Luciano R. M.
vira-latas
Um quarto, totalmente caótico: coisas espalhadas pelo chão, livros em cima de uma escrivaninha, garrafas vazias e vários cinzeiros, alguns cheios, outros vazios, alguns ainda virados e com seu conteúdo espalhado. Sentado em um canto do quarto há um homem e, do meio da sala o Odradek o espreita. O Odradek teve ter a mesma voz do Homem.
Odradek
Quem é você?
Homem
Quem sou eu.
Odradek
Quem é você?
Homem
Quem sou eu.
Odradek
Quem é você?
Homem
Eu. Não. Sei.
Mas eu queria ser Franz Kafka.
Odradek
Franz Kafka? Quem é esse?
Homem
Gregor Samsa.
Odradek
O homem ou a barata?
Homem
O homem-barata.
Odradek
Isso parece ser muito solitário.
Homem
Não saber quem eu sou é que é. Se eu fosse Kafka-Samsa eu saberia. E eu não estaria tão triste, eu não estaria tão sozinho.
Odradek
Você acha mesmo?
Homem
Eu teria uma alma. Eu seria uma alma.
Odradek
E isso diminuiria a dor?
Homem
Quem falou em dor?
Odradek
É óbvio que você sente dor. Dá pra ver nas garrafas espalhadas pelo chão, dá pra ver nos cigarros apagados e nunca terminados.
Homem
Eu não estava chorando quando você chegou. Não estava.
Odradek
É claro que não.
Homem
Eu nunca chorei. Só quando eu era criança. Mas é isso que as crianças fazem, não? Elas são felizes e elas choram porque sabem que vão crescer e ser infelizes, mas daí vão esquecer como se chora.
Odradek
Você esqueceu como se chora?
Homem
Eu acho que tudo isso é uma merda. Eu tomo comprimidos pra não oscilar demais o meu humor. O médico disse que eu posso acabar me matando, numa dessas mudanças. Mas agora eu sou só um saco de guardar comprimidos, um saco de guardar comprimidos que se sente sozinho e que não sabe quem ou o que é, e que só serve pra comer e pra cagar e pra encher de comprimidos. É uma modalidade estranha de infelicidade, essa que nós inventamos pra dizermos que não somos loucos.
Odradek
Eu nunca disse uma coisa dessas.
Homem
O plural é retórico. O plural é sempre retórico.
Odradek
E a sua irmã?
Homem
Irmã?
Odradek
Se você quer ser Kafka-Samsa, deve ter uma irmã.
Homem
Eu tenho uma irmã.
Odradek
E?
Homem
E. Não sei. Não sei mesmo.
Odradek
E tem alguma coisa que você saiba?
Homem
Com certeza não.
Odradek
Com certeza, não? Ou com certeza não?
Homem
Não sei.
Odradek
Essa sua mania de ser sempre a pior pessoa da face da terra me irrita as vezes.
Homem
Essa minha mania de ser sempre me irrita.
Odradek
Quem é você?
Homem
Quem sou eu.
Odradek
Quem é você?
Homem
Quem sou eu.
Odradek
Quem é você?
Homem
Eu queria me chamar Franz Kafka e morar em Praga. É uma cidade escura, escura e molhada, essa Praga. É uma cidade fria. E tem um rio lá. O Vltava. Parece que as pessoas gostam de se matar pulando nesse rio, no inverno. Eu faria isso. Ou não. Porque o Kafka, o Kafka não se matou. Eu não entendo como uma pessoa como ele não se matou, porque eu acho que eu sou tão infeliz quanto ele e eu queria morar em Praga para poder pular nesse rio, no inverno, e morrer.
Odradek
Você não acha que seria um modo muito terrível de morrer?
Homem
Acho. Mas eu também acho que esse é um modo muito terrível de viver. Tendo de escolher entre extremos alternados e descontrolados ou então me tornar uma porcaria de Golem movido a comprimidos mágicos que não fazem porra nenhuma a não ser me tornar cada vez mais gordo, cada vez mais gordo, me fazem ter cada vez mais caspa e me tornam cada dia mais indifirente. Isso é terrível. Eu ia pular no Vltava no meio da noite e deixar uma carta dentro de um livro- A metamorfose, provavelmente- e na carta eu ia falar sobre todas as coisas que eu nunca falei, ia desvelar cada uma das minhas mentiras, ia transformar cada uma das minhas mágoas, das minhas garrafas e dos meus cigarros em algo palpável, em dor. E eu ia fazer isso para as pessoas entenderem quanta merda se passa na minha alma- porque se eu fosse Kafka-Samsa e vivesse numa cidade escura e fria, eu teria uma alma- e para elas não ficarem bravas comigo e não me odiarem e não ficarem tristes e na verdade, não sentirem porra nenhuma nem lembrarem de mim quando eu estiver bebendo das águas do Styx- o rio do outro lado- para esquecer de tudo, para me transformar numa tábula rasa, em um teorema não resolvido. Eu ia deixar essa carta nesse livro e eu ia tirar minhas roupas, dobrá-las e colocá-las em um canto, onde não iriam atrapalhar nenhum passante. Eu iria fazer um Kaddish- mesmo que D’us não fosse me ouvir porque eu estaria sozinho e isso não atende o miniam- e então eu ia me deixar cair na água fria. Acho que talvez eu fosse tremer um pouco no começo, e que o frio fosse doer. Mas depois eu iria acabar relaxando e aos poucos, lentamente, eu iria sentir cada parte de meu corpo ficando mais leve e sentindo menos e menos e menos e cada vez menos, até eu desaparecer. E aí no outro dia de manhã talvez fosse um mendigo- o mesmo que pegou minhas roupas mas que de noite estava muito bêbado para me ver na água, no escuro- ou então uma criança- uma menininha loira, amada e querida filha única de um casal de funcionários públicos- quem me encontraria e, na verdade, não me encontraria pois já não seria eu e já não seria mais nada.
Odradek
Mas Kafka-Samsa nunca fez isso.
Homem
Não, nunca fez.
Odradek
E então?
Homem
Eu também não moro em Praga. Nenhum rio é tão frio quanto o Vltava. Seria uma traição: comigo e com o rio.
Odradek
Como vai ser?
Homem
Não sei. Talvez eu tenha tuberculose. Ou talvez eu só definhe, de tristeza.
Odradek
Quem é você?
Homem
Quem sou eu.
Odradek
Quem é você?
Homem
Quem sou eu.
Odradek
Quem é você?
Homem
Quem sou eu.
Odradek
Quem é você?
Homem
Eu. Não. Sei.
Mas eu queria ser Franz Kafka.
Odradek
Franz Kafka? Quem é esse?
Homem
Gregor Samsa.
Odradek
O homem ou a barata?
Homem
O homem-barata.
Odradek
Isso parece ser muito solitário.
Homem
Não saber quem eu sou é que é. Se eu fosse Kafka-Samsa eu saberia. E eu não estaria tão triste, eu não estaria tão sozinho.
Odradek
Você acha mesmo?
Homem
Eu teria uma alma. Eu seria uma alma.
Odradek
E isso diminuiria a dor?
Homem
Quem falou em dor?
Odradek
É óbvio que você sente dor. Dá pra ver nas garrafas espalhadas pelo chão, dá pra ver nos cigarros apagados e nunca terminados.
Homem
Eu não estava chorando quando você chegou. Não estava.
Odradek
É claro que não.
Homem
Eu nunca chorei. Só quando eu era criança. Mas é isso que as crianças fazem, não? Elas são felizes e elas choram porque sabem que vão crescer e ser infelizes, mas daí vão esquecer como se chora.
Odradek
Você esqueceu como se chora?
Homem
Eu acho que tudo isso é uma merda. Eu tomo comprimidos pra não oscilar demais o meu humor. O médico disse que eu posso acabar me matando, numa dessas mudanças. Mas agora eu sou só um saco de guardar comprimidos, um saco de guardar comprimidos que se sente sozinho e que não sabe quem ou o que é, e que só serve pra comer e pra cagar e pra encher de comprimidos. É uma modalidade estranha de infelicidade, essa que nós inventamos pra dizermos que não somos loucos.
Odradek
Eu nunca disse uma coisa dessas.
Homem
O plural é retórico. O plural é sempre retórico.
Odradek
E a sua irmã?
Homem
Irmã?
Odradek
Se você quer ser Kafka-Samsa, deve ter uma irmã.
Homem
Eu tenho uma irmã.
Odradek
E?
Homem
E. Não sei. Não sei mesmo.
Odradek
E tem alguma coisa que você saiba?
Homem
Com certeza não.
Odradek
Com certeza, não? Ou com certeza não?
Homem
Não sei.
Odradek
Essa sua mania de ser sempre a pior pessoa da face da terra me irrita as vezes.
Homem
Essa minha mania de ser sempre me irrita.
Odradek
Quem é você?
Homem
Quem sou eu.
Odradek
Quem é você?
Homem
Quem sou eu.
Odradek
Quem é você?
Homem
Eu queria me chamar Franz Kafka e morar em Praga. É uma cidade escura, escura e molhada, essa Praga. É uma cidade fria. E tem um rio lá. O Vltava. Parece que as pessoas gostam de se matar pulando nesse rio, no inverno. Eu faria isso. Ou não. Porque o Kafka, o Kafka não se matou. Eu não entendo como uma pessoa como ele não se matou, porque eu acho que eu sou tão infeliz quanto ele e eu queria morar em Praga para poder pular nesse rio, no inverno, e morrer.
Odradek
Você não acha que seria um modo muito terrível de morrer?
Homem
Acho. Mas eu também acho que esse é um modo muito terrível de viver. Tendo de escolher entre extremos alternados e descontrolados ou então me tornar uma porcaria de Golem movido a comprimidos mágicos que não fazem porra nenhuma a não ser me tornar cada vez mais gordo, cada vez mais gordo, me fazem ter cada vez mais caspa e me tornam cada dia mais indifirente. Isso é terrível. Eu ia pular no Vltava no meio da noite e deixar uma carta dentro de um livro- A metamorfose, provavelmente- e na carta eu ia falar sobre todas as coisas que eu nunca falei, ia desvelar cada uma das minhas mentiras, ia transformar cada uma das minhas mágoas, das minhas garrafas e dos meus cigarros em algo palpável, em dor. E eu ia fazer isso para as pessoas entenderem quanta merda se passa na minha alma- porque se eu fosse Kafka-Samsa e vivesse numa cidade escura e fria, eu teria uma alma- e para elas não ficarem bravas comigo e não me odiarem e não ficarem tristes e na verdade, não sentirem porra nenhuma nem lembrarem de mim quando eu estiver bebendo das águas do Styx- o rio do outro lado- para esquecer de tudo, para me transformar numa tábula rasa, em um teorema não resolvido. Eu ia deixar essa carta nesse livro e eu ia tirar minhas roupas, dobrá-las e colocá-las em um canto, onde não iriam atrapalhar nenhum passante. Eu iria fazer um Kaddish- mesmo que D’us não fosse me ouvir porque eu estaria sozinho e isso não atende o miniam- e então eu ia me deixar cair na água fria. Acho que talvez eu fosse tremer um pouco no começo, e que o frio fosse doer. Mas depois eu iria acabar relaxando e aos poucos, lentamente, eu iria sentir cada parte de meu corpo ficando mais leve e sentindo menos e menos e menos e cada vez menos, até eu desaparecer. E aí no outro dia de manhã talvez fosse um mendigo- o mesmo que pegou minhas roupas mas que de noite estava muito bêbado para me ver na água, no escuro- ou então uma criança- uma menininha loira, amada e querida filha única de um casal de funcionários públicos- quem me encontraria e, na verdade, não me encontraria pois já não seria eu e já não seria mais nada.
Odradek
Mas Kafka-Samsa nunca fez isso.
Homem
Não, nunca fez.
Odradek
E então?
Homem
Eu também não moro em Praga. Nenhum rio é tão frio quanto o Vltava. Seria uma traição: comigo e com o rio.
Odradek
Como vai ser?
Homem
Não sei. Talvez eu tenha tuberculose. Ou talvez eu só definhe, de tristeza.
Odradek
Quem é você?
Homem
Quem sou eu.