Salamanca
=]
Uma boa razão para ver essse filme? Segundo o IMDB: "Genre: Drama / Fantasy / Romance"
Direção: Apichatpong Weerasethakul ("Blissfully Yours"; "Mysterious Object at Noon")
Com Banlop Lomnoi (Keng) e Sakda Kaewbuadee (Tong)
----
Não sei se valia a pena abrir um tópico para esse filme, porque poucas pessoas assistiram a ele. Mas depois de ponderar um pouco decidi criá-lo mesmo assim. Primeiro porque ele foi exibido nos festivais de cinema no RJ e SP ano passado, e sei de algumas pessoas que viram-no. Segundo porque ele está disponível em Área 1 em algumas locadoras. Terceiro porque ele é um dos melhores filmes de todos os tempos, e só por isso merece ter um tópico.
Sobre o que é o filme, afinal? É sobre a natureza humana, acima de tudo. Sobre sua dicotomia humana/animal, tema já bastante debatido. O que faz dele especial é como ele explora o assunto de forma tão original e mística.
Vou falar por que eu gosto dele, e pode ser que tenham spoilers, no entanto, não acho que isso tenha alguma importância, porque o menos relevante é a trama. Anyway, avisado.
(já para o Folco, a trama é extremamente importante e o que eu escrevi embaixo estraga o filme completamente para quem for vê-lo, portanto siga por conta própria e risco)
A primeira metade é um romance. Conta a história de dois homens que se apaixonam. Um é soldado e o outro um camponês tentando arrumar um emprego na cidade. As primeiras tomadas mostram o cotidiano deles, com planos longos e silenciosos - como o que um dos protagonistas viaja de ônibus; a câmera permanece imóvel por um tempo, enquanto o rapaz olha pela janela com um olhar distante. Não há muito o que mostrar: ambos são cidadãos comuns e simples, sem grande destaque, cujas atividades não são grandes feitos e nem compostas de muita ambição.
Não se trata de um romance hollywoodiano cheio de encontros e desencontros e construído de início, meio e fim. Na verdade, a combinação entre o som e a estética confere a essas cenas um aspecto quase documental. Num determinado momento os dois jovens estão conversando e, sem a presença de nenhuma trilha sonora - exceto o som da chuva - um deles oferece seu coração ao outro - provavelmente o momento mais romântico do longa, momento que numa grande quantidade de filmes soaria meloso, mas aqui, por parecer tão real, soa sincero.
Aliás, essa declaração ganha destaque interessante se considerarmos que um dos temas do filme é justamente a nossa capacidade de, uma vez perdidos no amor, compartilhar o controle de nossas vidas com outra pessoa, para que ela possa nos domar e vice-versa. O filme abre com a seguinte citação: "Todo ser humano é, por natureza, um animal selvagem. Nosso dever como seres humanos é ser como treinadoras que domam seus animais". Desde então e até o final, essa dualidade homem/animal está presente. Quando ganhamos um domador nós podemos derrubar nossa faceta humana e liberar o lado animal. Numa outra cena - um pouco nojenta - os dois rapazes começam a lamber a mão um do outro, num ato claramente animalesco, como leões fariam.
Creio que esse seja o ápice. Para eles, o mundo agora é perfeito. Há uma montagem em que o soldado (ou é o camponês? não lembro) anda de moto, sorrindo, olhando as coisas ao redor. A câmera desliza sobre o asfalto, observando a calçada e os postes, como se tudo fosse muito bonito; até mesmo uma briga no meio da rua ganha um aspecto agradável - a trilha que acompanha essa montagem é calma e bela.
E aí a tela fica escura e a primeira metade termina.
A segunda metade não é um romance. É uma espécie de terror místico e sobrenatural. Um livro se abre na frente das câmeras e lemos a lenda de um espírito da floresta que pode se transformar em tigre. Um dos dois namorados desaparece e o outro incursa numa jornada nas profundezas da floresta extremamente densa e sombria, repleta de, como percebemos logo depois, elementos sobrenaturais e mágicos. Provavelmente ele está determinado a enfrentar o espírito e recuperar o companheiro.
Nessa jornada, ele encontra o trigre. E descobre que o tigre e seu companheiro podem ser a mesma pessoa. O tigre deixa de ser sua caça para ser um objeto de obsessão. Para piorar, um macaco lhe conta - sim, um macaco lhe conta - que o animal também está a sua procura ("O tigre te persegue como uma sombra; você é sua presa e sua companhia"). É uma espécie de disputa para ver quem vai subjugar/dominar/domesticar quem.
Durante a procura, o homem vai perdendo sua razão e abrindo mão de seu caráter humano. Ele começa e ficar sujo de lama e folha, se camuflando de forma assustadora na selva que o rodeia. Passa a observar fenômenos estranhos que podem muito bem ser representações do espírito da natureza. Talvez ele esteja passando de um plano a outro.
Uma das coisas que podemos dizer é que tanto a primeira quanto a segunda metade falam sobre a mesma coisa porém sob perspectivas opostas. Ambas revelam uma prévia daquilo que o ser humano intrinsicamente carrega em sua alma - a selvageria primitiva, manifestada por impulsos instintivos e animalescos; porém, uma é vista dentro do contexto urbano e a outra no contexto natural.
Ou podemos estabelecer uma relação entre as duas partes se considerarmos a segunda como uma metáfora daquilo que fazemos instintivamente quando amamos: perseguimos a pessoa, caçamos; ao mesmo tempo que é nossa presa, é nossa companheira. É domar e ser domado, como sugere a citação que abre o filme; aliás, a idéia da segunda parte ser uma metáfora ganha força se considerarmos que ela pode ser uma representação literal daquela frase.
Seja como for, tudo isso não passa de reflexões e nada é certo. A cada vez que penso no filme mais idéias me chegam e mais descarto. Particulamente, não consigo achar um sentido plausível para vários elementos do longa. O diretor Weerasethakul descreve seu filme como uma "memória de amor e dor". E numa entrevista, comenta: "Acredito que todos temos este Mal. Ficamos afeiçoados a certas coisas, especialmente à beleza de nossas próprias espécies. Apresentei idéias semelhantes em 'Blissfully Yours'. Mas desta vez parece que esta afeição desenvolveu-se a um ponto de ser um Mal. Chegamos a um ponto da vida em que somos sufocados por belas memórias de nossos amados. Os amantes em 'Mal dos Trópicos' ficam sufocados pelo amor deles porque ele é tão certo, tão natural."
Mas o prazer de assistir "Mal dos Trópicos" não reside só em achar soluções. A narrativa é atípica, a atmosfera é perfeita, a fotografia é maravilhosa e há um bombardeio de imagens alucinantes e de composições inesquecíveis de uma beleza incrível, como a dos vaga-lumes, do espírito da vaca e do último encontro entre o homem e o tigre.
Eu realmente acho que as pessoas deviam dar uma chance a esse filme. Eu lembro de ter assistido pela primeira vez e ter saído do cinema estupefato, com uma sensação inédita. Na segunda vez foi duplamente melhor, e não vejo a hora de ver outras cem vezes.
Direção: Apichatpong Weerasethakul ("Blissfully Yours"; "Mysterious Object at Noon")
Com Banlop Lomnoi (Keng) e Sakda Kaewbuadee (Tong)
----
Não sei se valia a pena abrir um tópico para esse filme, porque poucas pessoas assistiram a ele. Mas depois de ponderar um pouco decidi criá-lo mesmo assim. Primeiro porque ele foi exibido nos festivais de cinema no RJ e SP ano passado, e sei de algumas pessoas que viram-no. Segundo porque ele está disponível em Área 1 em algumas locadoras. Terceiro porque ele é um dos melhores filmes de todos os tempos, e só por isso merece ter um tópico.
Sobre o que é o filme, afinal? É sobre a natureza humana, acima de tudo. Sobre sua dicotomia humana/animal, tema já bastante debatido. O que faz dele especial é como ele explora o assunto de forma tão original e mística.
Vou falar por que eu gosto dele, e pode ser que tenham spoilers, no entanto, não acho que isso tenha alguma importância, porque o menos relevante é a trama. Anyway, avisado.
(já para o Folco, a trama é extremamente importante e o que eu escrevi embaixo estraga o filme completamente para quem for vê-lo, portanto siga por conta própria e risco)
A primeira metade é um romance. Conta a história de dois homens que se apaixonam. Um é soldado e o outro um camponês tentando arrumar um emprego na cidade. As primeiras tomadas mostram o cotidiano deles, com planos longos e silenciosos - como o que um dos protagonistas viaja de ônibus; a câmera permanece imóvel por um tempo, enquanto o rapaz olha pela janela com um olhar distante. Não há muito o que mostrar: ambos são cidadãos comuns e simples, sem grande destaque, cujas atividades não são grandes feitos e nem compostas de muita ambição.
Não se trata de um romance hollywoodiano cheio de encontros e desencontros e construído de início, meio e fim. Na verdade, a combinação entre o som e a estética confere a essas cenas um aspecto quase documental. Num determinado momento os dois jovens estão conversando e, sem a presença de nenhuma trilha sonora - exceto o som da chuva - um deles oferece seu coração ao outro - provavelmente o momento mais romântico do longa, momento que numa grande quantidade de filmes soaria meloso, mas aqui, por parecer tão real, soa sincero.
Aliás, essa declaração ganha destaque interessante se considerarmos que um dos temas do filme é justamente a nossa capacidade de, uma vez perdidos no amor, compartilhar o controle de nossas vidas com outra pessoa, para que ela possa nos domar e vice-versa. O filme abre com a seguinte citação: "Todo ser humano é, por natureza, um animal selvagem. Nosso dever como seres humanos é ser como treinadoras que domam seus animais". Desde então e até o final, essa dualidade homem/animal está presente. Quando ganhamos um domador nós podemos derrubar nossa faceta humana e liberar o lado animal. Numa outra cena - um pouco nojenta - os dois rapazes começam a lamber a mão um do outro, num ato claramente animalesco, como leões fariam.
Creio que esse seja o ápice. Para eles, o mundo agora é perfeito. Há uma montagem em que o soldado (ou é o camponês? não lembro) anda de moto, sorrindo, olhando as coisas ao redor. A câmera desliza sobre o asfalto, observando a calçada e os postes, como se tudo fosse muito bonito; até mesmo uma briga no meio da rua ganha um aspecto agradável - a trilha que acompanha essa montagem é calma e bela.
E aí a tela fica escura e a primeira metade termina.
A segunda metade não é um romance. É uma espécie de terror místico e sobrenatural. Um livro se abre na frente das câmeras e lemos a lenda de um espírito da floresta que pode se transformar em tigre. Um dos dois namorados desaparece e o outro incursa numa jornada nas profundezas da floresta extremamente densa e sombria, repleta de, como percebemos logo depois, elementos sobrenaturais e mágicos. Provavelmente ele está determinado a enfrentar o espírito e recuperar o companheiro.
Nessa jornada, ele encontra o trigre. E descobre que o tigre e seu companheiro podem ser a mesma pessoa. O tigre deixa de ser sua caça para ser um objeto de obsessão. Para piorar, um macaco lhe conta - sim, um macaco lhe conta - que o animal também está a sua procura ("O tigre te persegue como uma sombra; você é sua presa e sua companhia"). É uma espécie de disputa para ver quem vai subjugar/dominar/domesticar quem.
Durante a procura, o homem vai perdendo sua razão e abrindo mão de seu caráter humano. Ele começa e ficar sujo de lama e folha, se camuflando de forma assustadora na selva que o rodeia. Passa a observar fenômenos estranhos que podem muito bem ser representações do espírito da natureza. Talvez ele esteja passando de um plano a outro.
Uma das coisas que podemos dizer é que tanto a primeira quanto a segunda metade falam sobre a mesma coisa porém sob perspectivas opostas. Ambas revelam uma prévia daquilo que o ser humano intrinsicamente carrega em sua alma - a selvageria primitiva, manifestada por impulsos instintivos e animalescos; porém, uma é vista dentro do contexto urbano e a outra no contexto natural.
Ou podemos estabelecer uma relação entre as duas partes se considerarmos a segunda como uma metáfora daquilo que fazemos instintivamente quando amamos: perseguimos a pessoa, caçamos; ao mesmo tempo que é nossa presa, é nossa companheira. É domar e ser domado, como sugere a citação que abre o filme; aliás, a idéia da segunda parte ser uma metáfora ganha força se considerarmos que ela pode ser uma representação literal daquela frase.
Seja como for, tudo isso não passa de reflexões e nada é certo. A cada vez que penso no filme mais idéias me chegam e mais descarto. Particulamente, não consigo achar um sentido plausível para vários elementos do longa. O diretor Weerasethakul descreve seu filme como uma "memória de amor e dor". E numa entrevista, comenta: "Acredito que todos temos este Mal. Ficamos afeiçoados a certas coisas, especialmente à beleza de nossas próprias espécies. Apresentei idéias semelhantes em 'Blissfully Yours'. Mas desta vez parece que esta afeição desenvolveu-se a um ponto de ser um Mal. Chegamos a um ponto da vida em que somos sufocados por belas memórias de nossos amados. Os amantes em 'Mal dos Trópicos' ficam sufocados pelo amor deles porque ele é tão certo, tão natural."
Mas o prazer de assistir "Mal dos Trópicos" não reside só em achar soluções. A narrativa é atípica, a atmosfera é perfeita, a fotografia é maravilhosa e há um bombardeio de imagens alucinantes e de composições inesquecíveis de uma beleza incrível, como a dos vaga-lumes, do espírito da vaca e do último encontro entre o homem e o tigre.
Eu realmente acho que as pessoas deviam dar uma chance a esse filme. Eu lembro de ter assistido pela primeira vez e ter saído do cinema estupefato, com uma sensação inédita. Na segunda vez foi duplamente melhor, e não vejo a hora de ver outras cem vezes.
Última edição: