Ana Lovejoy
Administrador
Ontem saiu na folha uma matéria comentando sobre o "estranho" fenômeno que ocorre no mercado editorial brasileiro: autores nacionais são sucesso na não-ficção, mas mal aparecem nos mais vendidos de ficção. Link aqui >> http://www1.folha.uol.com.br/ilustr...os-brasileiros-nao-emplacam-boas-vendas.shtml
Dessa matéria, chamou minha atenção os seguintes trechos:
Sobre os quais comentei no twitter e depois mais detalhadamente no meu bró >> http://www.anica.com.br/2013/01/03/ficcao-nacional/
A questão é que hoje de manhã apareceram outros dois textos que parecem mostrar um outro lado da história (ou pelo menos um lado que confirme o que eu achava ser só uma desculpa, não sei). O primeiro é um do Hatoum no estadão (link via Pips):
O segundo foi uma curiosa resposta do José Roberto Torero para uma crítica que recebeu no Rascunho (publicada no próprio Rascunho):
Dei destaque para a conclusão dos dois textos porque nos dois casos a conclusão parece apontar para o mesmo caminho: o da desvalorização da literatura de entretenimento. Considerando o texto (e tantos outros que já apareceram por aí, logo trago aqui uma citação do Jurado C sobre o assunto), gostaria de saber a opinião de vocês sobre o assunto: o pessoal das editoras está certo e escritores só se preocupam em escrever para seus pares (e a crítica), esquecendo do público - e por isso não aparecendo nas listas dos mais vendidos?
Dessa matéria, chamou minha atenção os seguintes trechos:
Sobre os quais comentei no twitter e depois mais detalhadamente no meu bró >> http://www.anica.com.br/2013/01/03/ficcao-nacional/
A questão é que hoje de manhã apareceram outros dois textos que parecem mostrar um outro lado da história (ou pelo menos um lado que confirme o que eu achava ser só uma desculpa, não sei). O primeiro é um do Hatoum no estadão (link via Pips):
Há poucos meses atrás, na Feira do Livro de Guadalajara, vi uma cena que, de algum modo, diz muito sobre a literatura e a solidão, essas irmãs siamesas.
A Feira estava cheia de gente, mas não necessariamente de leitores. Ao visitar o estande de uma editora, vi um escritor de língua espanhola, sentado diante de uma mesinha, à espera de leitores. Ele tinha um ar desolado e conversava com uma mulher. Quando eu passava perto dos dois, ele perguntou à mulher onde estavam os leitores. Ela sorriu e apontou para uma fila de leitores excitados, que queriam comprar a edição espanhola de Cinquenta Tons de Cinza, o best-seller do momento.
É improvável que os leitores dessas historinhas de sexo e violência - ou sexo com violência - leiam romances de Conrad, de Dostoievski ou de Graciliano Ramos. Quantos se aventuram a ler Coração das Trevas, Crime e Castigo ou Infância? Para a maioria dos leitores, um livro de ficção é puro entretenimento, algo que não convida a pensar nas relações humanas, no jogo social e político, na passagem do tempo e nas contradições e misérias do nosso tempo, muito menos na linguagem, na forma que forja a narrativa. Talvez por isso o poeta espanhol Juan Ramón Jiménez tenha afirmado que a poesia é a arte da imensa minoria. Isso serve para a literatura e para todas as artes. Os poucos, mas felizardos espectadores da peça O Idiota, dirigida por Cibele Forjaz, sabem disso.
Flaubert costumava lamentar a época em que viveu: a crença entusiasmada e cega no progresso e na ciência, as batalhas fratricidas na França, a carnificina das guerras imperialistas, e a idiotice e bestialidade humanas, que ele explorou com ironia em sua obra. Em uma carta de sua vasta correspondência, escreveu que o ser humano não podia devorar o universo. Referia-se ao consumismo crescente na segunda metade do século 19.
O que o "Ermitão de Croisset" diria dos dias de hoje, quando a propaganda insidiosa na tevê não poupa nem as crianças e tudo gira em torno da vida de celebridades, de uma fulana famosa que teve um bebê, de sicrano que se separou de beltrana ou traiu uma fulaninha? Qual o interesse em saber que a princesa da Inglaterra está grávida?
Essas baboseiras são ainda mais graves num país como o Brasil, cuja modernidade manca ou incompleta exclui milhões de jovens de uma formação educacional consistente.
No começo da década de 1990, quando eu passava uma temporada em Saint-Nazaire, um jovem operário entrou no meu apartamento para consertar o vazamento de uma tubulação. Quando passou pela sala, viu um romance em cima da mesa e exclamou:
Ah, Stendhal. Li vários livros dele, e o que mais aprecio é esse mesmo: A Cartuxa de Parma.
E onde você os leu? Quando?
Aqui mesmo, ele disse. Na escola secundária.
Era uma das escolas públicas daquela pequena cidade no oeste da França.
Nicolas Sarkozy e outros presidentes conservadores tentaram prejudicar o ensino de literatura e ciências humanas na escola pública francesa, mas nenhum deles teve pleno êxito. Aprender a ler e a pensar criticamente é um dos preceitos de uma sociedade democrática, e esse mandamento republicano ainda vigora na França. O que os prefeitos e secretários de Educação dos quase 5.700 municípios brasileiros dizem a esse respeito?
A precariedade da educação pública é um dos problemas estruturais da América Latina. Até mesmo a Argentina, que já foi uma exceção honrosa, começa a padecer desse mal.
Comecei essa crônica evocando a solidão de um escritor em Guadalajara. Melhor assim: a solidão está na origem do romance moderno, é um de seus pilares constitutivos e faz parte do trabalho da imaginação do escritor e do leitor.
O tempo se encarrega de apagar todos os cinquenta tons de cinza, e ainda arrasta para o esquecimento os crepúsculos, cabanas e toda essa xaropada que finge ser literatura. Enquanto isso, Coração das Trevas, publicada há mais de um século, é uma das novelas mais lidas por leitores de língua inglesa.
O segundo foi uma curiosa resposta do José Roberto Torero para uma crítica que recebeu no Rascunho (publicada no próprio Rascunho):
O Rascunho de outubro [#150] trouxe uma resenha de nosso livro O evangelho de Barrabás. Seu nome era Diversão e nada mais, e seu autor, Rodrigo Casarin.
Como se pode supor pelo título, ela não foi exatamente elogiosa. Mas tinha alguns pontos interessantes, que poderiam render um bom debate. Por conta disso, achamos (José Roberto Torero e Marcus Aurelius Pimenta) que a crítica merecia resposta, ou, antes, que o autor e seus leitores mereciam alguns esclarecimentos.
Comecemos pela estrutura. A resenha afirma que: “a estrutura de O evangelho de Barrabás (…) é bastante simples e linear. Fica claro que o objetivo de Torero e Pimenta era simplesmente contar uma história, somente isso”.
Enxergamos aí dois problemas. Em primeiro lugar, os evangelhos do Novo Testamento têm estrutura linear e, se assim é a matriz, assim deve ser a paródia. Em segundo, não há nenhum problema em ser linear. Este tipo de estrutura não é bom ou mau, profundo ou superficial por natureza. Muitos grandes livros, como A metamorfose, têm uma estrutura linear. Não há que ser um imitador de Faulkner para ser profundo.
Quanto ao humor, o crítico diz que: “Os autores perdem a mão até mesmo nas próprias passagens cômicas, que tão bem constroem em outras ocasiões. Pecam pela graça na hora errada. Nos raros momentos de drama, as piadas tornam-se desnecessárias”.
Na verdade, acreditamos que ocorre o inverso. Uma piada num momento dramático evita o sentimentalismo e, em certo sentido, aumenta o tom trágico. Por exemplo, há um trecho em que Barrabás vê uma fileira de cadáveres pregados em cruzes e, na última, encontra sua mãe. Então vem um cachorro e arranca o dedão do cadáver. Isto não é uma simples piada. É a morte sendo tratada com indiferença pelo cão, é a dor da perda sendo substituída pela fome, é o luto sendo pisado pela urgência da vida, coisas que são ainda mais tristes.
Diversão e um pouco mais
Mas passemos à parte principal da crítica, que pode ser resumida nestas duas frases: “Pequenas marcas em O evangelho de Barrabás poderiam proporcionar grandes interpretações aos mais entusiasmados” e “Todavia, por mais que alguns leitores adorem descobrir mensagens implícitas, não é nenhum tipo de (…) análise da presença divina ao longo dos tempos (…) que o livro de Torero e Pimenta se propõe a fazer”.
Rodrigo vê pistas de grandes interpretações, mas não vai atrás delas. O fato de não tentar se aprofundar nas evidências que ele mesmo notou é estranho. É como ver a ponta de algo e, em vez de cavar, jogar terra por cima.
Um exemplo da descrença do autor: Rodrigo levanta a hipótese de que a primeira frase (“Eram os dias em que Joazar governava o Templo, Herodes governava a Judéia, Otávio Augusto, o mundo, e Deus, tudo”) poderia querer dizer que era o tempo em que Deus estava acima de tudo. E era exatamente esta sua idéia. Mas ele diz que a frase não queria dizer nada, que não se deve ver pêlo em ovo. Ou seja, tropeça no acerto, mas acaba pulando por cima dele.
Nossa preocupação é entender por que isso acontece. Obviamente não é apenas culpa de Rodrigo. Não se trata de um crítico mal intencionado, com rusgas pessoais com os autores, etc… Ele leu o livro deste jeito por algum motivo.
Nosso palpite é que o livro esconde demasiadamente suas referências. Poderíamos tê-lo enchido de pés de página, apontando para cada correlação com os evangelhos. Talvez fosse o mais apropriado para um tempo de leitura rápida, no qual o leitor não procura, ou mesmo não crê em significados profundos. Valeria a pena incluir pedantes explicações aqui e ali apenas para mostrar domínio sobre o assunto? Talvez sim.
De qualquer modo, com um pouco mais de atenção, ou de crença nos autores, Rodrigo poderia ter enxergado “algumas mensagens implícitas”. Por exemplo:
1) Os companheiros de Barrabás na cadeia não são apenas personagens divertidas. São seus mentores. E, se seus mentores são um mágico, um falsário, um ator e um pregador meio maluco, há aí uma tese sobre o que é ser um profeta.
2) Maria Magdalena não é apenas “uma moça que se envolve com diversos homens (…) por sempre acreditar que o atual parceiro é o verdadeiro profeta”. Ela é mais que isso, é o paradigma da mente do fiel, propensa a entregar seu corpo, sua alma e seus bens a vendedores de esperanças.
3) No momento em que os fiéis disputam quem foi o mais abençoado após uma pregação de Barrabás é possível ler a cena ao nível da piada, mas também podemos reconhecer aí uma referência à vaidade que move os crentes a declarar que a graça divina se manifesta em suas vidas.
4) Outros episódios aparentemente escritos para provocar gargalhadas, como a chuva de porcos endemoninhados, a cidade atapetada de peixes, as reclamações de Lázaro quanto à sua ressurreição e a nova versão da parábola do filho pródigo ganham valor quando lidas como complemento ou continuação da narrativa bíblica. Entendemos que nestes capítulos a paródia alcança um de seus efeitos mais desejados, que é o de inverter o sentido de uma situação preservando seus elementos constitutivos.
5) E, com um pouco de fé, o leitor poderia notar um debate sobre a intolerância religiosa (presente na relação dos romanos com os judeus, em que ambos julgam ter as melhores divindades), e uma reflexão a respeito do casamento da religião com a espada, indicado no discurso do sumo sacerdote Anás, que mostra como os deuses foram sendo dizimados um após o outro à medida que um novo poder militar surgia e subjugava o anterior.
E vamos parar por aqui, que ficar desvendando os sentidos do livro é, para os autores, algo como deixar os encanamentos de uma casa à mostra.
Por fim, a conclusão de Rodrigo é que “os autores contam uma história que visa divertir de maneira fácil o leitor, nada mais”.
Não concordamos. Nossa intenção era fazer um livro com dois níveis de leitura. Um realmente mais divertido, e outro mais profundo, falando da fé e dos fiéis. Se um bom leitor, como deve ser Rodrigo, não chega a este segundo nível de leitura, certamente temos alguma culpa. Mas não haverá também um pouco de responsabilidade do leitor que pula sobre as pistas que encontra no caminho? O pior cego não é aquele que não quer ler?
Em verdade, vos dizemos: sempre haverá leitores que apenas se divertirão com um livro, mas, por outro lado, também haverá outros que, com algum cuidado, poderão reconhecer no mesmo livro dimensões mais interessantes. Bem-aventurados sejam. Os últimos, não os primeiros.
Dei destaque para a conclusão dos dois textos porque nos dois casos a conclusão parece apontar para o mesmo caminho: o da desvalorização da literatura de entretenimento. Considerando o texto (e tantos outros que já apareceram por aí, logo trago aqui uma citação do Jurado C sobre o assunto), gostaria de saber a opinião de vocês sobre o assunto: o pessoal das editoras está certo e escritores só se preocupam em escrever para seus pares (e a crítica), esquecendo do público - e por isso não aparecendo nas listas dos mais vendidos?