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[L][Parisio][Pães Encharcados]

Parisio

Usuário
Parisio, prosa em ficção (conto)

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Pães Encharcados


Depois que os vidros do chevette, pelos quais agora desciam filetes caudalosos, tinham sido fechados, o cheiro característico e bom do estofado se acentuara. A chuva tamborilava na lataria, o que tornava o abrigo do carro ainda mais acolhedor para o menino com farda da escola. Sentia-se vagamente sujo e esfaimado, mas a serena convicção de estar na iminência de aplacar a fome tornava a espera tolerável apesar da obscura perspectiva de tomar banho gelado quando chegasse em casa. Antecipou o cheiro e a visão dos pães franceses fumegantes, o gosto, a textura, o calor. Vigiava ansiosamente a entrada da padaria espremida entre sobrados decrépitos, por onde seu pai sumira, e por onde tornaria a aparecer. Compunha na mente a sua volta: atiraria-se da padaria para a rua e a atravessaria a passadas largas, cruzaria a pracinha redonda, vazia entre os bancos, e enfim mais esta rua, chegando ao carro do lado de cá. Aí abriria a porta, num só movimento atiraria delicadamente o saco de papel no seu colo, tomaria lugar ao volante e bateria a porta, aí acionaria a ignição, e, já com o carro ligado, trepidando parado, estenderia a mão até o saco, retiraria dele um pão dourado e crocante, repartindo-o e entregando-lhe uma metade. Relancearia-o com carinho ou simpatia nesse momento. A própria metade ele trincaria com os dentes, seria muito provável que alisasse o cabelo com as duas mãos, puxaria o pão e passaria a mastigar o naco que ficasse na boca enquanto o chevette começava a mover-se ao comando de seus pés e mãos.

De repente o menino se preocupou com a possibilidade de que os pães se molhassem, mas descartou-a logo. O pai não o permitiria, naturalmente. Retomou a espera, a doce tocaia. O tempo chegava a distender-se um pouco. Enfim, a recompensa de testemunhar o exato instante em que o pai surgiu, o saco de papel na mão. Analisou brevemente a situação, e, verificando que a chuva não amainara, atirou-se em seu interior, curvando-se para oferecer-lhe apenas as costas, a nuca e o cocuruto, protegendo os pães junto à barriga. Da beira da calçada, o que o menino omitira em sua pré-constituição, olhara para os dois lados antes de atravessar. Atingida a pracinha, o que o menino não previra, suas passadas se encurtaram, cautelosas, certamente porque o piso estava escorregadio. À margem da segunda rua, olhou novamente para os dois lados, mas no meio da travessia um estampido abafado e agudo fez um furo redondo na cortina de rumor da chuva, e outro. O menino, acostumado a de casa ouvir atentamente os tiros das caçadas do pai com seus parentes e empregados, bem como a soltar fogos no São João, não teve dúvida: era arma de fogo.

Seu pai cambaleou, arqueou-se de modo estranho e veio ao chão. Assim que venceu a paralisia de que se viu tomado, o menino saltou da morna cápsula de metal e vidro para a rua fustigada de chuva e vento, e acudiu na direção do pai, mas homens que tinham aparecido de todos os lados o detiveram e o afastaram dali. Não a tempo de impedi-lo de ver o pai caído de borco no asfalto e alguns pães, que tinham rolado para fora do saco, encharcados de sangue.
 
:clap:

Muito bom... Tá demais o texto... Prende o leitor de maneira muito interessante...

Teve uma passagem no primeiro parágrafo qem que vc diz "fardas da escola", não sei se foi de propósito mas adorei essa passagem que eu interpretei como se a escola fosse um perfeito regime militar, como de fato é... GOstei pakas...
 

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