• Caro Visitante, por que não gastar alguns segundos e criar uma Conta no Fórum Valinor? Desta forma, além de não ver este aviso novamente, poderá participar de nossa comunidade, inserir suas opiniões e sugestões, fazendo parte deste que é um maiores Fóruns de Discussão do Brasil! Aproveite e cadastre-se já!

Memorial do convento - José Saramago

Bartleby

fossore
Memorial do convento, publicado em 1982, é o romance em que o consagrado escritor José Saramago começa a ganhar mais popularidade.

Um ano inteiro via esse livro nas estantes da biblioteca de minha escola e, um dia, pouco após ter lido "o conto da ilha desconhecida" do mesmo autor, tomei coragem e o peguei para ler.
O inicio é um pouco monótono e fala bastante das relações reais na corte de Portugal, época em que governava o rei D. João V. Logo no início, Saramago já traz algumas críticas à igreja.
Porém, é quando entra em cena os personagens Baltasar Sete-Sóis, soldado maneta de guerra, e Blimunda futuramente Sete-Luas, mulher que tinha poderes especiais, é onde a trama começa ficando boa... Baltasar e Blimunda no decorrer da história acabam se revelando um dos casais mais fiéis e lindos da literatura tamanho o seu amor mutuo.
José Saramago nesse romance une fatos históricos, como a construção de um convento gigantesco em Mafra, com ficção entrando até um pouco no ramo do sobrenatural, que é onde aparece o padre Bartolomeu Lourenço com sua máquina voadora ajudado pelo casal Sete-Sóis e Sete-Luas a ser construida.
Se ou como eles conseguiram executar esse voo? Só lendo...
Acima de tudo, Memorial é um livro intenso, com muitas críticas a formas majoritárias de poder, o que gera muitas reflexões...
E no final do livro, bate uma sensação de saudade da história, das personagens, de toda genialidade que Saramago nos dispõe...
 
Esse foi o primeiro romance que li dele... agora estou em mãos com "história do cerco de lisbos"... espero gostar!
 
Li o Memorial do Convento semana passada. A sociedade daquela época era muito estranha mesmo.

De um lado, Baltasar e Blimunda. De outro, D. João V e D. Maria Ana. Adivinhem quem é o casal mais feliz?! Pois é. A vida da realeza é muito sofrida. Principalmente da rainha, tendo que disputar com tantas freiras.

Baltasar é nosso herói maneta. Muito pé no chão, ao contrário do Padre Voador. E Blimunda é uma bruxa. A mãe dela foi pra fogueira por ser adivinha e prever o futuro. Blimunda não. Ela só conseguia ver a verdade. Mas logo no começo Baltasar fala pra ela não olhar dentro dele, e ela diz que sim e se casa com ele. E quando eu digo que ela olha por dentro das pessoas, eu digo literalmente.

Ah! O Padre Voador não é aquele que subiu aos céus com os balões, num dia com más previsões metereológicas, sem ao menos saber utilizar o aparelho de GPS que ele trazia. Era sim o padre Bartolomeu Lourenço. Inventor da passarola, muito tempo antes de Santos Dumont.

Mas construir a passarola e cuidar dela era só o hobby de Baltasar. Pra ganhar uns trocados, ele era açougueiro e depois puxador de carro de boi na obra de construlção do tal Convento de Mafra. D. João precisava de filhos e D. Ana não estava muito fértil. Mas aí fizeram uma promessa pros franciscanos e saiu a Infanta Bárbara. A infanta nunca foi em Mafra, apesar da promessa feita por causa dela. Enquanto isso, uma porrada de gente faz um formigueiro lá na obra. Ou cupinzeiro. Mafra virou a Ilha da Madeira. Se não bastasse, por medo de morrer sem ver seu convento pronto, D. João pediu humildemente que todos os pedreiros de Portugal fossem trabalhar na obra. Então foi um pesadelo da engenharia. Remover morros. Trazer pedras gigantes, porém menores que o ego do rei. Até trouxeram uns santos, que tiveram a oportunidade de conversar entre si antes que ficassem lá na igreja sem poder olhar uns pros outros.

Ah! E D. Francisco era um grande filho da puta. Perdão às prostitutas, uma desonra pra elas cogitar ser mãe desse filho de chocadeira.
 
Fui "obrigada" a ler na faculdade, não consegui ler a tempo pra prova, mas não desisti ainda, a história é boa, só meio cansativa, e olha que já li Ensaio Sobre a Cegueira e adorei!
 
Absolutamente, Francine. To pra ver um casal mais IwannaBeWhenIgrowUp =P do que esse. ^^
 
Terminei de ler ontem à noite, é deveras um belíssimo livro.

Me chamaram a atenção algumas coisas, então vamos discuti-las:

1. como o Rodovalho já disse, Saramago conta a história em duas tramas: aquela que envolve a família real e a vida da corte, e aquela do casal Baltasar Sete-Sóis e Blimunda Sete-Luas. O legal é ver como as duas histórias se tangenciam e, pelo fato de se passarem no mesmo lugar e no mesmo tempo, se tocam apesar de serem tão diferentes. A simpatia de Saramago está com Baltasar e Blimunda, que estão num estrato social bem mais baixo mas que vivem mais felizes em sua simplicidade apesar das agruras que são obrigados a enfrentar. Os mandos e desmandos dos reis, ignorantes a respeito dos desdobramentos de suas vaidades e desejos, são mostrados por Saramago com um misto de indignação velada e ridicularização que mostra a veleidade futil típica dessas ordens. Dá para perceber isso quando a filha do casal (aquela a quem foi prometido o tal convento de Mafra) se pega a pensar que, apesar de ela ser a 'causa' da construção do convento, nunca tinha visto, nem sabia que pessoas tinham sofrido e morrido para satisfazer a vontade do rei, também desinteressado pelas consequências de suas vontades;

2. sei de conversas e de ler resenhas pela Internet, que Saramago se ocupa largamente de criticar o cristianismo, principalmente, penso, o catolicismo (devido em parte à longínqua e forte tradição católica de Portugal). Não sei até que ponto essas asserções são válidas, mas em Memorial do Convento ele, apesar de não tratar esse tema como central, pontua sua narrativa a todo o momento com alguns absurdos e contradições da religião. O exemplo mais divertido disso é quando ele afirma que Deus é maneta, porque ninguém nunca fala de sua mão esquerda, condição essa que serve como uma espécie de consolo para Baltasar, que também não a possui;

3. a maneira como Saramago costura elementos históricos reais a elementos fantásticos sem parecer firulas ou, como diria Pierre Menard, 'carnavais' é algo digno de nota. Para voar, a passarola usa de pelo menos dois artifícios fantásticos: alguns conhecimentos de alquimia, que envolviam âmbar e ímãs (ou ímanes); e as cúpulas com as vontades, que Blimunda, dona de uma habilidade também fantástica, era encarregada de também juntar. Esse negócio de encaixar é bem problemático, mas será que Saramago "se encaixa" com o realismo fantástico latino-americano, por exemplo?

4. em vários momentos existem frases que se detém sobre a visão. Como ela às vezes mais atrapalha que ajuda, como dois personagens cegos vêem mais do que os que enxergam, de como a visão nos liga demais à aparência, ou como ela é limitada etc. O próprio fato de Blimunda ter uma visão avantajada, é um indício de que esse é um tema recorrente que irá voltar em Ensaio sobre a Cegueira, não? Só vi o filme, então será que alguém que já leu mais livros do Saramago sabe me dizer qual é a pira dele em relação à visão? Pensei em algumas hipóteses aqui, mas pelo fato de não conhecer quase nada da obra dele, elas seriam meramente palpites ou chutes no escuro, então qualquer coisa depois eu falo.

5. o que é aquele estilo de escrita dele? Que coisa absurda! Que coisa espetacular. É incrível como ele usa a pontuação de acordo com o que quer e não de acordo com o que "mandam as regras da gramática". Ele passa da descrição para o diálogo, para a ponderação, para a narração para a enumeração de elementos etc. sem fazer o leitor se perder. É incrível! Achei fenomenal. Isso sem conta inversão de ordens, um zelo especial com a sonoridade e sinestesia, ritmo, pausas, hipérboles, ditos populares, rebuscos enriquecedores sem se tornar "barroco" demais...é uma escrita primorosa, daquelas de saborear cada palavra.

Alguém mais se anima a fazer andar essa discussão?
 
Haha. Ganhamos mais um adepto ao clube. :D

Com relação à crítica ao catolicismo, procede. Você não terá dúvidas se ler "O Evangelho segundo Jesus Cristo" e "Caim" (este último é fraco, se comparado a outros romances, mas a crítica é bem escrachada para esse propósito). E o Saramago teve problemas com a Igreja Católica que, se bem me lembro do que li, botou pressão para que retirassem um prêmio literário dado ao escritor. Algo assim, não lembro detalhes. Desse episódio Saramago teria guardado muita mágoa para com Portugal (e se tapado ainda mais de nojo da Igreja); e foi quando ele decidiu mudar-se para aquela ilha lá, de cujo nome não me recordo. Esse episódio pode ser averiguado na Internet; só procurar.


A questão da visão ele retoma no "Ensaio sobre a cegueira", realmente. E já aqui ele estava na sua segunda fase literária, deixando os romances históricos para escrever parábolas ou coisa que o valha. Você pode assistir à aquele filme "Janela da Alma" para ver o que o Saramago fala sobre a visão. Talvez seja outro ponto de vista (:sacou:) que não o tratado nos livros, mas ainda assim dá uma mostra do que ele pensa.



E o estilo dele, neam, dispensa maiores comentários.
 
Mas como você entende essa "obsessão" dele com a visão, os olhos etc.?

Para dar prosseguimento aqui também: várias vezes o Saramago comenta parágrafos inteiros sobre a vontade. Ele dedica à vontade não só descrições de seu potencial como também a utiliza como recurso narrativo, já que na casuística do vôo da passarola elas são elementos primordiais. Fico pensando que tipo de mensagem estava ele tentando expressar quando falava dela...me parece que ele a exalta como elemento de grande potencial, de possibilidades infinitas, mas que encontra-se amarrada a diversos tipos de empecilhos, tais como as convenções sociais, crenças obtusas, mentalidades tacanhas, o próprio receio. Sei lá, me parece ter algo mais nesse sentido.

Ninguém mais vai nos seguir nessa? Nem tu Manu? (sei que o casal Baltasar e Blimunda é um dos teus preferidos)
 
hum... faz tempo que li o livro e nem o tenho aqui... e para aproveitar o post: Acho que você deve gostar de História do cerco de lisboa, também do Saramago! É bem interessante o modo como o autor re-escreve a história(sobre a tomada de Lisboa) ao mesmo tempo que cria paralelos com situações da vida presente do protagonista :sim:
 
Sim, entro já. Só que tenho que entregar as fotos do estágio e preparar meu jantar primeiro. Não perco Baltazar e Blimunda por nada nessa vida. =)
 
Pra aquecer minhas baterias, antes de pegar os quatro pontos do Lucas no post #8, vou só fazer um comentário breve sobre a vontade, que o Lucas também sugeriu como assunto. Mas antes, um aviso

TODOS OS MEUS COMENTÁRIOS NESSE TÓPICO EVENTUALMENTE CONTÊM SPOILERS

Eu acho muito interessante a abordagem da vontade nesse livro. Além do que o Lucas já disse, há ainda outro aspecto mais "secundário" analiticamente falando e mais "primário" do ponto de vista narrativo: apenas Blimunda conseguia ver as vontades das pessoas. Epá, eu amo a Blimunda. E como diria o padre "Voar é uma simples coisa comparando com Blimunda". Só o fato dela enxergar "as vontades", os desejos puros e impuros das pessoas, já é de uma riqueza e poesia que muda toda a minha forma de enxergar a história. Só de pensar que um avião voa movido por suspiros de alma, desejos incumpridos, frustrados, sonhos, tanto o belo quanto o asqueroso, enfim, tudo o que de mais genuíno os homens têm...! Putz, pá. É de arrebatar.

E o que acho super é que, no sentido literal, Blimunda não pode ver as almas das pessoas, mas no trecho em que ela sai com Bataltazar à rua pra provar que consegue ver além da pele, ela não faz nada mais do que, com a conotação, dar um sentido denotativo ao que vai por dentro das pessoas. Quer dizer, ela vê por dentro de forma literal, mas acaba metaforicamente enxergando as almas. Wow, isso é genial.

Não consegui encontrar o trecho em que o padre ensina Blimunda a reconhecer as vontades... Em que parte da história (ou capítulo) está isso?
 
Vamos dar seguimento a essa discussão aqui:

Também acho fantástico a forma como Saramago amarra essas duas dimensões da visão de Blimunda: ela vê em aspecto físico e em aspecto espiritual, digamos assim. Quando ela fala a respeito do que vê nas pessoas com as quais ela e Baltazar vão encontrando, ela parece focar-se na descrição física do que vê (bebê na barriga da mulher grávida, situação dos órgãos internos de um homem etc.), mas quando falamos de vontades, nos referimos a coisas que são, digamos assim, abstratas, embora existam em um escopo material, o ser humano, no caso.

Da mesma forma, quando Blimunda retira a vontade de alguém para colocá-la na cúpula da passarola, estamos falando de algo imaterial, ou pelo menos bastante etéreo, de forma indefinida, acho eu. É justamente esse élan que existe dentro de cada um que pode fazer a passarola funcionar. Botem suas imaginações para funcionar para que possam ao menos cogitar o modus operandi dessa máquina, é um convite irresistível a imaginarmos uma forma de conjugar esse etéreo em energia física, sensível. De certa forma funcionamos como a passarola, pois é a vontade que nos impele, apesar do escopo material (biológico e fisiológico) de nossa existência.

***

Acho genial como Saramago consegue entrelaçar as idéias e a materialidade. Ele não fica restrito ao idealismo, ele é bem 'realista' nesse sentido. Realista não no sentido anti-fantasioso, mas, aparentemente de forma paradoxal, sem conceber algo em nível ideal somente. Se suas reflexões existem, elas estão manifestas em algo físico, sensível e não simplesmente atingível por meio da reflexão puramente abstrata.

Er...não sei se deu para entender. Por exemplo, em Ensaio sobre a Cegueira ele certamente abre espaço gigantesco para reflexões, mas não as faz per se, isoladamente e em nível metafísico, ele as enseja através de uma situação concreta, que é a cegueira geral. Ou seja, não só a história concreta é maneira como também serve ela de dispositivo para dar saltos mais altos nas filosofadas.

Deu pra entender ou não? Se não, me digam, que tento me fazer mais claro. Se sim, o que pensam sobre?
 
Não consegui encontrar o trecho em que o padre ensina Blimunda a reconhecer as vontades... Em que parte da história (ou capítulo) está isso?

Manu, acho que é logo no comecinho, não? Vou procurar, acho que devo tê-lo sublinhado quando li. Assim que o achar eu te aviso =)
 
Portal é um jogo em que se pode abrir buracos no tempo e espaço, com entrada e saída em diferentes lugares. Então se pode cair dentro de um buraco no chão e sair por um buraco logo acima, criando dessa forma uma queda infinita. É contra as leis da física de conservação de energia, mas esse jogo usa das próprias leis da física pra modelar todos os movimentos dos objetos. Resultado: apesar da contradição essencial, todo o resto é tão bem feito que tudo fica bem plausível. O Padre Bartolomeu é um tipo clássico da ficção: o cientista maluco. Ele tem toda a explicação para fazer uma máquina voar a partir das vontades humanas. Pra quem não sabe que tudo isso não tem base nenhuma, como uma pessoa qualquer daquela época, não há nada mais coerente. Seria isso o Realismo Fantástico? Para mim, essa é a premissa de toda Ficção Científica.

Um detalhe que achei interessante foi o destaque das coisas inanimadas, tão importantes quanto as personagens. Entre essas coisas, o próprio convento, origem do título da obra, e a própria passarola. Ok, sou engenheiro e sou muito suspeito pra comentar essas coisas, mas acha que a descrição de toda a logística e desafios de construção dessas coisas tão interessante quanto as descrições históricas e a história de amor. É tão bom reafirmar que construções não são feitas por reis mas por pedreiros, reafirmar que do papel pro concreto mil coisas podem sair dos planos. Sem contar a conversa dos santos. Muito hilária.
 
Portal é um jogo em que se pode abrir buracos no tempo e espaço, com entrada e saída em diferentes lugares. Então se pode cair dentro de um buraco no chão e sair por um buraco logo acima, criando dessa forma uma queda infinita. É contra as leis da física de conservação de energia, mas esse jogo usa das próprias leis da física pra modelar todos os movimentos dos objetos. Resultado: apesar da contradição essencial, todo o resto é tão bem feito que tudo fica bem plausível. O Padre Bartolomeu é um tipo clássico da ficção: o cientista maluco. Ele tem toda a explicação para fazer uma máquina voar a partir das vontades humanas. Pra quem não sabe que tudo isso não tem base nenhuma, como uma pessoa qualquer daquela época, não há nada mais coerente. Seria isso o Realismo Fantástico? Para mim, essa é a premissa de toda Ficção Científica.

Você tem razão, Rodovalho, algumas das premissas da história são bastante similares à Ficção Científica, embora eu ache que não seja o melhor conceito para definir. Enfim, detalhes.

Acho interessante como ele amarra um mecanismo mecânico, uma máquina (elemento clássico da Ficção Científica) com uma energia fantástica (o âmbar da alquimia e as vontades etéreas que Blimunda recolhia) para fazer funcionar a passarola. Não estou falando aqui para escarafuncharmos como é que esse troço funciona em detalhes minuciosos, mas sim reconhecer que em alguma medida o fazemos, e, ao fazermos, damos asas à nossa imaginação de uma maneira muito interessante, porque não só exploramos as nossas próprias barreiras mentais para conceber tal funcionamento, como também pesamos as implicações de se ter a vontade humana como combustível que move uma máquina mítica.

Essa amarração é sensacional! Ah, e Portal é sensacional também. :)

Um detalhe que achei interessante foi o destaque das coisas inanimadas, tão importantes quanto as personagens. Entre essas coisas, o próprio convento, origem do título da obra, e a própria passarola. Ok, sou engenheiro e sou muito suspeito pra comentar essas coisas, mas acha que a descrição de toda a logística e desafios de construção dessas coisas tão interessante quanto as descrições históricas e a história de amor. É tão bom reafirmar que construções não são feitas por reis mas por pedreiros, reafirmar que do papel pro concreto mil coisas podem sair dos planos. Sem contar a conversa dos santos. Muito hilária.

Concordo em gênero, número e grau, Rodovalho. Não pirei tanto nas descrições arquitetônicas do convento, mas acho belíssimo a forma como o Saramago investe cada pedra e tijolo daquela estrutura de um valor humano, para além de seu valor de objeto em si. Aquela pedra gigante que é trazida para Mafra, para a construção do convento, por exemplo. Sabendo da história que envolve sua busca e seu transporte, ela deixa de ser uma simples pedra gigante, sabemos que pessoas tiveram que quebrar suas cacholas e suas espinhas para trazê-la até ali, houve até morte. Aquela pedra congrega em si a marca da ação humana e seu trabalho, e justamente essa marca assume um sentido que extravasa o valor oficial que supostamente lhe era dada pela decisão real. Ela passa a possuir em si uma historicidade que é dos pedreiros, trabalhadores e construtores, e não do rei.

Da relação dialógica dessas duas 'vontades': a do rei e a dos construtores, o convento de Mafra resulta. Está engastado em suas paredes sentidos muito distintos, antagônicos, em algum momento, mas que só se consolidaram dessa forma pela relação um com o outro. O engraçado é que, olhando para o tal Convento de Mafra, não mais consigo imaginá-lo somente como uma expressão do poder real e manifestação da sua opulência nababesca, ele está, ao menos para mim, tão entranhado na história dos pedreiros que o fizeram quanto nos anais reais, possivelmente até mais.

Ver anexo 10935

Isso é de fato algo para se pensar, pois olhando o palácio sem ler o livro, é muito provável que ele invoque na mente do observador sua majestade e sua origem de realeza, pois oficialmente surgiu da promessa de Dom João V, mas tendo lido o livro, nossa leitura é bem outra.
 
Minhas ponderações sobre o livro

1) Saramago não tem a gramática rabuscada, mas a pontuação, coisa comum em sua obra, este livro contudo parece ser o mais desafiador que já li, me parece que ele encontra o apogeu de sua escrita no Evangelho S. Jesus Cristo;

2) Para Saramago Portugal parece ser algo isolado da europa, tense a sensação de que o Brasil do outro lado do atlântico ter mais parentesco do que os além montes. A Espanha aparece como uma nação continuação, como quando Blimunda procura Baltasar e diz "Só percebendo que estava fora de Portugal ao ouvir o idioma castelhano";

3) Aqui ele faz ode a ciência, a liberdade de expressão e de pensamento, não diferente mesmo no século XX ele teve quase que crucificado pela Igreja Católica pelos seus livros, indo morar nas Ilhas Canarias. Sua crítica aqui fica realmente mais ligada a liturgia católica do que propriamente a escritura[ Aos noviciamos que andam a pé longos caminhos, a inquisição, aos monge isolado na montanha que tenta estuprar Blimunda,etc.]. Ainda que ele brinque com as diversas interpretações da realidade, por exemplo no acampamento da construção sobre a história da rainha que queria ser mulher , etc;

4) A humanidade que ele da a todos os personagens e tremenda, ninguém é tão especial mais qual o outro, o destaque se da pelo trabalho, independente se na construção do convento com a técnica apurada no manejo de pedras, ou na pesquisa como o Padre Bartolomeu. Um trecho do livro que me deixou emocionado é onde ele diz o nome dos trabalhadores na posteridade, infelizmente perdi a parte no livro, quando achar escrevo aqui;

5) A reconstrução histórica dos costumes e fala é fantástico, porque imaginar que essas pessoas de certo modo são nossos antepassados, é muito comum pensar que eles viviam e pensavam como no Brasil colonial, na verdade as pessoas ali não parecem muito diferentes dos trabalhadores atuais;

6) Antes de investir em obras desumanas, invistam no homem, na escolarização, em sua saúde, etc. Isso fique de aviso para a suntuosa igreja católica, como para os Estados megalomaníacos;
 

Valinor 2023

Total arrecadado
R$2.434,79
Termina em:
Back
Topo