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Os Roteiristas


Do outro lado da rua do Café Infinito encontramos um velho edifício de tijolos vermelhos, de três ou quatro andares, com janelas gradeadas e vasinhos de cactos nas varandas. Atravessando a rua - e deve-se ter cuidado na travessia desta rua, uma vez que seus limites, correndo paralelos, coalescem pouco adiante, o que é desorientador e induz facilmente o transeunte ao tropeço - nos deparamos com a porta, marrom e de incêndio, e, no mal-iluminado interior do edifício, com uma escada metálica em caracol que nos leva a um corredor estreito, no final do qual, virando à esquerda, a porta da sala 156.

Abrindo esta porta, nos encontramos em um quarto apertado, com fumaça de cigarro e um ar tenso, elétrico, apinhado de pilhas e calhamaços de papel e dentro do qual cinco homens, sentados ao redor de uma mesa, discutem e escrevem com máquinas de escrever. Eles me reconhecem ao entrar, sorriem e acenam discretamente com a cabeça. Três deles usam bonés, um é careca, dois são morbidamente gordos. Sento silenciosamente numa cadeira no canto, dando a entender que não tenho muito com que importuná-los, e observo eles trabalharem.

Estes cincos homens são chamados de Os Roteiristas. No Grande Esquema Geral das Coisas, cabe a eles escrever os diálogos, decidir os detalhes das cenas, preencher as lacunas dos esboços dos manda-chuvas lá de cima. Tudo que acontece foi escrito por eles, tanto neste mundo como nos outros; mesmo a atividade do outro lado da rua passa por suas deliberações, e a atividade dentro desta mesma sala; e eles não só escrevem o que se passa aqui dentro, mas escrevem eles escrevendo o que se passa aqui dentro, e escrevem eles escrevendo isso, e assim por diante, até o Infinito. É por isso, especula-se, que eles têm sempre um olhar vidrado por trás das lentes engorduradas dos óculos, como um matemático contemplando abstrações elevadas de Análise Real. É por isso, também, que estão sempre tão irritadiços e fatigados.

Considero que seria educado puxar um pouco de conversa.

“Muito trabalho, hein? Como estão as encomendas deste mês, muitas comédias?”
“Mais que o normal, sim.”, sem desviar os olhos do texto.
“Hm. Melhor que a onda de dramas e tragédias de uns meses atrás, suponho?”
Ele dá de ombros. “Depois de um tempo, fica tudo a mesma coisa.” Faz uma pausa, e vendo que não vou ascrescentar mais nada, confidencia: “Além disso, Os Hômi lá em cima tem uma quedinha por humor negro.”

Fui já bastante simpático, avalio, reclino-me de novo na cadeira e deixo eles voltarem ao trabalho. A história que escrevem agora se passa no país que na Terra chamam de Turquia, e é, pelo que entendo, uma história de amor entre dois jovens. O menino se chama Murat e a menina Arzu, nomes turcos que significam, um deles me confidencia com uma piscadela cheia de auto-satisfação, "Vontade" e "Desejo", respectivamente. Pego e começo a ler uma das folhas soltas, com as instruções gerais de roteiro, tentando me situar. Murat, a descrição começa, é "imaturo e egocêntrico, e se acredita abençoado por uma sensibilidade especial e um entendimento mais aguçado das coisas, mas", a nota acrescenta não sem um pouquinho de maldade, "sem nenhum motivo para acreditar nisso fora a sensação morninha que acreditar nisso lhe dá. Gasta muito tempo na contemplação do próprio umbigo, mas é vazio, egoísta e superficial. Como é comum com pessoas de seu caráter, Murat pretende seguir carreira artística, mas desiste depois de dois ou três tapões cósmicos na orelha. Arzu é tímida e meiga", na superfície, diz uma anotação a lápis, "mas manipulativa e ambiciosa, com oscilações de humor e problemas graves de auto-afirmação. Os dois se traem e mentem um para o outro constantemente. No final da história, Arzu se suicida. Murat fica triste com a notícia, mas racionaliza o que aconteceu em uns quinze minutos, conclui que na verdade é a grande vítima da história, e continua com sua vida normalmente." Reparo que a indicação no topo é que esta história deve ser uma "Comédia".

Levanto a cabeça e escuto o que discutem. Aparentemente, fazem uma cena em que Murat conversa com dois amigos.

"Daí agora assim: 'Vocês não entendem o que estou sentindo, porque que estou fazendo isso'."
"Não, não. Bote de um jeito bem enfático e cheio de palavrório, para ficar bem óbvio pra todo mundo que é tudo fantasia louca da cabeça dele. Tipo 'Vocês não são capazes de começar a entender, e sei que no fundo adorariam, mas não conseguem, o que eu estou sentindo, porque estou fazendo o que estou fazendo.' Algo assim."


Faço uma discreta careta ao ouvir isso, que não passa de todo despercebida. É tudo tão grosseiro, sem nenhuma sutileza, conduzido de um jeito tão enfadonho, é tão óbvio que eles não estão sequer tentando. Escreveram histórias como esta milhões e milhões de vezes; qualquer frisson que possa ter tido no começo, quando o primeiro protozoário borderline e antisocial se apaixonou pela primeira protozoária codependente e bipolar (resultando num final trágico, em que a protozoária se suicida à maneira dos protozoários, i.e., escorrendo até um precipício) esvaiu-se com a repetição incessante, e agora eles escrevem mecanicamente, querendo se livrar logo e passar para a história seguinte - que será, eles sabem, tão familiar e batida quanto a presente. Mas não me entendam mal, não é que eles não sejam capazes de cenas melhores, ou estejam sempre assim tão desmotivados. Há momentos em que entram em sintonia perfeita, animados e cheios de boas idéias, e então vê-los em ação é lindo, simplesmente lindo. Semana passada chegou a nova máquina de café, e eles escreveram cenas de amor e reconciliações a manhã inteira, cheias de lirismo e delicadeza, tão felizes que ficaram. ("Ela faz cappuccino!", um deles me contou com um sorriso largo.) A maior parte do tempo estes rapazes, coitados, estão apenas lidando com a estafa e a repetição do melhor jeito que podem.

Volto a escutar. Agora preparam um diálogo entre Murat e Arzu, em uma lanchonete em Ankara, em que tomam um recorrente e muito simbólico milk-shake. Murat faz as caras mais sensíveis e inocentes que consegue, toca na mão de Arzu com muita calculada hesitação; Arzu olha para os olhos dele, que olha para baixo, imóvel, segurando a respiração, ela se segurando para não chorar. Murat deixa escapar num suspiro e revirar de olhos um pouco de sua impaciência. Segue-se então mais diálogo previsível e açucarado. Não aguento mais ouvir, resolvo sair e ir ao outro lado da rua beber. Vê-los trabalhar costuma me dar muita vontade de beber.

Me despedindo e seguindo meu caminho de volta, não consigo deixar de imaginar quem, afinal, está encomendando essas histórias todas, para que público, com que desígnios. Quando pergunto, eles não sabem responder; dizem-me apenas que as encomendas chegam periodicamente na caixa de correspondência, as sinopses e instruções xerocadas e datilografadas dentro de envelopes marrons, sem endereço de remetente, e eles nunca têm tempo de consultar O Carteiro por alguma pista. Não se lembram, também, de como era no começo; dizem apenas que as cenas do dia em que começaram a escrever devem estar guardadas em algum lugar no arquivo - apontam para o amarrotado armário de metal no canto da salinha - e que eu posso ir lá e procurar, se prometer deixar tudo no lugar e quero tanto saber. Sempre penso em ir lá olhar, mas vasculhar toda a detalhada história do Universo em busca de uma página sempre me dá, por assim dizer, preguiça. Tenho apenas fé que Deus, ou o comitê responsável, tenha bons objetivos que escapam à finitude da nossa compreensão; mas me incomoda no fundo de minha consciência, sempre, a possibilidade de que Deus seja mesmo apenas um cara muito frustrado.
 
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