Melkor- o inimigo da luz
Senhor de todas as coisas
Pablo balançava, sozinho. O sol do fim de tarde queimava frio, alongando as sombras das coisas, no parquinho. Espreguiçou-se e pulou, caindo de pé no barro que se formara à noite, durante o temporal. Bocejou, grandioso como só a criança é, e olhou as coisas em volta, curioso.
E pensou, tranqüilo, em todo o tempo do mundo - que parecia caber inteiro naquelas horas de luz que restavam - e em tudo que se podia fazer, ali. Observou os brinquedos, um a um, e não conteve um sorriso comprido e delicioso. Coçou atrás da cabeça com uma mão enquanto apoiava a outra na cintura, pensativo.
Foi então que percebeu uma luz que cintilava, embaixo da gangorra. Correu até lá, todo estabanado, e tirou de debaixo de um amontoado de poeira um pião de vidro. Ficou maravilhado e o colocou na palma da sua mão, sentindo-o gelado e fúnebre. Olhou para ele durante um tempo, compenetrado na pequenez do objeto e em como ele era diferente da palma da sua mão, que era branca e opaca. Deu de ombros.
Mirou num pedaço de terra que era plano, cerrou os olhos e o atirou com delicadeza, girando. E ele girou, girou e girou muitas vezes, cada vez mais rápido. A luz foi entrando, passando pelo vidro e se refletindo para todos os lados, alucinada, branca, magnífica. Quebrou-se, a luz, e se tornou o arco-íris, que foi projetado nas coisas ao seu redor, inclusive em Pablo.
Mas, num só instante, o pião brilhou num fulgor instantâneo e se estilhaçou todo, espalhando o seu vidro transparente e pontiagudo – cruel – pelo parquinho. O menino, a criança, olhou para tudo aquilo, assustado, e afastou-se. Seu corpo, pequeno invólucro da sua alma tão grande, tremelicava. E foi só quando passou o susto que ele conseguiu chorar, triste por ter quebrado o pião de vidro que achara, o seu mais novo brinquedo.
Voltou para o balanço, cabisbaixo, os olhos turvos das lágrimas. Enxugou-os na roupa amarrotada e suja, e, quando olhou de novo para o mundo, ele o viu todo diferente. As coisas – e não só os estilhaços do pião, os pequenos pedaços de crime – haviam se transformado, todas elas. Arregalou os olhos, assustado.
O chão de terra e grama, a gangorra, o gira-gira, a corda bamba, os pneus de pular, o próprio balanço... tudo, que antes era feito de barro, verde, madeira, ferro, pano, corda, borracha, alma, essência, novidade, surpresa, felicidade, infância... tudo se transformou no mais translúcido e ridículo vidro. O mundo inteiro quebradiço e fugidio, agora.
Ele, sentado no balanço, franziu o seu cenho e fundiu as suas sobrancelhas, preocupado. Respirava aos poucos, ainda se adaptando à mudança repentina. Soltou um gemido mudo. As suas mãos se esfriavam, no contato com as correntes geladas de vidro, quase de gelo.
Quando viu que o mundo estava diferente, Pablo já não queria mais brincar. Não queria pular, rolar, gritar e se atirar, porque tinha medo de quebrar as coisas, como já quebrara o pião. Temia cortar-se com os estilhaços afiados do que se quebrou, e temia ele próprio se quebrar.
E a sua vida não foi mais que o fraco e indolente vai-e-vem do balanço, seus movimentos à deriva do vento. Ficou olhando as coisas passando, no mundo, com olhos apressados e sorrateiros, temendo ver repetir-se o que fez com o vidro, e não viveu.
DIOGO BERCITO
E pensou, tranqüilo, em todo o tempo do mundo - que parecia caber inteiro naquelas horas de luz que restavam - e em tudo que se podia fazer, ali. Observou os brinquedos, um a um, e não conteve um sorriso comprido e delicioso. Coçou atrás da cabeça com uma mão enquanto apoiava a outra na cintura, pensativo.
Foi então que percebeu uma luz que cintilava, embaixo da gangorra. Correu até lá, todo estabanado, e tirou de debaixo de um amontoado de poeira um pião de vidro. Ficou maravilhado e o colocou na palma da sua mão, sentindo-o gelado e fúnebre. Olhou para ele durante um tempo, compenetrado na pequenez do objeto e em como ele era diferente da palma da sua mão, que era branca e opaca. Deu de ombros.
Mirou num pedaço de terra que era plano, cerrou os olhos e o atirou com delicadeza, girando. E ele girou, girou e girou muitas vezes, cada vez mais rápido. A luz foi entrando, passando pelo vidro e se refletindo para todos os lados, alucinada, branca, magnífica. Quebrou-se, a luz, e se tornou o arco-íris, que foi projetado nas coisas ao seu redor, inclusive em Pablo.
Mas, num só instante, o pião brilhou num fulgor instantâneo e se estilhaçou todo, espalhando o seu vidro transparente e pontiagudo – cruel – pelo parquinho. O menino, a criança, olhou para tudo aquilo, assustado, e afastou-se. Seu corpo, pequeno invólucro da sua alma tão grande, tremelicava. E foi só quando passou o susto que ele conseguiu chorar, triste por ter quebrado o pião de vidro que achara, o seu mais novo brinquedo.
Voltou para o balanço, cabisbaixo, os olhos turvos das lágrimas. Enxugou-os na roupa amarrotada e suja, e, quando olhou de novo para o mundo, ele o viu todo diferente. As coisas – e não só os estilhaços do pião, os pequenos pedaços de crime – haviam se transformado, todas elas. Arregalou os olhos, assustado.
O chão de terra e grama, a gangorra, o gira-gira, a corda bamba, os pneus de pular, o próprio balanço... tudo, que antes era feito de barro, verde, madeira, ferro, pano, corda, borracha, alma, essência, novidade, surpresa, felicidade, infância... tudo se transformou no mais translúcido e ridículo vidro. O mundo inteiro quebradiço e fugidio, agora.
Ele, sentado no balanço, franziu o seu cenho e fundiu as suas sobrancelhas, preocupado. Respirava aos poucos, ainda se adaptando à mudança repentina. Soltou um gemido mudo. As suas mãos se esfriavam, no contato com as correntes geladas de vidro, quase de gelo.
Quando viu que o mundo estava diferente, Pablo já não queria mais brincar. Não queria pular, rolar, gritar e se atirar, porque tinha medo de quebrar as coisas, como já quebrara o pião. Temia cortar-se com os estilhaços afiados do que se quebrou, e temia ele próprio se quebrar.
E a sua vida não foi mais que o fraco e indolente vai-e-vem do balanço, seus movimentos à deriva do vento. Ficou olhando as coisas passando, no mundo, com olhos apressados e sorrateiros, temendo ver repetir-se o que fez com o vidro, e não viveu.
DIOGO BERCITO