Nota da Lynn: é incrível. Todas as minhas histórias têm seu clímax no capítulo sete. E não é proposital, nem nunca foi. Mas "Almas Gêmeas" e "Mizérable" também tiveram seu cap mais "marcante" como sendo o sétimo. Como que fas? Rs!
De qualquer forma, aí vai. Espero que gostem!
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VII - O Necromante
Em poucos dias, o Maia prisioneiro passou de servo simples a principal conselheiro do Rei. Todos o olhavam estupefatos, pois nunca antes ninguém subira tão rapidamente no conceito de Ar Pharazôn. De fato, todos sabiam que Sauron não teria porte para ser "apenas um servo". E realmente, ao se vestir com as roupas de conselheiro real, bem como ataviar-se com os paramentos que o rei lhe cedera, aquilo parecia a si muito mais adequado.
O Rei lhe devolvera todas as joias que espoliara na ocasião de sua captura, e ainda lhe dera outras mais. Agora, nas mãos de Sauron brilhavam três anéis: o Um Anel, que aparentava ser o mais simples dos três; o anel de chancela que Morgoth lhe dera ainda na juventude sua e do mundo; e o anel que o Rei de Númenor lhe dera em sinal de aceitação como membro do Conselho Local.
O intendente de Melkor começou a reparar em tudo que ocorria no dia-a-dia do rei, agora muito mais acessível a si que no começo. Com frequência agora Ar Pharazôn o procurava para se aconselhar e não raro guiava seus passos totalmente pelo que Sauron dizia. Mas o que mais lhe interessava eram as histórias antigas, seguidas de perto pela perspectiva de imortalidade que Sauron colocava na volta de Melkor ao mundo.
O Maia começou a reparar que a Rainha de Númenor, conhecida como Ar-Zimraphêl, ou Tar-Míriel em seu nome élfico, quase não passava seus dias com o Rei. Eram marido e mulher e se recolhiam para dormir no mesmo aposento, no entanto, durante o dia, mal se viam. O Rei preferia a companhia de soldados, conselheiros e valetes à de sua própria esposa, como se eles não pudessem entender um ao outro.
E Sauron estranhava aquilo... pois Tar-Míriel, apesar de não ser mais jovem, assim como o rei também não era, ainda era linda e rivalizava em esplendor com quase todas as damas e donzelas locais, mesmo as bem mais jovens, e ele não entendeu o porquê de Ar Pharazôn não se agradar dela.
Um dia, com toda a sutileza que lhe era própria, Sauron resolveu saber a razão daquela indiferença toda da própria boca do rei.
- Meu senhor. Tenho visto sua rainha por estes dias, e ela me parece uma mulher bastante formosa e distinta, no entanto... bastante solitária. O que ela tem?
- Ah! - respondeu o rei, fazendo um gesto de desdém com a mão - Ela é terrível. Nunca gostei dela, nunca mesmo. É minha prima, mas precisei casar com ela para ascender ao trono. Não fosse por isso eu não a aceitaria. Mulherzinha intragável!
- Desculpe a ousadia de comentar assim sobre a sua esposa, ó Rei... mas ela é lindíssima. Creio que não haveria dama que o senhor pudesse ter almejado mais em sua juventude...
- Em beleza o atributo dela é realmente grande, isso não posso negar. E era ainda mais quando me casei com ela. Mas de que me serve isso...?! Se ela tivesse um caráter altivo, orgulhoso, ambicioso como o meu... mas qual! Desde jovem que é isso, só quer ficar rezando o terço! Um ar amedrontado na face...! E ainda por cima - e nessa hora o Rei falou bem baixo, de modo a somente Sauron poder ouvi-lo - ainda se diz fiel ao tal de Eru, o espectro contra o qual me falou! Ela ainda respeita as tradições nesse aspecto!
- Entendo, meu senhor. Mas ela... e o senhor... nunca se deram bem?
- Nunca! Não dá pra ter uma conversa mais longa com a minha esposa. Cansei dela. Pode ser linda, mas no resto é uma infeliz. Teve o trono tomado, a maternidade não lhe aconteceu, seu casamento não foi por amor... talvez eu tenha tirado um grande quinhão dela ao poupar-lhe de encontrar a um parceiro o qual ela pudesse amar, mas enfim, que fazer? Eu precisava ter feito isto para assumir o trono. De mais a mais, não a importuno, e lhe dou jóias, e ainda faço vida com ela e me deito no mesmo leito que ela... mas por pena, não por amor. Porque também seria uma grande humilhação a uma dama do porte dela dormir em quarto separado do seu marido... mas é isso, mesmo tendo piedade dela, não a suporto!
- Pobre mulher... mas, meu rei... quando o senhor Melkor voltar ao mundo e lhe restituir a juventude, o senhor gostaria de se casar novamente...? Com outra dama de sua escolha?
O Rei observou a Sauron com um olhar atento e quase amedrontado. Em seguida, sem muita firmeza na voz, declarou:
- Mas, Mairon... o que eu faria com ela?! É uma mulher com a qual eu não me dou, mas abandoná-la...?
- Ora, meu senhor e rei... veja, quando o senhor Melkor retornar, em sua bondade imerecida, transformará a todos em Númenor em jovens novamente. E isto inclui a Rainha. Ela não ficará abandonada...! Não faltarão pretendentes à sua mão quando ela for moça outra vez!
- Mas Mairon... isso de separação... não é bem visto por aqui! Ninguém se separa de ninguém, muito menos se casa com pessoas separadas! Ela ficará literalmente abandonada, sendo jovem ou não!
- Entendo. Bem, isto concerne ao senhor... foi apenas um conselho.
- Não há de quê. E de qualquer forma, mesmo que eu tivesse a oportunidade de casar de novo, com outra dama... não casaria! Mulheres são muito aborrecidas, não sei lidar com o gênio delas!
- Ah sim, meu senhor... disto eu sei. Pois é por isto que não me casei...!
- E fez muito bem! Só servem pra apoquentar. Eu ainda aturo a pobre Míriel, mas por razões de grande monta. Mas agora... se assim você desejar... eu gostaria de falar de um assunto mais importante a mim. Fale-me mais desse senhor Melkor, desse Vala que era poderosíssimo e o adotou na sua juventude. Tenho muita curiosidade sobre ele!
Sauron sorriu de maneira lisonjeira. Era bom que o rei lhe indagasse essas coisas sem ele mesmo precisar induzi-lo a esses assuntos...
- O que deseja saber sobre ele, meu rei?
- Como ele era no auge de seu poder?
O Maia sorriu novamente. E nesta hora sorriu de satisfação ao lembrar de como eram as coisas naquele tempo.
- Ele se vestia em ouro e prata, e ataviava a seu longo e negro cabelo com jóias brilhantes e variadas; seus olhos fulguravam intensamente, de modo que ninguém podia encará-los diretamente, nem mesmo os Valar! Em sua mão havia força, em sua postura dignidade, em suas palavras o comando do Destino de Arda. Mesmo sendo extraordinariamente poderoso, era um senhor muito bom. Pois dava a seus servos a liberdade de ir e vir, e de fazer o que bem entendessem, e lhes dava poder como deu a mim. E me considerava como a um filho, coisa que o tal Eru nunca, jamais fez com nenhum dos Valar, nem mesmo com Manwë, o qual nunca se cansa de lamber as botas do tal Eru. Apenas punia quando lhe provocavam e desrespeitavam, o que nunca era feito de maneira desarrazoada.
- E como você passou a servi-lo?
- Eu estava profundamente sobrecarregado com as terríveis maneiras de Aulë, o qual nada elogiava e muito criticava. Além disso, não sobrava a nós, Maiar aprendizes dele, nenhum tempo livre. Para nada! E nada em troca, somente mais e mais servidão. Até o dia em que o Senhor Melkor me apareceu, num dos poucos momentos meus de ócio, e me pareceu um senhor de imenso poder e esplendor. O ser mais magnífico de Eä! E então ele me disse: "Você quer reconhecimento? Pois eu lhe darei". No início hesitei, pois ele era malvisto dentre os Valar... mas vi que o poder e o conhecimento, assim como a razoabilidade, estavam com ele; e muito em breve ele me ataviou como a si mesmo, e me deu poder e servos, e uma consideração que eu nunca tivera antes, sendo no início um reles capacho de Aulë...
- Ele deve ser realmente magnânimo, pelo que diz...!
- Oh, sim! Ele se autodenominava como "Aquele que traz presentes", e trazia mesmo. E ele era, sim, mestre da Escuridão. Mas por que, meu rei, a Escuridão deve ser algo ruim...? Ela é onde tudo começa. É o renascer. O útero da mãe é sempre escuro, e sem a Escuridão a Luz jamais existiria.
As palavras de Sauron a Ar Pharazôn pareciam muito justas e sábias, e ele a cada dia se fascinava ainda mais por elas. Logo, quis saber como Sauron pretendia trazer a Melkor de novo para os Círculos do Mundo.
- Não haverá perigo de os Valar o capturarem novamente?
O Maia hesitava quando o rei chegava a perguntar essas coisas tão detalhadamente, pois não queria revelar o sistema dos Anéis que criara para sugar o Fogo Negro dispersado por Morgoth no mundo, justamente para devolvê-lo a ele depois. Mas podia dizer algumas coisas, ou distorcer alguns fatos...
- Não, meu senhor. Não haverá, pois desta vez ele voltará no seu poder do início. Infelizmente, meu senhor e pai gastou muita de sua energia dispersando-a em trabalhos na Terra, e por isso ao final da Primeira Era decaíra muito...
- E como... pretende fazê-lo ficar forte outra vez?
Desta vez, Saurou pediu para ficar a portas fechadas novamente com o rei. E, tomando um ar sério em seu rosto compenetrado, ele enfim declarou:
- Meu rei. Este é um assunto de grande monta, o qual eu evitava abordar com o senhor... mas é necessário ser dito agora.
O rei ficou atônito ante as palavras do Maia, e o instou a continuar. Sauron, então, o fez:
- Senhor Melkor é uma divindade, e para tanto precisa de um templo. Para que lá seja concentrada toda a energia a fim de trazê-lo de volta.
- Entendo! Pois mandamos construir!
- Mas não é só isso, meu senhor!
- Não...?
- Infelizmente, não. Meu pai precisa de um novo corpo... e fazer um novo corpo a um Vala como ele... não é tarefa fácil. Demanda muita, muita energia...
- E de onde a tiraremos...?
- Meu senhor, esta é a parte delicada de todo o processo. Para que a vida seja gerada, precisamos de... vidas.
- Como assim...?
- É isso mesmo. O combustível para que meu senhor Melkor seja trazido ao mundo novamente serão... vidas de seres humanos.
O rei pareceu ficar espantado, mas Sauron logo o tranquilizou.
- Meu rei, quando eu disse ao senhor que Melkor é benevolente e não fere ou julga senão quando necessário, isto é verdade. Portanto, eu jamais o admoestaria a utilizar as vidas dos justos! Longe de mim! Mas aqueles que traem à Vossa Majestade... que ousam se colocar entre o senhor e o seu poder... estes sim, seriam bons exemplos para o povo não mais se rebelar contra o senhor! E ainda por cima... abasteceriam ao que eu chamo de "reservatório de energia" para a vinda do senhor Melkor!
- Bem... falando assim, tem muita gente nesta terra que realmente merece morrer!
Sauron sorriu novamente. Ar Pharazôn estava completamente dominado...
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Obcecado que estava com a imortalidade, o rei mandou construir o templo a Melkor a toque de caixa, em Armenelos. Enquanto o templo era construído, Sauron o manipulava e conquistava ainda mais sua mente com suas palavras enganadoras. O templo foi construído todo como Sauron aconselhou ao rei. Alguns consideraram aquilo um disparate, e lamentaram o dia em que o rei trouxera a Sauron para Númenor. Mas ao ouvir as ameaças de que seriam imolados no templo caso se insurgissem contra o rei ou Sauron, silenciaram.
Vez por outra, o Maia observava a seu anel de chancela e sorria, pensando em como em breve Melkor poderia estar de volta. Mas logo seus olhos se direcionaram a Nimloth, a Árvore Branca, e a odiou. Instou com o rei que ela era maldita e venenosa, colocada pelos asseclas de Eru no mundo e por isso precisava ser o primeiro sacrifício no templo.
Assim foi feito. A Sauron foram dadas belíssimas vestimentas sacerdotais, negras e douradas, como as que ele usava em Angband, e em seguida em Mordor, para seus atos de necromancia e feitiços nefastos. Seus cabelos foram ataviados com azeviche, prata e diamante. Em seus dedos agora brilhavam quatro anéis: o Um, o Anel de chancela de Morgoth, o de Conselheiro de Númenor e o de Supremo Sacerdote de Melkor. Poucas vezes após a queda de seu senhor Sauron se sentira tão satisfeito com a própria habilidade.
Embaixo da enorme cúpula de prata, Sauron e Ar Pharazôn iniciaram os ofícios. E até mesmo o rei, mortal que era, apagava-se diante da figura alta, forte e imponente que era Mairon nas vestes de sacerdote, os olhos cortantes como punhais recém-afiados.
O Rei tomou a palavra. E falou para o povo, que ainda não sabia direito sobre o que aquilo se tratava.
- Povo de Númenor! Devem saber que, anos atrás¹, eu capturei a Mairon, conhecido como Senhor do Escuro, como meu prisioneiro. E ele, ao contrário do que me provavam minhas expectativas, é um senhor magnífico! Foi meu amigo e me instruiu na grande arte de sua sabedoria milenar. E eu percebi que a Arte das Sombras não é má, e que Melkor é Senhor e Deus. Quem não quiser adorar a Melkor, que saia de meu reino, ou será morto!
Muitos desaprovaram aquilo em seus corações, mas nada disseram. Muitos, no entanto, já cedendo à influência de Sauron, saudaram ao rei, ao Maia e gritos de "Salve Melkor!" foram ouvidos, para o deleite do Maia, o qual acariciava, em alegria maligna, seu anel de chancela de Morgoth com pedra vermelha.
- Agora, para início de nossos ofícios, queimaremos a Nimloth, a árvore maldita dos Valar, na fogueira que meu tão estimado sacerdote instituiu sob a Sagrada Cúpula Prateada!
Nesta hora, trouxeram a árvore recém-cortada para as mãos do Rei, o qual a entregou nas mãos de Sauron. O Maia, embriagado pelo poder, tomou a árvore e a levou ao Fogo. Numa voz imperiosa, mandou que o acendessem com mais força.
- Aumentem! Fogo brando não serve a meus propósitos!
Aturdidos com o olhar hostil que viram em Sauron, os homens o acataram. E em seguida, com um prazer mórbido no rosto, o Maia jogou a árvore no fogo. Ela crepitou e soltou uma fumaça negra, a qual subiu e passou pela abóbada de prata, ofuscando a luz do sol, inaugurando o início de uma grande série de sacrifícios em prol da Escuridão.
Mairon abriu os braços para o povo e para o rei, em estado catártico, e bradou em voz alta:
- Salve Melkor, Senhor dos Destinos de Arda!
O Rei bradou logo em seguida, e junto com ele vários dos que assistiam à cerimônia.
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Aquele foi, de fato, o primeiro de muitos outros sacrifícios. Animais e plantas não satisfaziam à ânsia de Sauron: ele queria humanos. E logo alguns dos Fiéis foram colocados para serem queimados vivos sob a abóbada prateada, a qual não tardou em se tornar negra devido à fumaça que subia das ofertas.
Assim que os homens morriam, Sauron aprisionava seus espectros numa sala contígua, a qual fora construída ao lado da fogueira dos sacrifícios. Ali, o Maia instituiu um grande vaso de ouro, o qual conteria as almas. Lá, com algumas palavras de encantamento, ele as prendia à sua vontade e as enviava para sussurrar o mal aos demais homens e, assim, prender mais e mais energia a si no Um Anel. A cada vez que fazia isso, o Um Anel brilhava intensamente - e era por isso que a sala era contígua à dos sacrifícios e lá nem o Rei entrava. Pois Sauron não desejava que ele soubesse do Segredo do Um, justamente o que aparentava ser o mais simples dos anéis que carregava em suas mãos.
Quando ordenava às almas que fossem em busca de mais energia e de mais terror para ele, drenando assim todo o sofrimento delas para o Um, mostrava-se em toda a sua ira. Comandava-as com ódio e desdém, despindo-se assim do disfarce afável que apresentava ao rei.
- Vão, tolos! Vão, pois seu poder me fortificará! Não mais precisaremos de vocês quando o Reino das Sombras se reerguer por completo ao lado do senhor Melkor!
Logo, centenas de almas estavam aprisionadas à vontade suprema de Sauron, e em breve milhares. O Anel reluzia com força em sua mão, e então ele finalmente começou a agir.
Com todo aquele poder acumulado, Sauron passou a conseguir direcionar sua mente para qualquer lugar de Arda sem perigo, usando as energias dos inimigos e, portanto, sem alterar seu próprio "fána".
Por todo o canto seu "fairë" passou, sem ser notado. E ele invadiu Aman, e os Palácios de Mandos, e seu próprio reino obscuro na Terra Média, sem que seu corpo saísse da Sala Sagrada das Almas.
E finalmente, num golpe de audácia, ele ousou chegar perto das Portas da Noite. Nem quando seu Senhor fora aprisionado lá ele chegara perto delas. Era arriscado demais para qualquer ser vivente, até mesmo aos Valar, pois de lá ninguém retornava.
Mas ele precisava ir. E, num dia, após imolar muitas almas, ele se sentiu preparado. Paramentou-se por completo, colocou seus anéis, e pensou enfim:
"Se eu não retornar, que por lá fique! Ao menos terei tentado!"
E direcionou portanto sua mente para as Portas da Noite. Após muito exercitar sua força de vontade, as ultrapassou. E enfim, sua visão foi tomada pela cegueira do Nada. Isso o aterrorizou por um momento, mas a seguir ele o viu.
Jogado a um canto, sem coroa e sem majestade, apenas com um pálido "fairë" a vagar pelo terrível Vazio, mas ainda com as características que lhe eram próprias: cabelos longos e negros, olhos verdes e penetrantes, a marca de faca ainda no pescoço. A faca que ele próprio, Sauron, brandira contra seu senhor.
Era ele enfim. Melkor. E não era uma visão.
Nessa hora, Mairon percebeu como fazia tempo que não o via. Pois encontrá-lo novamente fez com que ele se sentisse velho, terrivelmente velho, e tudo que pertencia à Primeira Era fosse algo que ocorrera com outra pessoa que não consigo. Mas conseguiu falar:
- Meu senhor Melkor...
Por uns instantes, o Vala, o qual não ouvia ninguém chamá-lo por tantos séculos, repentinamente se virou em direção à voz e pensou se não era uma ilusão. Mas não era. Lá estava ele, em seu esplendor de Maia altivo. Era seu filho, Mairon.
- Mairon...? O que...? O que faz aqui...!?
- Meu senhor Melkor...! O senhor consegue me ouvir?
- Sim, eu consigo...! Mas não pode ser você, aqui, no Vazio...!
- É apenas meu "fairë"... meu "fána" se encontra em outro lugar...!
- Mas como...? Como conseguiu driblar a vigilância dos Valar e vir aqui?! E pior: preservando a um "fána" em algum lugar!
- É uma longa história, a qual não posso lhe contar ainda...! Mas para começar... observe isto!
Mairon levantou a mão direita e lhe mostrou... o Um Anel.
- O que... o que é este Anel?!
- Meu senhor...!
A visão de Melkor, após tanto tempo, não lhe deixava falar. De repente, do extremo de sentir-se velho, ele se sentiu estranhamente jovem. Como não se sentia há muito, muito tempo. Pois Melkor ainda era a si como um senhor poderoso e "mais velho", e ele de repente se sentiu de novo como apenas um servidor que admira a seu mestre, e pouco ou nada sabe em face dele... mesmo que àquela ocasião, Melkor estivesse em momento frágil e ele estivesse poderoso.
- Este anel... - Sauron retomou fôlego e continuou - Este anel é o Anel-mestre de uma série de Anéis que criei juntamente com os elfos de Eregion. Eu os ludibriei... e fiz com que me ensinassem a fazer este tipo de artefato.
- E para que eles servem?
- Para dominar as vontades dos povos... e este, o Anel-mestre, serve para guardar a energia de meu "fána" para que eu não precise gastar poder. Ele fica no Anel...
Num estalo, o Vala entendeu todo o plano de Sauron. De uma só vez.
- Mairon...! A Grande Lição que você disse ter aprendido, quando estavamos prestes a ser presos em Angband...
- Essa mesma...! Eu não dispersei meu poder em Arda, como o senhor anteriormente fez. Eu coloquei o reservatório de meu poder... neste Anel.
- Fantástico...! Você é esplêndido, Mairon! Meu filho querido...
E, num ímpeto inesperado para ambos os Senhores do Escuro, Melkor abraçou a Sauron, de forma semelhante à que fizera quando estavam prestes a ser capturados pelos Valar. E nesta hora, ao contrário do que ocorreu no final da Guerra da Ira, Sauron não demonstrou frieza ou racionalidade. Após tanto tempo de dissimulações, de guerras e atritos com os homens e os elfos, de tanto esconder o que seu coração realmente sentia, ele enfim se sentiu como um pouco mais do que uma máquina de raciocinar e ludibriar. Contra suas próprias expectatvas, o Maia abraçou a seu senhor de volta, e enfim chorou.
Era como a um menino que acorda de um longo e tenso pesadelo nos braços do pai. Pois ele, Mairon, se perdera da retidão ao seguir os propósitos de Morgoth. Mas tal perdição ocorrera por causa da dureza de Aulë, a qual deixara a Mairon com o coração frio e indiferente. Vingara-se ao se colocar nas hostes do Senhor do Escuro, recebendo prestígio e boa posição. Mas de maneira paradoxal, o caminho que o levara ao fundo do abismo, ao final de sua própria dignidade, fora o único que lhe demonstrara algum apreço e consideração.
Pois naqueles milênios todos, a única pessoa que ele sentira que o amara de verdade fora Melkor. E ele nunca deixaria que disséssem que dele não podia vir o bem; pois o bem dos Valar ele nunca recebera, nem mesmo na ocasião de seu perdão após o final da Guerra da Ira, pois ali eles agiram mais como arrogantes senhores que dão o perdão como uma humilhação e demonstração de poder para com suas vítimas.
O Vala percebeu as lágrimas de seu anterior servidor, e então proferiu:
- Eu não sabia que você era capaz de chorar de verdade, Mairon... pensei que era apenas capaz de fazê-lo quando queria causar piedade nos outros. Mas de mim você não precisa de piedade agora, uma vez que quem necessita dela, no caso, sou eu...!
Enxugando as lágrimas com as costas da mão, o Maia replicou:
- Eu também não sabia disso, meu senhor. Mas debalde...!
- Não tenha vergonha. Eu também chorei quando fui capturado em Angband, e naquele tempo minha situação era de vergonha e humilhação. Você não; está esplêndido! Reconheço dois anéis em suas mãos; esse Anel-mestre do qual me falou, e o Anel de chancela que lhe dei na juventude sua e do mundo; fico muito feliz por ver que ainda o usa!
- Agora e sempre, meu senhor.
- Mas esses outros dois não reconheço. Quem o paramentou dessa maneira?
- Foi o rei de Númenor. Eu estou lá.
- O que é Númenor...?
- É a ilha dos filhos de Elros, os que têm a Lúthien e Melian como ascendentes. Eru a deu a eles. No entanto, os descendentes de Elros são mortais, pois ele, ao contrário de Elrond, escolheu a Sina dos Edain. Eu fui tomado como prisioneiro e me infiltrei lá, me fingindo de servo do rei. O mesmo agora come na minha mão, e tem medo de morrer. Quer reivindicar a imortalidade dos Eldar para si!
- É...? E o que você está fazendo lá?
- Eu sou o sumo-sacerdote... do templo de meu senhor Melkor.
- O que...? Você conseguiu fazer com que os Fiéis construíssem um templo para mim?!
- Sim...! Prometi imortalidade ao imbecil do rei, e ele acreditou! Sacrifícios humanos lhe são ofertados lá todos os dias, meu senhor, sob meu comando!
E, num ímpeto de antiga porém constante servidão de séculos a Morgoth, Sauron se ajoelhou perante seu senhor e beijou-lhe a mão no dedo onde antigamente repousava um anel de Imperador. E desta fez, ele fazia a mesura com sinceridade, ao contrário do que fazia com Ar Pharazôn.
- Você é fantástico. Eu sabia que não me arrependeria de tê-lo admitido dentre os meus, quando o fiz no início do mundo.
- As almas alimentam a energia do Um Anel. E com ele eu o trarei de volta, meu senhor. Farei um novo "fána" ao senhor, e também um novo Anel para si. Este é para mim, mas o senhor terá o seu. E então seu poder do início do mundo será retomado; não mais precisará utilizar seu "fána" constantemente. O Fogo Negro que o senhor dispersou na Terra durante seu reinado lá lhe será restaurado, pois eu o estou guardando no Um Anel. E então... com seu poder totalmente retomado e com garantias de que não será disperso, sendo ele guardado num Anel como este, nunca mais os Valar poderão lhe fazer frente outra vez!
Ao ouvir os planos de Sauron, Melkor sorriu. E seu sorriso foi algo que, se os Valar ou mesmo os Eldar vissem, diriam que não vinha do Senhor do Escuro, mas apenas de um senhor inofensivo que estava plenamente maravilhado e orgulhoso com os feitos de um filho seu.
- Eu sabia que não me abandonaria.
- Não... eu lhe disse, meu senhor...! Que lhe seria fiel até o fim, mesmo quando não o parecesse ser...!
- Sim...! Você cumpriu a promessa!
- E sempre cumprirei!
Nesta hora, no entanto, uma tontura forte tomou conta do Maia... e ele sentiu que deveria retornar, ou corria o risco de ficar no Vazio sem poder retornar.
- Meu senhor... perdoe-me, mas gastei demasiada energia vindo aqui...! Já não posso mais ficar!
- Então volte! Volte, que do modo que as coisas estão avançadas, em breve eu conseguirei sair daqui, para que instauremos um novo reinado na Terra-média. E desta vez, definitivo e para sempre!
- Sim, meu senhor...! Aguarde apenas mais um pouco, pois logo o trarei de volta para a vida em Arda!
- Está certo! Agora vá!
Mas Sauron não queria ir. Voltar para Númenor era como retornar para aquela vida de fingimento e falcatruas, e ao menos por um pouco mais ele desejava ficar com seu pai, o único a quem podia ser verdadeiro e sincero. Todavia, uma náusea ainda mais poderosa o tomou, e ele quase se sentiu perdendo os sentidos.
- Mairon, vá...! Está na hora - e pela primeira vez, Melkor foi mais racional do que Sauron.
- Ainda não...!
- Nós nos reencontraremos em breve; vá!
Os dedos do Maia crispavam-se em torno dos braços de seu senhor, como que relutando em ir.
- Mairon... vá, ou tudo dará errado!
- Eu não consigo...!
E, no último instante, antes que tudo estivesse perdido, Melkor tomou as mãos de Sauron, retirou-as de si e o empurrou para fora da Porta da Noite. Por um triz, Sauron não ficou lá preso com o Vala, sem que nada os pudesse tirar de lá após isso.
O "fairë" de Sauron retornou para seu "fána" em Númenor, na Sala das Almas. Mesmo assim, a energia gasta com aquela perigosíssima empreitada fora tanta, que o "fairë" do Maia não acordou de pronto. Na verdade, não acordou nas próximas horas, pois foi encontrado desacordado pelos servos do rei, os quais temeram por sua vida, dada a lividez de seu rosto.
To be continued
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¹O Akallabêth, que fala da queda de Númenor, diz que demoraram mais ou menos uns três anos para que Sauron dominasse completamente a cabeça do Rei. E de qualquer forma, deve ter demorado mais um pouquinho para o templo de Melkor ser construído.
De qualquer modo, alguns termos que aprendi recentemente.
"Hröa" = corpo dos naturalmente encarnados, como elfos ou humanos.
"Fëa" = alma dos naturalmente encarnados, como elfos ou humanos.
"Fána" = corpo usado temporariamente pelos não-encarnados, os Ainur (Valar e Maiar).
"Fairë" = alma dos não-encarnados (Valar e Maiar).
Nos primeiros capítulos, fiz uma lambança terrível porque achava que os Ainur TAMBÉM tinham como termos "fëa" e "hröa", mas só fui aprender isso depois. Agradeço ao pessoal do Forum Valinor por ter me ajudado nessa, rs!
No mais, meu, Sauron tem um coração, tá vendo? Rssssss!
O próximo cap vai ser tenso também, com mais loucuras ainda!
Beijos a todos e todas!