• Caro Visitante, por que não gastar alguns segundos e criar uma Conta no Fórum Valinor? Desta forma, além de não ver este aviso novamente, poderá participar de nossa comunidade, inserir suas opiniões e sugestões, fazendo parte deste que é um maiores Fóruns de Discussão do Brasil! Aproveite e cadastre-se já!

[Melian] Tristes canções [L]

Melian

Período composto por insubordinação.
Quando criança, eu sempre tive medo de que a tristeza se embebedasse de mim e eu acabasse como a maioria das mulheres com as quais eu convivia. Eram mulheres tristes, advindas de casamentos infelizes, que, quando se juntavam, começavam a ouvir as mais tristes canções de Zezé de Camargo e Luciano, Leandro e Leonardo, entre outros. Nunca foi problema, para mim, associar amor a dor. Na verdade, meu maior problema sempre foi para entender quando alguém dizia que estava feliz porque estava amando.

Aquelas canções, com letras românticas, eram, para mim, infinitos gritos de dor. E quando uma daquelas mulheres dizia “essa música é minha” ou “essa é a história da minha vida”, eu não compreendia. Buscava na memória um evento de quando eu era uma criança ainda mais criança. Estávamos, minha mãe e eu, na casa da minha avó, aí começou a passar uma música no rádio e, enquanto ela passava, minha avó dizia: “gosto tanto dessa música”. Parei para ouvir, atentamente, o refrão “lágrimas vão no vento, lágrimas de amor, é pena que o tempo não leva a minha dor”. Achei a música bem triste, mas pensei que minha avó gostava dela porque a letra dizia que o tempo não levava a dor. Pensei, então, que o amor fosse algo eterno e que minha avó chorava porque amava o meu avô e ele tinha partido. E ela sentiria dor para sempre, por causa disso.

Naquela noite, tive um pesadelo. Sonhei que o amor estava sorrindo para mim e eu me escondia dele, porque se o sorriso dele me tocasse, eu jamais conseguiria me livrar dele, e eu não queria sentir dor, eu não queria amar. Nunca.

Ao ver aquelas mulheres se lamentando, enquanto ouviam músicas tristes, eu ficava imaginando que amar deveria ser uma coisa dolorosa demais. A voz que falava, nas canções, sempre passava por algum martírio. Sempre era alguém dizendo que o seu coração estava partido. Eu não conseguia imaginar o que era ter um coração partido, mas sabia que deveria ser algo que doía muito.

Eu tentava comparar aquilo a alguma dor que eu já havia sentido. Tentei a dor de dente, que é uma dor muito incômoda, mesmo, mas logo desisti, porque não consegui imaginar alguém pedindo para que a dor de dente voltasse. E, naquelas canções, a pessoa que sofria, quase sempre tinha esperança de que a pessoa amada voltasse. Depois, tentei a dor de ouvido, mas, não é preciso ser uma adulta para compreender que ninguém chamaria uma dor de ouvido de “pão de mel”.

Um dia, estávamos todos reunidos na casa da minha avó materna. O terreiro da casa dela era bem grande. A terra era tão vermelhinha, que dava até vontade de pegá-la para pintar um coração em uma folha branca qualquer. Mas eu não fazia isso, porque acho que a folha não iria querer ter um coração. Acho que ela não gostaria de sentir dor.

Naquele dia, o que chamou a minha atenção não foi a terra, foi uma canção interpretada por uma das minhas tias e um dos meus tios. Eles começaram a cantar uma canção muito triste. Todos pararam para ouvir. Nunca mais ouvi a canção, mas ainda me lembro de cada detalhe dela, porque a gente não consegue se esquecer de algo tão cheio de sentimento. Meu tio e minha tia cantaram olhando um para o outro. Na verdade, anos depois, eu fui perceber que eles cantavam especialmente um para o outro e que as demais pessoas que estava ali, naquele momento, foram completamente ignoradas por eles. Eles cantaram o que não conseguiam falar.

É uma canção que falava do fim de um relacionamento. Cada palavra da canção parecia cortar mais fundo do que uma espada, porque eu vi que todo mundo ficava triste, a cada verso cantado. Consegui sentir um pouco do que estava acontecendo quando eles cantaram uma parte que dizia “mesmo estando um ao lado do outro, sente solidão”. Não entendi o sentido exato das palavras, na ocasião, mas senti que eu estava sozinha ali. Eu estava rodeada de parentes, mas eles estavam tão mergulhados em sua dor, que nem notavam que eu estava incomodada com aquilo tudo. Senti que só eu percebia que aquelas pessoas estavam se machucando. E fiquei muito confusa quando, ao terminarem de cantar a canção, minha tia e meu tio se beijaram.

Algum tempo depois, minha avó faleceu. Minha tia e meu tio se separaram. E ela continuou a dizer que aquelas canções tristes foram feitas para ela. E ela sempre encontrava outras mulheres que concordavam com ela e diziam “para mim também”. Acabei me condicionando a acreditar que o amor realmente era algo muito ruim, algo que machucava, algo que feria. E o pior, me convenci de que as pessoas gostavam de sofrer. Eu me senti tão mal com aquilo, tão mal.

Hoje, depois de muitos anos, enquanto tomo minhas cervejas e ouço parte da discografia de Zezé de Camargo e Luciano, finalmente, consigo compreender o que aquelas mulheres queriam dizer. Queria poder voltar no tempo e dizer, para cada uma delas, “sua dor é a minha dor”, mas não acho que adiantaria. Não acho que conseguiria algo além de muitas lágrimas. Eu não quero isso. Aliás, tentar evitar as lágrimas foi o meu mal. Eu não resisto a um sorriso, e quando o amor sorriu para mim, retribuí.
 
Realmente Melian, é um grande problema para as pessoas apreciadoras de musicas em geral, que não se prendem em um só genero, se identificam com muita das musicas que ouve. Sente que conhece o autor da musica e o quê ele sentiu enquanto estava escrevendo. No nosso processo de crescimento, guardaremos sempre musicas que irão lembrar pessoas, lugares, ocasiões e momentos...Isso é bom e ruim ao mesmo tempo...
 
Passei a infância toda ouvindo essas canções de amor sertanejas. Amor que rima com dor. Todas as músicas que ouvia tinha a palavra amor na letra. Então eu escutei Legião Urbana e descobri que algumas músicas não precisavam ser rituais de acasalamento.

É estranho letras de música que não contenham romance ou sexo. Mais estranho ainda músicas instrumentais. Existe tanta coisa além do amor e fazer amor! Isso não é amor. É uma idéia fixa de masoquismo.
 
A música nunca me ensinou que o amor fazia mal, que ele doía. O amor veio primeiro, o mais pueril possível, encheu de fel meu coração e fui curtindo o mel de amar com o fel da amargura da distância, da rejeição, da incompatibilidade. Ainda me assusta pensar que sentia essas coisas na pré-adolescência. Mas a música não era paliativo, não era uma fuga, nem uma lembrança. Era um espelho.
 

Valinor 2023

Total arrecadado
R$2.404,79
Termina em:
Back
Topo