O Espelho de Mandos
Capítulo 12: Troll
- Galdweth, puxe a corda até o fim! – fez Imlach, e novamente eu ergui o arco e puxei. O sangue escorria do toco do dedo e manchava a bandagem que envolvia minha mão direita, a dor martelava minha cabeça, que por sua vez ecoava as palavras do rei, “puxe até o fim, até o fim”, e novamente eu não suportei mais e soltei um pouco antes. Minha flecha cravou-se na barriga do boneco de pano, bem abaixo do alvo, que estava à altura do peito. Mais uma vez o meu havia sido o pior tiro.
Imlach andou através dos quinze bonecos de treino e recomeçou a tirar as flechas, uma por uma. Ele considerava-as importantíssimas, e ficava irritado com qualquer uma que fosse perdida em qualquer lugar que não fosse a pele de um orc. Além disso, treinava todos os seus cavaleiros na arte do arco, para que não tivesse problemas na hora de dividir suas tropas entre linha de frente e artilharia aérea. Esse era o treinamento que eu mais detestava, pois eu fazia um esforço tremendo mas não conseguia acertar alvos que eu antes considerava fáceis quando treinava em Dolmed, quanto menos esses novos mais distantes e a serem acertados com arcos maiores e mais pesados, agora mais proporcionais ao meu tamanho.
Uma vez instalado em Mallad, eu voltara a uma rotina de treinamento parecida com a que tivera em Dolmed, mas agora não havia Lanval e eu não tinha mais um mestre só para mim. Eram Imlach ou um de seus generais que comandavam treinos de até trinta aprendizes. Amlach e Galdor treinavam junto de mim, e juntos nós éramos os mais bem-sucedidos de nossa classe, exceto no quesito arco e flecha, competição em que eu era um fracasso desde que perdera o dedo médio três meses antes. Imlach compreendia a minha dificuldade, mas acreditava que se me forçasse a enfrentá-la cada vez mais arduamente, eu conseguiria vencê-la.
A espada e o escudo, ao contrário do que eu pensara antes de voltar a treinar, não foram grandes problemas para mim. A falta de um dedo não me atrapalhava muito em segurar com firmeza, atacar e defender com força e agilidade. Naqueles primeiros meses de academia, eu já havia derrotado todos os meus colegas de classe, embora eu tivesse que enfrentar Galdor três vezes para finalmente conseguir batê-lo. Ele e Amlach foram os únicos a me derrotar em qualquer duelo. “Não é justo, você treinou com um elfo”, dizia Amlach; mesmo em Mallad havia poucos elfos, a maioria de artesãos, comerciantes e cantores, e em todo o exército de Imlach só havia um único guerreiro sindarin.
- Quantos anos você tem, Galdweth? – perguntou-me Imlach, depois daquela sessão mal-sucedida de disparos.
- Quinze – menti.
- E já é tão alto e tão forte quanto a maioria de meus homens. Quem foi seu pai?
- O nome dele era Arameth, e lutou nas fileiras de Maedhros.
- Já ouvi falar. Ele não ganhou alguns torneios em Balan?
- Foi meu irmão, senhor. Ele era bem famoso por lá.
- E o que houve com seu irmão? – caminhávamos ao redor do pátio, recolhendo os itens que haviam sido utilizados durante a sessão de treino. Cada espada, lança e escudo deveriam ser polidos no dia seguinte, para serem usados novamente dali a dois dias.
- Faleceu junto de meu pai, na fronteira norte de Doriath, senhor.
Ele fez uma careta.
- Aquele é um local terrível, Galdweth, terrível. Ninguém devia lutar lá.
Assenti, em silêncio.
- Mas se eles lutaram e morreram lá, com certeza lutaram com coragem e morreram com honra. Um sangue nobre corre em suas veias, Galdweth.
- Obrigado, senhor. Espero honrar o nome deles lutando por vós – de repente senti um gosto meio amargo na garganta.
- Então você terá sua chance agora. Você já viu um orc de verdade, frente a frente?
Olhei para ele, surpreso. Minha primeira expedição?!
- N-não, senhor.
- Não são tão assustadores quanto parecem. Galdweth, a maioria de meus homens está lutando no norte nesse momento. Eu estaria voltando para eles amanhã, mas algumas notícias vindas do sul me fizeram mudar de planos. Eu não tenho nenhum comandante a postos para mandar resolver isso imediatamente, então eu mesmo vou liderar uma pequena tropa que restou aqui, e amanhã partiremos para o sul. Você está convocado, portanto esteja no portão leste de manhã, aqui está meu selo com a ordem.
Incrédulo, peguei o papel de sua mão.
- Meu filho e os gêmeos também foram convocados, portanto você não estará sozinho no meio de meus homens – os gêmeos a quem ele se referia eram Galdor e seu irmão Gildor. – Bom, é sempre bom divertir-me com vocês, jovens, mas agora preciso ir.
Curvei-me para ele, emocionado demais para falar. Imlach não fazia questão de muitas cerimônias e se afastou, irreverente. Então eu ia finalmente fazer aquilo para o que vinha me preparando todos esses anos: matar orcs. Limpar os campos dos homens dessa raça imunda que todos aprendemos a odiar, desde crianças. Olhei ao redor, e vi-me sozinho na academia. Ri alto, tirei a espada que tinha acabado de guardar na haste e golpeei o ar, sentindo-me imponente diante do meu destino. Os orcs haviam conhecido Arameth e Arameth, meu pai e meu irmão, agora iam conhecer Galdweth, e eu ia escrever meu nome na História com seu sangue. A matança iria finalmente começar, e eu me surpreendi com minha felicidade diante dessa tamanha crueldade. Mas e daí? A espada nos dá poder, e é poder e fama o que todo ser humano quer. Pelo menos era o que eu queria.
-
Naquele verão que prometia ser tão ou mais violento quanto fora a primavera, Mallad não poderia ficar totalmente desguarnecida. Durante meses Imlach tentara ajudar os príncipes de Bëor a conter os orcs, e com isso acabou perdendo muitos de seus homens. Os orcs desciam em bandos cada vez maiores em direção ao sul e atacavam os acampamentos dos homens à noite, causando pânico e confusão entre eles. Dezenas de vilarejos que preenchiam o Estolad receberam o mesmo destino de Ugür, mas as notícias que nos chegavam diziam que Bereg e seus primos haviam finalmente chegado num acordo e agora estavam cercando Balan com um grande muro de pedra, aumentando assim ainda mais o problema da imigração. Dizia-se que a cidade estava superpovoada, e que as poucas pessoas que ainda moravam nas pequenas aldeias da região continuavam fugindo para lá. Os orcs chegavam cada vez mais perto da capital, e graças aos seus ataques aos campos, havia boatos de que a comida iria acabar antes do inverno, se Imlach não ajudasse.
Por isso só havia quinze homens no portão leste aquela manhã. Imlach concentrava todos os seus esforços no norte, e por isso era de se esperar que ele rezasse todos os dias para não virem más notícias do sul. No dia anterior elas vieram, e embora ele fosse um homem que procurava nunca transparecer suas preocupações para seus soldados, eu sabia que ele estava extremamente nervoso enquanto nos rodeava, montado em seu cavalo real. Nós estávamos desmontados, e eu segurava Aracar pelo cabresto enquanto ouvia suas palavras:
- Sinto muito, senhores, mas mudei de idéia e achei melhor não acompanhá-los nessa expedição. Passei todas as informações para Amhar, ele irá liderá-los e mesmo que não esteja em excelentes condições, peço para que sigam suas ordens como se fossem minhas.
Amhar assentiu e nós olhamos para ele. Tinha fama de bom soldado, mas até aquele dia não tinha nenhuma patente. Só então vimos sobre sua blusa um fino bracelete de capitão, que ele provavelmente acabara de ganhar. Mas talvez a inexperiência como líder não fosse nada comparada ao braço quebrado, enrolado numa faixa e seguro por uma tipóia amarrada no pescoço. Olhei ao redor. À exceção de Aracar e Leogund, o cavalo preto de de Amlach, as demais montarias eram magras e velhas, e graças a isso calculávamos gastar pelo menos o dobro do tempo que gastaríamos a galope em pêlo bom para chegarmos ao nosso destino, a cidadela de Walach, que tinha o mesmo nome do falecido irmão de Amlach. Aquela não era a mais bela comitiva que se podia esperar, quatro homens talvez jovens demais, um capitão ainda não totalmente recuperado de sua última batalha, e montarias inadequadas para uma luta montada. Mas eu ainda estava empolgadíssimo com a missão, e Amlach também. Os gêmeos tinham expressões mais sérias que as nossas, como de costume, por serem naturalmente mais sérios e por uma viagem dessas não ser tão novidade assim para eles.
- Sinceramente, se me permite, acho que seu pai te colocou numa fria – falei, cavalgando ao lado de Amlach já a caminho de Walach, na retaguarda da comitiva.
- Acho que ele quer me testar, e pra isso nada melhor que me colocar numa comitiva onde eu possa me destacar – ele deu uma risada, e eu não soube se era pelo que tinha acabado de dizer ou se pelo fato de o senhor Hazan novamente ter acordado assustado, quase caindo da sela. Hazan era um sujeito magro, tinha a barba branca e tanto menos cabelo na cabeça quantos mais anos de idade. – Além disso, ele não tem com o que se preocupar, não sou filho único e minha mãe já está grávida de novo.
A excitação que eu sentira há até poucas horas antes dera lugar totalmente à melancolia. Não havia qualquer esperança para nós se cruzássemos com qualquer grupo de orcs. Eu faria o meu melhor, claro, e ainda que eu matasse uns dois, Amlach mais dois, Galdor e Gildor uns quatro, o restante da comitiva seria trucidado, e nós seríamos encurralados como peixes nas redes do Celon.
- Meu pai disse que os elfos finalmente responderam os pedidos de socorro dos príncipes do Estolad. Parece que em breve nossos soldados que estão no norte voltarão – disse ele, assim como eu ao mesmo tempo melancólico e com vontade de conversar.
- Isso significa que não devemos nos preocupar, pois independente do que aconteça em Walach, os reforços uma hora vão chegar?
- Eu duvido que qualquer elfo venha em nosso socorro. Eles nos consideram intrusos em suas terras, e de fato nós somos.
- Alguns elfos são bons – falei, não muito certo disso.
- Os bons estão muito longe daqui, numa terra que eles chamam Valimar.
Lembrei-me das histórias que Lanval contava sobre Himring, e perguntei-me por que ele não falava muito sobre o outro lado do mar.
- O meu sonho, Galdweth, é livrar os homens desse tormento chamado orc – disse ele, enquanto eu divagava.
- Todos sonhamos isso.
- Mas sonham de forma errada. Querem derrotar o próprio Inimigo, enquanto os eldar já estão nisso há séculos. O que os orcs querem é esta terra. Os elfos também querem-na, e nós também.
- E qual a solução para isso, então?
- Voltar para a terra de nossos avós. O leste é o lugar onde nascemos, é o lugar de onde jamais devíamos ter saído. Lá não existem elfos ou orcs, aqui eles estão em todo lugar, lutando entre si numa guerra sem fim. Devemos deixar esta terra antes que estejamos para sempre presos a ela. Mortos.
- Nossos antepassados não fugiram do leste por nada.
- E você sabe o que tanto os assombrou naquele tempo? Eu não sei, ninguém sabe! Foi há tanto tempo, e todas as histórias que conhecemos chegam-nos tão obscuras e sem sentido... você não deseja voltar e redescobrir o passado? Não pode ser pior que o presente, isso eu pagaria pra ver!
- Eu não sei, talvez fugir não seja a melhor opção. Talvez isso signifique apressar o fim dessa guerra sem fim, de uma forma infeliz.
- Que papel você acha que fazemos nessa guerra? Nós somos insignificantes na luta contra Angband, para a sua informação. São pouquíssimos de nós que fazem parte diretamente do Cerco, todos os que sobram só combatemos as sobras de orcs que escapam pelas cavernas abaixo dos olhos dos noldor. E ainda estamos perdendo.
Pensei nisso durante a tarde, e embora eu tenha lembrado com tristeza das pessoas que eu encontrara na estrada aquele ano, levando seus pertences à procura de um novo lar, pois haviam perdido suas casas e parentes para o fogo dos orcs, meu orgulho ainda não concordava totalmente com o pensamento de Amlach. Não que eu tivesse argumentos contra, eu apenas acreditava que não era certo abandonar os elfos à sua própria sorte, e acreditava que os próprios eldar também não nos abandonariam naquele momento de necessidade em que os netos de Bëor pediam sua ajuda.
-
A noite veio quente e com ela nós finalmente paramos. A égua que carregava nossos mantimentos estava bastante ferida, e Amhar concordou conosco quando dissemos que ela devia ser solta, pois se continuasse conosco provavelmente morreria. Apesar de tudo, a cavalgada fora proveitosa, e até então havíamos nos deslocado mais do que imagináramos ser capazes, e agora calculávamos chegar em Walach no dia seguinte, o mais tardar no pôr-do-sol.
A ansiedade voltou e não me deixou dormir até o meu turno, que seria o terceiro e último da noite. Quando Galdor veio me chamar, já bastante sonolento, botei-me de pé e aproximei-me rapidamente da fogueira, ao lado da qual havia um tronco deitado sobre o qual sentei, bocejando um pouco. Minutos depois Nobold, um sujeito que fedia bastante e que bebera durante toda a viagem, se aproximou de mim cambaleando e desabou na relva, adormecendo. Era para ele ser minha dupla de vigília, mas achei melhor deixá-lo ali.
Aos poucos o sono foi chegando, e o frio também. Aproximei-me um pouco mais da fogueira, e sua luz junto do crepitar monótono das chamas fez minhas pálpebras pesarem mais, e quando dei-me conta o céu já estava um pouco mais claro que a escuridão da noite. Perguntei-me se eu havia cochilado sentado, e não soube responder até que olhei para o lado e vi que Nobold não estava mais deitado ali. Ele havia se levantado e se afastado e eu não percebera, assim como não notara a luz se aproximando. Xinguei-me pelo meu primeiro erro numa missão, e prometi a mim mesmo arrumar um jeito de ganhar uma surra do general Ponce quando eu voltasse, caso viesse a distrair-me daquele jeito outra vez.
Olhei ao redor, procurando Nobold e os outros, e à exceção do bêbado parecia estar tudo como estivera antes de eu cochilar. Levantei-me, a fim de desgrudar os olhos e encontrá-lo, e talvez arrumar alguns galhos para a fogueira, que estava se apagando, mas que apesar da luz do dia chegando eu queria muito acesa para me esquentar do frio das primeiras horas do manhã.
Percorri toda a clareira olhando os rostos daqueles que dormiam, olhando através das árvores e dos arbustos, e nenhum sinal de Nobold. Recontei os integrantes do grupo que eu conseguia ver, treze, realmente só faltava ele. Sentei-me novamente próximo à fogueira e alimentei-a, esperando que o homem só tivesse se afastado para mijar ou outra coisa, e que em breve voltasse. Mas os minutos passavam e ele não voltava, e eu olhava para suas coisas no chão, perto da árvore sob a qual ele dormira antes de ser acordado por Hamzi, e minha preocupação aumentava a cada instante. Até que decidi procurá-lo além das árvores ao redor da clareira, provavelmente ele só havia se afastado mesmo para fazer suas necessidades e acabara caindo de sono no mesmo lugar. Não havia necessidade de acordar os outros.
- Nobold? Nobold? – chamei, enquanto rodeava as árvores, gritando mais alto à medida que me afastava do acampamento. Eu não sabia em que direção ele podia estar, mas imaginando ouvir um conveniente barulho de água vindo da parte em que o terreno se inclinava, desci para lá.
De fato, havia um pequeno riacho ali, e eu o segui pela margem imaginando que Nobold tivesse feito o mesmo, procurando algum lugar apropriado onde pudesse se apoiar para se agachar e devolver à natureza aquilo que dela viera.
- No... bold? – chamei pela última vez, e finalmente reparei que a apenas alguns metros de mim, do outro lado do córrego, uma imensa cabeça se virou, e um par de olhos me encarou. Era a criatura mais bizarra que eu já vira, que eu não notara há até alguns segundos graças à sua cor que se camuflava com as árvores ao redor. Na mão do bicho havia um grande osso com pedaços de carne que eu logo pude perceber do que era: a égua que soltáramos à noite, ou algo que sobrara dela, estava jogada disforme aos pés do grandioso troll. Ele me encarou mais alguns segundos, mastigando, quando ambos ouvimos um assobio vindo do outro lado da floresta, para além dele, e quando ele virou a cabeça para olhar, eu aproveitei e corri riacho acima, em direção ao acampamento. Meu coração estava disparado, e ver-me pela primeira vez diante de um monstro desse foi a mesma sensação que tive ao enfrentar cara a cara o cachorro Stripa, seis verões antes.
Antes mesmo de chegar ao acampamento eu já gritava, tirando os demais soldados do sono:
- Troll! Troll!
Amhar acordou num pulo, e correu até sua espada, sacando-a com a mão esquerda, que não era a habitual. Galdor e Gildor ainda estavam sonolentos enquanto vestiam suas armaduras e armavam as tiras do escuro. Amlach já estava acordado antes mesmo de eu chegar, e estivera sentado próximo à fogueira, de espada na mão.
- Onde está Nobold? – perguntou ele.
- Eu não sei, eu... – lembrei-me do assobio que chamara a atenção do monstro, e só então eu pensei que podia ser o bêbado. – Mas que burro eu sou! Ele está lá embaixo, e corre perigo!
- Vamos descer imediatamente então! – tornou Amlach, erguendo-se do tronco.
Eu e Amlach corremos na frente, e agora eu já estava equipado com armadura e escudo, além da minha pequena espada, que eu ganhara de Haldad e apelidara de Kalmagol, Lâmina Brilhante no idioma sindarin.
O troll não estava mais no local onde eu o vira, mas deixara lá o que restara de seu desjejum. Chamamos por Nobold, e ouvimos outro assobio, semelhante ao primeiro, vindo do outro lado do riacho, mas mais além. Atravessamos sem grandes problemas, pois a água mal chegava ao joelho, e seguimos. Continuamos chamando seu nome, mas os assobios cessaram, o que nos sugeriu parar de gritar também. Procuramos alguma trilha no capim que pudesse indicar a passagem do troll, mas não encontramos nada. Até que novamente ouvimos o assobio distante, desta vez à nossa direita, e Amlach liderou a marcha àquela direção, dificultada pelo ambiente cerrado da floresta, e acompanhada pelo piar insistente dos pássaros que acabavam de acordar. Pensei ter ouvido novamente o assobio vindo atrás de nós, e o velho Hazan teve certeza que o ouviu novamente à direita, mas agora estava tudo muito confuso com o som dos pássaros atrapalhando. Amlach gritou várias vezes para que Nobold mudasse o som, mas nós não podíamos ouvir qualquer resposta, ou se podíamos, não conseguíamos compreender. E a maldita trilha no capim não aparecia.
O que apareceu foi uma grande árvore caída no chão, e Hamzi se aproximou dela para verificar alguma pista de orc. De fato, havia uma grande pegada na areia, e a partir daí ficou fácil descobrir o caminho, pois havia ossos de cavalo e de cordeiro em tudo quanto é lugar, e à medida que nos afastávamos do cerrado, o mal cheiro de carniça e de fezes aumentava, junto com o número de carniça e fezes espalhadas pelo chão. Até que vimos a entrada de uma caverna, uma pequena gruta num morro elevado, com algumas estacas no chão e algumas vigas no teto, sustentando a terra.
- Ei! – ouvimos a voz de Nobold, que logo apareceu, saltando de cima do morro acima da caverna, postando-se junto à entrada da mesma e acenando para nós. – Venham aqui!
- O troll não está aí dentro? – perguntei, enquanto aproximávamos-nos, hesitantes.
- Está aqui sim, mas não há risco. Ele não pode sair – ele apontou o céu, que estava claro e dava ao mundo seus primeiros raios de sol.
- Trolls odeiam luz do sol – disse Gildor, como se ninguém soubesse disso.
- E o que você está fazendo aqui? – perguntou Amlach, um pouco irritado, talvez por ter se lembrado assim como eu de que ninguém ficara para vigiar o acampamento.
- Bom, é uma longa história, mas posso contar. Você tem álcool aí?
- Era para você estar olhando o acampamento, não criando problemas! – fez Amhar, furioso demais para se conter.
- Ei, calma aí, chefe, eu fiz o meu turno, o rapazinho aí sabe disso – ele apontou para mim, e eu achei melhor não dizer nada enquanto ele continuava. – Mas eu precisava ir ao banheiro, e de repente havia o ursinho e tal. Mas isso é passado não vamos nos preocupar mais com isso.
- Sim, vamos nos preocupar com nossas coisas que ficaram para trás – disser Amlach. – Precisamos voltar já!
- Você irá correndo na frente, Nobold, e torça para que esteja tudo em ordem quando chegar, caso contrário você nos pagará tudo que perdermos aqui, nem que tenha que vender sua barba para isso!
- Nossa comida é mais importante que a segurança da bela dama e das demais pessoas que estão dentro desta caverna, então? – fez Nobold, a voz embargada e as pernas dançando para manter-se de pé.
- O que você está dizendo?
- Há uma jaula aí dentro, com seis ou sete pessoas, talvez eu não tenha contado direito. Mas tinha uma mulher muito linda, e ela gostou de mim – ele mostrou sua falta de dentes num sorriso desagradável.
- Se for verdade, provavelmente estão sendo guardados para engorda, trolls gostam de engordar suas vítimas antes de comê-las – observou Gildor.
- Bom, ele trouxe um grande pernil de égua, acho que daria para alimentar até sete pessoas, se fosse bem preparado, e se fosse acompanhado de uma caninha...
- Quer dizer que o senhor entrou dentro da caverna do troll? – perguntou Amhar, já menos furioso com a atitude de seu subordinado. – Pelo menos o senhor é corajoso, senhor Nobold, se é que eu não posso dizer louco.
- O que faremos então? – perguntei.
- Tiraremos o troll daí, é claro – respondeu Amhar, a espada embainhada na cintura e a mão esquerda coçando a barba.
- Seria bom se não o deixássemos muito nervoso, ou a vida dos que estão lá dentro correm perigo – interviu mais uma vez Gildor.
- Claro, vamos pedir gentilmente ao troll que se renda e devolva sua refeição. Caso ele não concorde, nós vamos embora silenciosamente, para não deixá-lo nervoso – fez novamente Amhar, impaciente com a situação. – Nós devíamos estar a caminho de Walach, não salvando civis! Hazan, volte ao acampamento com Nobold, e se ele der um passo para fora daquela clareira, mate-o sem hesitar.
Todos fizemos caretas com o humor de Amhar. Ele já estava pegando o jeito de ser chefe.
- Agora vamos pensar numa maneira de entrar – continuou ele. – Alguém tem uma idéia?