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Na berma de tantas Moçambiques
25 fevereiro 2016, 3:19 pm
angelo abu, mia couto
Por Angelo Abu
Há alguns anos, utilizando a técnica de recorte e colagem, ilustrei um livro chamado Dima, o pássaro que criou o mundo, uma antologia de contos de autores de todos os países lusófonos organizado pela editora Melhoramentos. No final do ano passado, o Alceu, diretor de arte da Companhia das Letras, viu as tais imagens em meu site e propôs como teste que eu refizesse duas das capas do renomado escritor moçambicano Mia Couto utilizando aquela mesma técnica. A editora estava com planos de refazer todas as capas de quatorze volumes do autor que eles editam, com exceção de uma trilogia mais recente em que todos os três volumes são ilustrados pelo talentoso Marcelo Cipís. Caso essas duas primeiras capas passassem no teste, caberia a mim refazer as quatorze!
Conhecia o Mia apenas de entrevistas e por amigos. Ainda não havia lido nada dele, mas sabia do peso de seu nome e, logo, do tamanho da minha missão.
Passei, então, duas semanas mergulhado na leitura de A confissão da leoa e de O último voo do flamingo.
À medida que adentrei no primeiro livro, ele me encantou com sua atmosfera misteriosa e feminina. A partir do momento em que percebi aquele clima na história, a imagem que buscava se revelou muito explicitamente enquanto lia, na poética e emblemática cena do encontro de olhares entre a leoa que sacia sua sede e a protagonista que tinge o rio com gotas vermelhas do ciclo de seu sangue. Aquela era a cena síntese da história.
Comecei, então, a pesquisar imagens de leoas bebendo água para, a partir dali, começar a recortar. As primeiras me pareceram muito explícitas, pouco étnicas, quase cartunescas. Por isso, achei que ficaria mais elegante, mais no tom da história, se me baseasse não em leoas em si, mas em representações moçambicanas delas. Assim, decidi me basear em máscaras africanas de leoas. O sangue escorrido da protagonista foi apenas insinuado com alguns pedaços de papel vermelho rasgado. O resto da composição deveria ser construído pela vegetação ribeirinha, que delimitaria o rio com sua simples ausência. O fundo preto terminaria de compor o clima inconsciente do mistério feminino.
Já em O último voo do flamingo, a pequena lenda que dá título ao livro – que simboliza a última gota de esperança em um país desolado pela guerra – se repete ao longo da história, quase se impondo como imagem. Eu estava com um pouco de resistência em ser mais uma vez literal ao incluir o animal contido no título na imagem. A princípio, pensei em manter do flamingo apenas a cor rosa no céu de fundo, cuja luz crepuscular quase apocalíptica era pertinente ao ocaso histórico da narrativa. Cogitei substituir a ave por outros elementos da história, como capacetes azuis dos soldados explodidos pendurados nas árvores, por exemplo. Mas ao final não resisti à forma expressiva e sinuosa do corpo dos flamingos e acabei optando, mesmo correndo o risco de estar sendo óbvio, por sua silhueta, que pelo menos é um pouco menos explícita que a imagem completa. Para completar, deixei o chão todo fragmentado por blocos de papel rasgado, remetendo ao país em decomposição que é apresentado no texto.
Para minha grande alegria, as duas capas foram aprovadas pelo editor e pelo autor. Dali em diante, mergulharia profundamente no universo do Mia. Mesmo já havendo ilustrado cinco das quatorze capas, não descarto ainda a possibilidade de fazer uma visita a Moçambique. Para isso, estou tentando um contato com o autor através da editora, mas tudo ainda um tanto incerto.
O primeiro que recebi dos doze livros seguintes foi Terra sonâmbula. A princípio, os guerreiros naparamas se impuseram bastante como candidatos à imagem de capa, por sua força simbólica na história. Mas ao final da leitura, percebi que a única constante naquele mundo de terras movediças era o ônibus batido no embondeiro (baobá). Repeti o recurso da fragmentação da terra agora no céu entremeado por pontos de luz-estrelas. Explorei na composição a forma de ampulheta, expandindo as raízes e os galhos do Baobá para a eternidade fora da página, para dialogar com o tempo daquela história.
Em seguida veio O outro pé da sereia, cuja cena inicial da estrela (meteoro) caindo em chamas se imprimiu espontaneamente em todo o resto de minha leitura. Acabei incluindo ele na imagem de modo estilizado, na forma de um rasgão revelando cores quentes à esquerda da composição. À direita incluí a sereia do título, que na verdade é N. Senhora D’Ajuda. Optei por omitir o rosto e a coroa, que cheguei a fazer, para que os leitores tivessem maior margem para projetar, como no livro, suas próprias sereias na santa. O azul do manto foi dado pelo texto, e as estrelas estampadas nele são em referência à estrela cadente que substituí pelo rasgão.
A mais difícil de todas até agora foi a mais recente, Venenos de Deus, remédios do diabo. As relações humanas eram o ponto forte da história, sem grandes ícones visuais ou alegorias no texto. Havia um lírio branco que se torna uma mão em um jarro, mas que não era muito significativo para a história. Seguia lendo, percebendo cada vez mais que era um texto de personagens. Pesquisava a população daquele país pela internet, no entanto ainda meio hesitante em escolher uma indumentária que fosse estereotipada, equivocada ou algo assim. Minha demanda por conhecer Moçambique cresceu novamente.
Quando estava no finalzinho da leitura, me deparei com uma cena que era a que buscava. Ao mesmo tempo icônica, pertinente ao resto da história, e o mais importante naquele momento: sem humanos. Tratava-se de um cemitério com flores brancas, onde havia, no lugar de uma das cruzes, uma âncora. De quebra, a corrente em torno da âncora poderia remeter à serpente enroscada no cálice do símbolo da medicina, tão presente no texto e no título. Mas a imagem não ficou boa. Ficou sóbria, sem nenhuma estilização, burocrática, desinteressante. Sorte que, quando pedi a opinião do Alceu, ele sugeriu que houvesse algo na imagem que remetesse ao romance entre o dr. Sidonho e a jovem Deolinda, personagens que jamais aparecem na história. A presença dos humanos de fato se mostrou imprescindível no caso. Precisava ganhar intimidade imediata com a população moçambicana. Uma viagem relâmpago ao país estava fora de cogitação naquele ponto. Foi então que comecei a visitar sites de relacionamento para entrar em contato com pessoas reais.
Fiz amizade no Facebook, visitei os perfis das amigas das novas amigas, fotógrafos de moda locais, modelos, para entender o que cada grupo social costuma usar. Na manhã seguinte, me baseei em algumas delas para compor uma Deolinda. Acabei optando em silhuetá-la e vesti-la com roupas muito estampadas que a personagem talvez só usasse em algum ensaio fotográfico. Mesmo sendo menos preciso e, de fato, estereotipado (talvez calça jeans e camiseta representasse melhor uma garota de classe média moçambicana que vai estudar na Europa), a opção pelo turbante e pelas cores e estampas me pareceu graficamente melhor. Mesclei, então, a personagem com a âncora previamente feita em uma mesma cena, buscando uma síntese entre as duas composições.
A cada dois Mia Coutos que leio, tenho procurado ler algum livro curto de outro autor para refrescar meu olhar, para não enjoar de seu estilo que tanto tenho desfrutado e, sobretudo, para não começar a misturar tudo na memória. Afinal, são quatorze livros e ainda nem cheguei na metade. Partindo agora para o Na berma de nenhuma estrada, primeiro de contos. Um refresco em pílulas, contos curtos e inspiradores. Ainda sem a menor ideia sobre por quais caminhos este me levará.
* * *
As novas edições de A confissão da leoa e O último voo do flamingo já estão nas livrarias.
* * * * *
Angelo Abu nasceu em Belo Horizonte em 1974. Graduou-se em cinema de animação pela UFMG, e vem ilustrando, nos últimos 20 anos, livros infantis e juvenis para diversas editoras. Em 2010, ficou em primeiro lugar no concurso de caricaturas da Folha de S. Paulo, para onde passou a contribuir esporadicamente. Neste ano, lançou Macunaíma em quadrinhos, adaptado e ilustrado em parceria com Dan X, pela editora Peirópolis.
Fonte: http://www.blogdacompanhia.com.br/2016/02/na-berma-de-tantas-mocambiques/
25 fevereiro 2016, 3:19 pm
angelo abu, mia couto
Por Angelo Abu
Há alguns anos, utilizando a técnica de recorte e colagem, ilustrei um livro chamado Dima, o pássaro que criou o mundo, uma antologia de contos de autores de todos os países lusófonos organizado pela editora Melhoramentos. No final do ano passado, o Alceu, diretor de arte da Companhia das Letras, viu as tais imagens em meu site e propôs como teste que eu refizesse duas das capas do renomado escritor moçambicano Mia Couto utilizando aquela mesma técnica. A editora estava com planos de refazer todas as capas de quatorze volumes do autor que eles editam, com exceção de uma trilogia mais recente em que todos os três volumes são ilustrados pelo talentoso Marcelo Cipís. Caso essas duas primeiras capas passassem no teste, caberia a mim refazer as quatorze!
Conhecia o Mia apenas de entrevistas e por amigos. Ainda não havia lido nada dele, mas sabia do peso de seu nome e, logo, do tamanho da minha missão.
Passei, então, duas semanas mergulhado na leitura de A confissão da leoa e de O último voo do flamingo.
À medida que adentrei no primeiro livro, ele me encantou com sua atmosfera misteriosa e feminina. A partir do momento em que percebi aquele clima na história, a imagem que buscava se revelou muito explicitamente enquanto lia, na poética e emblemática cena do encontro de olhares entre a leoa que sacia sua sede e a protagonista que tinge o rio com gotas vermelhas do ciclo de seu sangue. Aquela era a cena síntese da história.
Comecei, então, a pesquisar imagens de leoas bebendo água para, a partir dali, começar a recortar. As primeiras me pareceram muito explícitas, pouco étnicas, quase cartunescas. Por isso, achei que ficaria mais elegante, mais no tom da história, se me baseasse não em leoas em si, mas em representações moçambicanas delas. Assim, decidi me basear em máscaras africanas de leoas. O sangue escorrido da protagonista foi apenas insinuado com alguns pedaços de papel vermelho rasgado. O resto da composição deveria ser construído pela vegetação ribeirinha, que delimitaria o rio com sua simples ausência. O fundo preto terminaria de compor o clima inconsciente do mistério feminino.
Já em O último voo do flamingo, a pequena lenda que dá título ao livro – que simboliza a última gota de esperança em um país desolado pela guerra – se repete ao longo da história, quase se impondo como imagem. Eu estava com um pouco de resistência em ser mais uma vez literal ao incluir o animal contido no título na imagem. A princípio, pensei em manter do flamingo apenas a cor rosa no céu de fundo, cuja luz crepuscular quase apocalíptica era pertinente ao ocaso histórico da narrativa. Cogitei substituir a ave por outros elementos da história, como capacetes azuis dos soldados explodidos pendurados nas árvores, por exemplo. Mas ao final não resisti à forma expressiva e sinuosa do corpo dos flamingos e acabei optando, mesmo correndo o risco de estar sendo óbvio, por sua silhueta, que pelo menos é um pouco menos explícita que a imagem completa. Para completar, deixei o chão todo fragmentado por blocos de papel rasgado, remetendo ao país em decomposição que é apresentado no texto.
Para minha grande alegria, as duas capas foram aprovadas pelo editor e pelo autor. Dali em diante, mergulharia profundamente no universo do Mia. Mesmo já havendo ilustrado cinco das quatorze capas, não descarto ainda a possibilidade de fazer uma visita a Moçambique. Para isso, estou tentando um contato com o autor através da editora, mas tudo ainda um tanto incerto.
O primeiro que recebi dos doze livros seguintes foi Terra sonâmbula. A princípio, os guerreiros naparamas se impuseram bastante como candidatos à imagem de capa, por sua força simbólica na história. Mas ao final da leitura, percebi que a única constante naquele mundo de terras movediças era o ônibus batido no embondeiro (baobá). Repeti o recurso da fragmentação da terra agora no céu entremeado por pontos de luz-estrelas. Explorei na composição a forma de ampulheta, expandindo as raízes e os galhos do Baobá para a eternidade fora da página, para dialogar com o tempo daquela história.
Em seguida veio O outro pé da sereia, cuja cena inicial da estrela (meteoro) caindo em chamas se imprimiu espontaneamente em todo o resto de minha leitura. Acabei incluindo ele na imagem de modo estilizado, na forma de um rasgão revelando cores quentes à esquerda da composição. À direita incluí a sereia do título, que na verdade é N. Senhora D’Ajuda. Optei por omitir o rosto e a coroa, que cheguei a fazer, para que os leitores tivessem maior margem para projetar, como no livro, suas próprias sereias na santa. O azul do manto foi dado pelo texto, e as estrelas estampadas nele são em referência à estrela cadente que substituí pelo rasgão.
A mais difícil de todas até agora foi a mais recente, Venenos de Deus, remédios do diabo. As relações humanas eram o ponto forte da história, sem grandes ícones visuais ou alegorias no texto. Havia um lírio branco que se torna uma mão em um jarro, mas que não era muito significativo para a história. Seguia lendo, percebendo cada vez mais que era um texto de personagens. Pesquisava a população daquele país pela internet, no entanto ainda meio hesitante em escolher uma indumentária que fosse estereotipada, equivocada ou algo assim. Minha demanda por conhecer Moçambique cresceu novamente.
Quando estava no finalzinho da leitura, me deparei com uma cena que era a que buscava. Ao mesmo tempo icônica, pertinente ao resto da história, e o mais importante naquele momento: sem humanos. Tratava-se de um cemitério com flores brancas, onde havia, no lugar de uma das cruzes, uma âncora. De quebra, a corrente em torno da âncora poderia remeter à serpente enroscada no cálice do símbolo da medicina, tão presente no texto e no título. Mas a imagem não ficou boa. Ficou sóbria, sem nenhuma estilização, burocrática, desinteressante. Sorte que, quando pedi a opinião do Alceu, ele sugeriu que houvesse algo na imagem que remetesse ao romance entre o dr. Sidonho e a jovem Deolinda, personagens que jamais aparecem na história. A presença dos humanos de fato se mostrou imprescindível no caso. Precisava ganhar intimidade imediata com a população moçambicana. Uma viagem relâmpago ao país estava fora de cogitação naquele ponto. Foi então que comecei a visitar sites de relacionamento para entrar em contato com pessoas reais.
Fiz amizade no Facebook, visitei os perfis das amigas das novas amigas, fotógrafos de moda locais, modelos, para entender o que cada grupo social costuma usar. Na manhã seguinte, me baseei em algumas delas para compor uma Deolinda. Acabei optando em silhuetá-la e vesti-la com roupas muito estampadas que a personagem talvez só usasse em algum ensaio fotográfico. Mesmo sendo menos preciso e, de fato, estereotipado (talvez calça jeans e camiseta representasse melhor uma garota de classe média moçambicana que vai estudar na Europa), a opção pelo turbante e pelas cores e estampas me pareceu graficamente melhor. Mesclei, então, a personagem com a âncora previamente feita em uma mesma cena, buscando uma síntese entre as duas composições.
A cada dois Mia Coutos que leio, tenho procurado ler algum livro curto de outro autor para refrescar meu olhar, para não enjoar de seu estilo que tanto tenho desfrutado e, sobretudo, para não começar a misturar tudo na memória. Afinal, são quatorze livros e ainda nem cheguei na metade. Partindo agora para o Na berma de nenhuma estrada, primeiro de contos. Um refresco em pílulas, contos curtos e inspiradores. Ainda sem a menor ideia sobre por quais caminhos este me levará.
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As novas edições de A confissão da leoa e O último voo do flamingo já estão nas livrarias.
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Angelo Abu nasceu em Belo Horizonte em 1974. Graduou-se em cinema de animação pela UFMG, e vem ilustrando, nos últimos 20 anos, livros infantis e juvenis para diversas editoras. Em 2010, ficou em primeiro lugar no concurso de caricaturas da Folha de S. Paulo, para onde passou a contribuir esporadicamente. Neste ano, lançou Macunaíma em quadrinhos, adaptado e ilustrado em parceria com Dan X, pela editora Peirópolis.
Fonte: http://www.blogdacompanhia.com.br/2016/02/na-berma-de-tantas-mocambiques/