Jacques Austerlitz
(Rodrigo)
MÁS AÇÕES NÃO FICAM IMPUNES
Fomos no super hoje. Eu e meu filho. Ele normalmente vai com a mãe. Comigo, era a primeira vez. Fiquei preocupado com o que vi. O menino não tem o menor senso de realidade. Logo na entrada, depois que saímos do carro e passamos pela porta automática, eu pedi que ele nos pegasse um carrinho, e ele foi correndo em direção a um funcionário do super, um mulato alto de canelas finas, que carregava os carrinhos de volta ao lugar, onde sempre ficam, em um canto. Pensei: ok, ele vai pedir um carrinho ao funcionário; mas não, ao invés de pedir o carrinho e trazê-lo para que pudéssemos comprar em paz, ele ajeitou alguns carrinhos em linha reta para o funcionário, antes de pegar o nosso. Não foi um simples auxílio, ele efetivamente fez parte do trabalho do funcionário. Espero que o funcionário não tenha pedido auxílio, e acredito realmente que não, se eu pude perceber corretamente, ele também sentiu-se constrangido e talvez só não tenha afastado o meu filho porque tem ao menos bom senso suficiente para saber que com cliente não se discute; mas, neste caso, é ainda mais grave o fato de que a ajuda partiu do meu filho. E ele não apenas interferiu como constrangeu o funcionário. Ficou lá coisa de um minuto e meio arrumando carrinhos e os deixando em linha reta, enquanto eu olhava de longe horrorizado. Quando ele pegou o nosso carrinho, o funcionário agradeceu, certamente apenas por educação, pois não havia motivo para agradecimento com o que havia se passado, e o meu filho voltou até mim com o carrinho, sorrindo. Não lhe disse nada na hora, claro, pois queria evitar constrangê-lo em público; não poderia eu recriminá-lo por constranger o pobre funcionário em público e, em reprimenda, fazer-lhe o mesmo. Quando voltamos para casa, eu lhe disse: filho, o que tem na cabeça? Não percebe o dano que poderia ter causado hoje? Não se pode se intrometer no trabalho alheio; o trabalho é sagrado. O que seria daquele pobre funcionário semialfabetizado se todos se pusessem a ajeitar os carrinhos? Você sabe o que seria dele? Ele estaria desempregado. E se as pessoas ajudassem em todos os supers, quantos outros desempregados nós não teríamos? Não se atrapalha o trabalho alheio, filho. Se quando nós voltarmos lá, o pobre homem tiver perdido o emprego, a culpa será também sua; coloquei-o de castigo, claro. Dois dias sem videogame. O videogame está ali guardado no nosso roupeiro. Não queria ser intransigente, mas ele tem que aprender.
Fomos no super hoje. Eu e meu filho. Ele normalmente vai com a mãe. Comigo, era a primeira vez. Fiquei preocupado com o que vi. O menino não tem o menor senso de realidade. Logo na entrada, depois que saímos do carro e passamos pela porta automática, eu pedi que ele nos pegasse um carrinho, e ele foi correndo em direção a um funcionário do super, um mulato alto de canelas finas, que carregava os carrinhos de volta ao lugar, onde sempre ficam, em um canto. Pensei: ok, ele vai pedir um carrinho ao funcionário; mas não, ao invés de pedir o carrinho e trazê-lo para que pudéssemos comprar em paz, ele ajeitou alguns carrinhos em linha reta para o funcionário, antes de pegar o nosso. Não foi um simples auxílio, ele efetivamente fez parte do trabalho do funcionário. Espero que o funcionário não tenha pedido auxílio, e acredito realmente que não, se eu pude perceber corretamente, ele também sentiu-se constrangido e talvez só não tenha afastado o meu filho porque tem ao menos bom senso suficiente para saber que com cliente não se discute; mas, neste caso, é ainda mais grave o fato de que a ajuda partiu do meu filho. E ele não apenas interferiu como constrangeu o funcionário. Ficou lá coisa de um minuto e meio arrumando carrinhos e os deixando em linha reta, enquanto eu olhava de longe horrorizado. Quando ele pegou o nosso carrinho, o funcionário agradeceu, certamente apenas por educação, pois não havia motivo para agradecimento com o que havia se passado, e o meu filho voltou até mim com o carrinho, sorrindo. Não lhe disse nada na hora, claro, pois queria evitar constrangê-lo em público; não poderia eu recriminá-lo por constranger o pobre funcionário em público e, em reprimenda, fazer-lhe o mesmo. Quando voltamos para casa, eu lhe disse: filho, o que tem na cabeça? Não percebe o dano que poderia ter causado hoje? Não se pode se intrometer no trabalho alheio; o trabalho é sagrado. O que seria daquele pobre funcionário semialfabetizado se todos se pusessem a ajeitar os carrinhos? Você sabe o que seria dele? Ele estaria desempregado. E se as pessoas ajudassem em todos os supers, quantos outros desempregados nós não teríamos? Não se atrapalha o trabalho alheio, filho. Se quando nós voltarmos lá, o pobre homem tiver perdido o emprego, a culpa será também sua; coloquei-o de castigo, claro. Dois dias sem videogame. O videogame está ali guardado no nosso roupeiro. Não queria ser intransigente, mas ele tem que aprender.