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Mulheres comendo.

Mavericco

I am fire and air.
Usuário Premium
Tem aqui e aqui também. O começo do primeiro link tem uma pequena nota falando da procedência do conto etc.



Mulheres comendo.

Um grupo de quatro ou cinco mulheres havia se reunido esporadicamente num bar encardido com o objetivo de puramente conversar e, se acaso fosse mesmo possível, beber cerveja, degustar quitutes fossilizados e revelar por detrás da camada espessa dos anos as memórias e acontecimentos não ditos, tudo com uma aura íntima e a princípio acanhada, não tivesse Hilda de fato vindo e incitado, por sua conduta podemos dizer extravagante, as outras companheiras a encararem com menos mortandade e transcendentalismo uma garrafa enrolada numa rede ziguezagueada de fios grossos e espaçados, advindo com essa sugestão o súbito soluço de Silvinha, a mais nova delas que havia se aprumado no cabeleireiro para a ocasião, aparentemente relatando a verdadeira razão da ausência de Martinha.

— No que a Martinha está saindo com aquele rapazote? – perguntou Françoise, de tendências afrancesadas.
— Sim, com ele mesmo. Faz um tempinho já; sei lá quanto tempo. Dizem que começaram o esfrega-esfrega rápido e tudo mais.
— Absolutamente que existe algo além disso...

Na mente de Françoise naquele momento coabitavam a imagem do rapazote que vira ser criado com o desvelo das infantarias e a imagem de Martinha, “conhecida” sua que apresentava uma inquietação inerente sempre quando apercebia a escassez inevitável de seus anos, aliada a uma espécie de miséria que sentia por si e por todas enquanto amolava as unhas de suas contratantes, entre elas Françoise, e que se traduzia no sorriso acanhado com que ela respondia às observações da chefe de que deveria se casar, ter família, achar alguém, procriar e etecétera, como se na verdade desejasse e no fundo se esforçasse em colorir com cores reflexivas as unhas de Françoise, sempre com delicadeza e revelando condescendência, condescendência apercebida por Françoise quando esta imaginava as roupas e o cheiro de brilhantina, e não cetona, que Martinha erigiria para si quando saía e procurava nos braços instáveis de um jovem a alegria efêmera de um amor desconhecido, resquícios aparecendo no cumprimento alternado e ligeiramente superior quando seu marido chegava e se deparava com Martinha, já de saída, numa cordialidade que escondia o que seu coração pedia para ser jamais escondido. Essas duas imagens, no começo associáveis apenas pela volúpia, assim como o efeito de potencialização que a luz desempenha num jogo de lentes superpostas, mas atingindo o usuário antes que uma folha de papel ou uma formiga, iluminaram com base na cegueira o risinho de desdém que acobertava a inveja de Françoise, explicando seu casamento e sua vida social como resultado das possibilidades que a lembrança daquele casal disparatado havia insinuado e trazendo para a iminência de sua boca uma nova configuração de riso contido e completamente amargurado.

— É dinheiro, é? – perguntou Silvinha, algo constrangida por alguma coisa que lhe causava constrangimento de sequer saber, mas que gostava de atribuir ao olhar atento de Hilda.
— Eu... Bem, eu não sei. Realmente, eu não sei — respondeu Françoise, um pouco sem graça — e como poderíamos saber, não é mesmo? Como diz aquele célebre verso de Racine... — não citou, porém, o verso, dando seguimento a um hábito pessoal de apenas sugerir o início de frases não bem na expectativa de que o interlocutor pudesse completá-las, mas sim por uma certa preguiça de ou ter de completá-la ou de aparentar uma superioridade que no momento não saberia como ostentar devidamente. Nenhuma das cinco mulheres, no entanto, correspondera ao sorriso interior que Françoise lançou de si para si, estando todas tão absortas com seus problemas que insistiam em aparecer no silêncio, que mesmo a possível conhecença do dramaturgo não seria capaz de traduzir as palavras de Françoise.

Ficaram assim por um tempo e à medida que o estabelecimento enchia, criando um cerco que coarctava seus olhares furtivos e as restringia à banalidade agora cuidadosa.

— A Martinha é que tá certa, afinal... — disse Silvinha num suspiro.
— A partir do momento em que ela não tem família...
— Não estou falando de família.
— Você pensa ser certo?...
— E por qual razão deixaria de ser? – disse finalmente Hilda, com uma certa impaciência.
— Mas amigas, isso não é certo. Como a mulher pode viver uma vida assim? Todo mundo precisa de um objetivo na vida, de uma meta. Um porto seguro.
— Oras! E desde quando a mulher sair por aí pegando quem ela bem desejar deixa de ser uma meta de vida? A liberdade não é uma meta de vida?
— Uma liberdade no pecado, Hilda? – respondeu Françoise com um ateísmo contido que esperava por respostas que lhe demonstrassem ao espelho.
— O conceito de pecado é muito amplo, amiga... Tudo bem, eu sei, tá na Bíblia, mas não é bem assim também, né? Você entende? falo assim: a mulher ela tem que ser... Ah, tem que ser...
— Dona do próprio corpo – disse Hilda, ajudando Silvinha.
— É isso mesmo. Tem que ser dona do próprio corpo. Tipo, ela faz o que der na telha, sabe? Não tem essa de ficar dependendo de marido não... Direitos iguais, sabe? Mesmo porque o caso da Martinha com... com o menino aí; é caso séria, amiga. Aí eu apoio.

As palavras de Silvinha dançavam em sua mente sem propósito algum, apenas pelo prazer de cirandar e encontrar no périplo esvoaçante que empreendiam as faces umas das outras, no que, talvez justamente pelo fato de não pretenderem ir a lugar algum, acabavam revelando detalhes fisionômicos até então desconhecidos, trazendo com essa súbita epifania uma vontade de sorrir e até mesmo de gargalhar, como se o acaso finalmente lhe tivesse presenteado com a razão de suas perambulações ermas bem como de sua razão de ser, agora convertida numa forma de individualidade que se lembraria das palavras que dissera sem fim nenhum, automáticas até, e que ganharam a inesperada finalidade de revelar o vazio de seu ser pelas cordas de seus desejos mais íntimos e corriqueiros. Mas como não tivesse se satisfeito por inteiro e por motivos que ignorava, Hilda, num muxoxo e num gole que revelava uma notória brutalidade, cuidou de repreender e reeducar Silvinha com uma doutrina ainda mais libertária e porventura anárquica, não fosse a constatação crucial de que aquela doutrina tinha como verdadeiro objetivo uma compreensão da organização que contivesse também as suas formas de negação, mas uma negação sem remorso e com a plena consciência de livre-arbítrio.

— Não sei se concordo muito com você, Hilda – disse Françoise – pois nós não podemos machucar o sentimento dos outros...
— Não se trata de machucar, Françoise. É uma questão de escolha. Martinha tem todo direito de ficar com o garoto da mesma forma que o garoto tem todo direito de querer ficar com Martinha. Agora porque a mulher tem que ser demonizada porque decidiu ficar com um garoto?
— É, amiga, é mais ou menos assim, pelo que eu entendi: como você quer falar que todos tem direitos iguais se no final das contas quem se ferra é só uma parte?
— Entendo onde querem chegar e respeito suas opiniões; apenas que... Ah, não concordo muito, sabem? Sim, respeito; mas não concordo. Estamos numa discussão pacífica, eu emito minha opinião, vocês emitem a de vocês e assim trocamos figurinhas.

O incômodo de Françoise em dizer expressões que de certo modo se afastassem e relegassem a segundo plano sua formação afrancesada remetia ao de Hilda quando esta olhava para outro canto do estabelecimento, fugindo da obrigação de olhar para a mesa e querendo com isso encontrar uma nova forma de abordagem e argumentação que pudesse trazer e validar com mais ênfase, e não simples cordialidade irritante, suas ideias e seus ideais, sua causa e, em suma, todos os números que rondavam sua mente como as imagens e as palavras rondavam a de Françoise e Silvinha, no entanto com a assombrosa diferença de carregarem consigo carrancas e carnificinas coaguladas em sua estrutura íntima, criando com isso um laço de uma espécie de consanguinidade que unia Hilda àquelas mulheres que naquele instante eram estupradas ou apanhavam e acatavam com dor e arrependimento as palavras do marido, do namorado, do homem que conheceram numa noite e que eram fruto também de sua liberdade, ainda que maculadas pelo esforço, pelo martírio de Hilda por sua incapacidade simplesmente de converter, de esclarecer a mente das outras quatro mulheres para um problema que lhes dizia respeito não pelo que talvez eram, mas pelo que talvez poderiam ser e poderiam estar sofrendo. Era o mal de Hilda, afinal, basear sua imaginação no que de mais horrendo a realidade dos outros produziu, e fiar nessa imaginação uma forma de combate que por si só, e pela escassez de quem estaria a seu lado, seria capaz de salvar o mundo ou no mínimo conscientizar quem fizesse parte de sua esfera pessoal, o que Hilda com bastante tristeza constatava ser muito mais difícil do que pensara, ser talvez impossível, quando a verdadeira impossibilidade era a de Françoise não temperar a inveja que sentia pela fatídica superioridade que Martinha ostentava e não transformar essa inveja numa forma de flagelação que fazia dos lapsos de carne que saíam de sua consciência uma compreensão mais ampla do fracasso e miséria interior, gradualmente evoluindo de sua esfera existencial até aquelas imagens, baseadas em Martinha, das mulheres pobres que berravam, fediam e choravam e no final se resumiam no gole seco de sua garganta.

— O importante é o caráter, que não muda nadinha – e aquela última palavra se repetia indefinidamente na cabeça de Silvinha até se encontrar com seu verdadeiro significado e completar a miscelânea de cores que Silvinha buscara entender, só agora sem mistério nenhum que senão o da normalidade.
— Mas o que acham de nos animarmos um pouco? A Martinha não veio, problema dela. Viemos aqui pra farrear, é ou não é?
— Mais ou menos, pois amanhã estou très occupé.
— Pode ficar de três ou de quatro, amiga, que hoje a noite é nossa! Você vai deixar o marido lá, atolado no sofá, que hoje a coisa tá só... – frase que foi interrompida por um soluço ébrio, incoerente de Silvinha que, mesmo apesar de suas palavras, arrancaram um sorriso ritmado de Françoise que soltara uma pequena exclamação quando Hilda desarrolhou a tal garrafa axadrezada e, num copinho transparente, lhe oferecera o primeiro trago.
— Ah, não, absolutamente; isso será fortíssimo!
— Se não fosse nós não teríamos oferecido, bobinha – respondeu Silvinha, animadíssima por sentir que suas amigas eram, enfim, criaturas análogas.
— Não, não, não. Eu me recuso, absolutamente, a tomar isso!
— Então dá cá que eu viro! – e tomou o copo e tomou a bebida numa careta só.
— Grande Silvinha! Agora, Françoise, sem enrolação – disse Hilda, servindo novamente.
— Vocês vão me trazer complicações... Ai, ai!

Após Françoise ter bebido, com uma careta e um estranhamento em verdade desagradáveis, o esperado sentimento de coragem insuflou-se no peito de cada uma das cinco mulheres, tornando-as de certo modo imunes aos olhares de ojeriza que as pessoas no estabelecimento lhes lançavam, às vezes também com alguns confrontos diretos de Silvinha que perguntava risonha: “Que foi? nunca viu não?”, logo depois todas caindo na risada e povoando sistematicamente as outras partes do local à medida que as pessoas iam embora, alcançando a mesa de sinuca e inventando regras fictícias na falta das oficiais, o que causava uma pequena revolta de Hilda, ou a conquista do balcão e os gracejos com o garçom que lhes atendia, sempre regrada a provocações para com o marido de Françoise que eram respondidas com um balbucio em francês.

— Mas será que Martinha estaria se divertindo tanto assim como nós? – perguntou Françoise com uma pontada de provocação que ela sequer havia notado e provavelmente ninguém notaria, não fosse Hilda que se retraiu um pouco das conversações e percorreu as extremidades de sua mente em busca de respostas anárquicas que explicassem o porquê de sua resposta afirmativa à pergunta de Françoise, bem como da certa comiseração que sentia com Martinha quando a imaginava naquele instante deitada ao lado de um rapaz que a deixaria quando lhe conviesse, sem com isso implicar que a reprovasse por buscar a estabilidade em algo fadado ao insucesso, antes pela razão de que ela não procurava o rapaz para saciar o que seu corpo impelia, mas sim para criar uma imagem qualquer, na sua própria convicção inventada de que outra não seria possível, de que ela não estava sozinha e que tinha alguém, ao menos durante os poucos instantes em que aquilo duraria. E mesmo o insucesso dessa relação, que Hilda julgava sendo tão certo, como num movimento iracundo causado pelo estopim de que até ela pensava nisso, resolve lhe reencetar a busca por uma felicidade pessoal e aceitamento e esperanças, despindo momentaneamente sua armadura rebelde e lhe deixando num princípio de egocentrismo que, ao invés de criar o alheamento, purgava seu espírito e lhe fazia desejar o bem que usufruía para quem o havia alcançado jamais, como era o caso de Martinha e de todas aquelas mulheres para as quais ela agora podia olhar com um sorriso no rosto e uma bondade no peito. Por isso, após um momento que lhe trouxe as contrações dolorosas no rosto, ela sorriu abertamente e respondeu baixinho:

— Não, ela não está; mas poderia estar...
— Ela quem, amiga?
— Ela... – logo depois levantou a cabeça e olhou para Silvinha, que lhe observava com o olhar sonolento e assim bondoso, para depois rirem.
— Do que vocês duas riem tanto?
— Nem nós sabemos!
— Da próxima vez, temos de chamar a Martinha – disse Hilda, recebendo a afirmação desatenciosa de Silvinha e a aceitação de Françoise que desejava verdadeiramente receber a amiga com um abraço e não com um sorriso.
— A Martinha vai botar fogo nisso aqui, vocês vão ver! – disse Silvinha, traduzindo a empolgação e a espera crucificante para um próximo encontro, ainda que uma crucificação menos ínvia, de todas as cinco mulheres e em especial a daquela última, tão calada e se sentindo tão bem, tão alegre, tão inteiramente viva por ter sido aquela, enfim, a melhor noite de sua vida.
 
Mavericco e as frases longas, desde 2010. Não sei mais o que eu desconheço mais: a Língua Portuguesa ou as mulheres.
 

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