Saiu uma reportagem sobre o que seriam os regionalistas atuais na Veja da semana passada:
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Minha terra tem primores
Os escritores não gostam de ser qualificados de "regionalistas", mas a própria resistência ao termo prova que ele ainda tem algum sentido
Os escritores contemporâneos esperneiam para não ser tachados de regionalistas. Já consagrado por romances como Dois Irmãos, o amazonense Milton Hatoum, 56 anos, que está lançando seu primeiro livro de contos, A Cidade Ilhada (Companhia das Letras; 218 páginas; 31 reais) – o título faz referência a Manaus –, recentemente declarou à Folha de S.Paulo que o conceito de regionalismo ficou datado e precisa ser revisado. Professor de literatura da Universidade da Califórnia, o pernambucano José Luiz Passos, 38 anos, que estreia na ficção com Nosso Grão Mais Fino (Objetiva/Alfagura; 168 páginas; 37,90 reais), nega que o romance seja "tipicamente nordestino" – embora a ação do livro se desenvolva na zona açucareira de seu estado natal. O pernambucano Raimundo Carrero e o cearense Ronaldo Correia de Brito também já protestaram contra o rótulo. A ideia de uma literatura regionalista, portanto, deixou de fazer sentido? Talvez não: o próprio fato de tantos autores se voltarem contra o conceito atesta que, de alguma forma, ele sobrevive. O curioso é que a classificação que hoje parece pejorativa responde pelas melhores obras da ficção brasileira do século XX – clássicos como Vidas Secas e São Bernardo, de Graciliano Ramos, e Grande Sertão: Veredas, de Guimarães Rosa.
Talvez seja exatamente pela qualidade do regionalismo que se consolidou a partir da chamada Geração de 1930 que o termo tenha ficado tão pesado para os novos escritores. Graciliano, Jorge Amado, José Lins do Rego, Erico Verissimo estavam, afinal, desbravando o interior profundo do Brasil. Redescobriram o sertão, o pampa, o canavial, paisagens até então pouco visitadas pela literatura (ou mal visitadas, se lembrarmos O Gaúcho e O Sertanejo, exotismos extremos dentro da obra exótica de José de Alencar). Hoje, porém, certas marcas regionalistas tornaram-se convenções literárias desgastadas. Junte um coronel, alguns retirantes, um ou outro jagunço, embale tudo em uma linguagem "oral", e está pronto um romance nordestino. O regionalismo tornou-se uma variedade de beletrismo. Para piorar, o termo pode ser contestado também por sua imprecisão. Se qualquer lugar, afinal, pode ser uma "região", por que as narrativas manauaras de Milton Hatoum seriam regionais, quando os contos cariocas de Rubem Fonseca ou curitibanos de Dalton Trevisan passam por "urbanos"? Satolep, belo romance do cantor e compositor gaúcho Vitor Ramil, deixaria de ser regionalista (como já o consideraram) se tivesse lugar em Porto Alegre, e não em Pelotas? Afirmar que a boa literatura não é regional, mas "universal", não resolve a parada. "Universal"é um adjetivo ainda mais gasto e vago. Por mais relativo que o termo seja, o regionalismo ainda tem sua utilidade para designar certos valores literários. Pelo modo como descem a minudências na descrição dos dados locais e às vezes incorporam certos maneirismos de linguagem, A Cidade Ilhada e Nosso Grão mais Fino têm, sim, certo parentesco com a literatura que a Geração de 30 praticava. Isso não diz nada sobre a qualidade desses livros. O romance de Passos é poderoso, embora irregular; os contos de Hatoum são regulares na mediocridade.
Hatoum cultiva uma crença ingênua na autenticidade telúrica da Amazônia. Nos seus contos, todo estrangeiro que visita Manaus ou a floresta em torno cai fatalmente enfeitiçado (em A Casa Ilhada, uma noite de festa com um dançarino local basta para uma inglesa abandonar o marido). As exuberâncias nativas, as profusas referências à fauna, à flora, à culinária amazônicas – nada disso disfarça a prosa pedestre do autor, incapaz de expressar qualquer matiz psicológico mais sutil. Em Um Oriental na Vastidão, por exemplo, um misterioso biólogo japonês deixa determinações póstumas para que uma colega brasileira despeje suas cinzas em um rio da Amazônia – e eis a reação banal da personagem ao tomar conhecimento do fato, no que deveria ser o clímax do conto: "Fiquei emocionada" (o leitor não poderá dizer o mesmo).
Apesar de seu estilo, torrencial como a enchente que toma conta do Recife nas páginas finais, Nosso Grão Mais Fino não traz a mesma natureza encantada. Pelo contrário, a paisagem canavieira que serve de fundo para a história de paixão e dissolução familiar criada por Passos é assombrada pela ruína (nesse ponto, há certa afinidade com a decadente fazenda do sertão que dá título a Galileia, lançado por Ronaldo Correia de Brito no ano passado). O romance traz um dos suicídios mais espetaculares da literatura brasileira: a bordo do dirigível Zeppelin, um senhor de terras abre uma porta – e despenca para a morte. No ambiente onírico do romance, a cena aparentemente implausível torna-se impecavelmente verdadeira (por contraste, em um dos contos de Hatoum, uma mulher se joga de uma prosaica varanda em Copacabana – mas o efeito é de um histrionismo pouco convincente). Passos, porém, tem a tendência de se encantar com as próprias imagens, perdendo-se pelo excesso. Há sempre uma palavra sobrando: uma mulher não arranha as costas do amante – ela arranha "a pele que lhe recobre as costas". O leitor será capaz de adivinhar o que é a "cicatriz do canal por onde saciou a primeira fome apegada ao fôlego do simples cordão torcido e vigoroso"? É apenas uma perífrase barroca para dizer "umbigo". Estamos, como se vê, longe da prosa seca e econômica de um Graciliano. Há muitos caminhos para chegar ao sertão – ou a qualquer outra região. [/align]
Fonte:
Revista Veja