs-se a andar amaldiçoando a namorada por fazer-lo ir comprar remédios e absorventes. Ele começara a rir achando que era brincadeira. Saiu correndo a tempo de escapar de um vaso voando sobre sua cabeça. Ele deu uma risada ao pensar nisso. Continuou em frente andando pelo escuro na estrada.

Ouviu algo, um som duro e repentino atrás dele, como passos. Virou-se curioso, mas não viu nada apenas a rua vazia iluminada periodicamente pelos postes de lâmpadas amareladas. Ele não parou, não deu uma segunda olhada. Estava com pressa, continuou a andar sem dar importância. Pensou que talvez um dia ela pensasse naquele dia e risse. Talvez ela pedisse desculpas então. Ele suspirou. Tinha certeza de que quando chegasse iria levar um esporro pela demora. Suspirou cansado e olhou em frente. O poste apagado estava mais perto agora.

Ele congelou. Sentiu o coração escalar até sua garganta, sua pele pulando com calafrios e seu estomago sumindo em algum lugar dentro dele. Ele engoliu em seco, mas o que quer que tenha tentado passar pela garganta dele não foi muito longe. Ele pôde ouvir o único som naquela rua – de dia tão movimentada! – vazia e escura: sua respiração pulsante e rápida e irregular e, mais ao longe – quilômetros de distancia, milhares de quilômetros – outra respiração, um som fraco e distante. Regular, calmo. Ele apertou o passo, mas a respiração rítmica continuou ainda mais rápida e ele pôde ouvir as solas de borracha de um par de sapatos se deformando contra o chão duro de concreto. Ele já arfada de medo quando parou repentinamente e se virou estudando o peito e cerrando os pulsos pronto para pegar o sacana que...

Dor. Ele caiu no chão de lado tentando segurar sua perna com as mãos. Um grito horrorizado de dor passou pelos seus dentes cerrados como um gemido baixo e sem fôlego. A perna! A perna doía! Queimava, queimava tanto! Ele olhou para a perna, mas viu apenas o jeans azul se desmanchando numa mancha enorme de vermelho escuro que crescia conforme ele olhava-a. outro grito desesperado se trasnformou num gemido quase inalduvel que escapou por entre seus dentes cerrados. Ele olhou para cima. um homem num casaco o contornava com uma pistola na mão simplesmente examinando cada pedaço dele. Cada imperceiçao talvez. Estudava-o, examinava-o, esquadrinhava-o. um pensamente passou pela cabeça de Juliano que fez seus dentes começarem a bater, sua alma se transformar numa poça de medo e desespero enquanto ele ficava ali deitado: aquela forma estranha levando em sua mão a caifadora, a maquina da morte estava procurando um novo lugar para puxar o gatilho. O homem que andava ao seu redor parou ao seu lado e simplesmente apontou calmamente a pistola para seu abdômen e puxou o gatilho.

Aquela pequena parte da cidade brilhou por um momento, como o flash de uma câmera, mas mais fraco. Então Juliano sentiu seu fígado e seu rim esquerdo explodirem e era algo trucidante. Calor, queimação como mil agulhas incandecentes perfutando o seu corpo lentamente. Ele gritou, mas o que saiu pela sua boca fechada com toda a força foi um gemido horrendo. Ele tentou respirar, mas seus pulmões não o obedeciam. Ele tinha que escapar, puxou-se para trás com as mãos empurrando-se para longe, mas o homem com a pistola apenas continuou a circular-lo e examinar-lo. Ele sentiu um gosto metálico na boca e cuspiu vendo uma bola de musgo rubro voando para o lado. Ele gritou a plenos pulmões. Chance, chance, ele pensou enquanto se arrastava com toda a força. Eu ainda tenho uma chance. Basta eu correr!

Ele tentou se por de pé, mas caiu de bunda no chão sentindo ainda mais dor na perna. Ele já quebrara a perna antes e isso era exatamente a mesma coisa, mas terrivelmente mais forte. Muito mais forte. Ele olhou para baixo e viu a trilha de sangue que deixara e, no fim da trilha gosmenta e pegasoja de um vermelho escuro que refletia a luz do poste ali perto, ele viu o resto da sua perna.

E então ele simplesmente gritou. Gritou. A sua perna estava ali! a perna dele! Ele não tinha nenhuma chance! Nunca mais iria andar! Então abateu-se sobre ele, como uma sombra, a certeza: ele nunca mais iria andar. Ele nunca mais iria ver a namorada, nem a família, nunca mais iria ver outro por-do-sol, nem nada além daquela rua escura e daquele homem com uma pistola na mão. Ele se arrastou mais uns centímetros, apenas o suficiente para apoiar a cabeça num porte. Uma luz amarelada capia sobre ele e sobre o homem que parou perto dele com a arma na mão. Juliano tentou parar de gemer enquanto olhava para o homem. o braço encasacado levantou-se e apontou a arma com um silenciador para ele.

O cano, profundo descomunal; uma grotesca fenda escura parecia um olho mirando-o profundamente, como que tentando ver a sua alma. O olho da morte, o olho do ceifador, ele sabia que era ali. ali ele acabaria: numa rua fria e escura apoiado num poste com a perna bem longe dele. Ele morreria ali. enquanto isso o olho ainda o encarava. O buraco negro que, ele tinha certeza, levaria a algum lugar profundo do inferno. Aquele era o olho da morte. Ele pensou na namorada, pensou na mãe, no pai, nas pessoas que amava e seu coração pareceu desaparecer em seu peito. Ele nunca mais iria ver-las novamente. Enquanto isso o cano parecia brilhar num espectro horrendo nas cores da luz amarelada dos postes ali perto. O cano grosso que enquadrava o vazio negro do buraco da arma refletia a luz fraca e indireta dos postes ali perto. A arma apontava e fazia mira. Mira para a morte, o julgamento, a liberdade.

O golpe de misericórdia.

Ele viu o mesmo brilho de antes e depois não viu mais nada.
 

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