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[L] [Melkor, o inimigo da luz] [Johann]

Melkor- o inimigo da luz

Senhor de todas as coisas
Voltei.

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Levantou-se de debaixo da mesa e olhou para os lados, assustado, fugidio. Seus braços e suas pernas estavam cobertos da água imunda que pingava dos canos rachados, da cerveja que escorria dos copos quebrados e do sangue que pulsava dos corpos execrados. Torceu o nariz e tentou não exalar o aroma amargo, que vinha, tão inevitável. E pensou que jamais sairia dali, no final das contas.

Os trens subterrâneos que passavam, serpenteantes, nas proximidades, faziam sacodir o chão e as paredes do salão. Na superfície, os carros passavam alucinados, com os seus ruídos menos incômodos, mas mais freqüentes. Os ratos migravam, apressados, de buraco para buraco, causando rebuliço. Os rios de esgoto, e só eles, seguiam calmamente o seu curso sem calar-se nem deveras se exaltar.

Johann sacodiu a cabeça, fechou os olhos e concentrou-se. A saída, a saída, a saída... Abriu-os, procurou pela sala e sentou-se, desolado, ao lado do cadáver de uma menina que imaginava conhecer. Ok, não sei onde é a saída. Pegou uma garrafa de vidro, respirou fundo e engoliu de uma vez só tudo o que restava da vodka estúpida que haviam esquecido de tomar.

Depois de toda autocomiseração e tentativas de entender a situação, cansou-se e levantou-se de novo, pela segunda vez. Pôs as mãos na cintura, respirou fundo, esticou-se todo e sorriu. Sorriu, porque sempre se acha o caminho, pensava. Escolheu, resoluto, seguir pelo túnel que lhe causava menos aversão, ainda que a aversão em si fosse tão extrema naquele momento que as suas tonalidades não permitissem tamanho degradé.

Na entrada do buraco, uma grade de ossos amarelados e degenerados. Deu de ombros e começou a destruí-los, arrancando-os e esfarelando-os com suas próprias mãos. Alguns deles ainda seguravam um resto de carne apodrecida, outros teias de aranha, os mais raros cartilagem decomposta. Pigarreou, cuspiu no chão e prosseguiu.

A luz, que já desde o salão parecia diminuir, foi tornando-se mais branda. As tochas eventuais que enfeitavam as paredes iam tornando-se mais escassas e, pior, menos luminosas, como se a luz – assim como o calor – estivesse se tornando menos forte ou menos valiosa. Mas o caminho parecia tão óbvio, tão sereno, que Johann não se importava.

Em certo ponto, veio a segunda grade, esta feita de carne e sangue. Era uma barreira tenra e úmida, deliciosamente fresca e maravilhosamente crua. Johann sentiu, então, o impulso de mastigá-la e parti-la e destruí-la e tê-la, a carne vermelha. Pousou seus dedos delicados por sobre ela, sentiu sua textura, molhou os dedos no suco cadavérico... Respirou, sentiu o seu coração enlouquecido, e bufou: não, não, não! Afastou-se e, com um pontapé, derrubou o muro.

Suspirou. Endireitou-se e continuou o caminho, guiado pela luz azulada que se diria ser da lua, não estivesse ele no subterrâneo ridículo onde estava, isento ou protegido do lunar. E até mesmo essa luz irreal, que não era das tochas escassas nem do astro distante, foi tornando-se fraca e impotente, à medida que prosseguia.

Foi só quando percebeu que já estava andando dentro do esgoto, as suas duas pernas inevitavelmente imersas na água escura e lodosa, que se ergueu diante dele a terceira – e última – grade: a de ferro. Sorriu, olhou-a durante um tempo e surpreendeu-se, porque para ele a idéia de uma degradação progressiva das intempéries lhe parecia agora inconsistente. Mas, por outro lado, também pouco fazia idéia de como transpor o metal, que era mais forte que o seu osso e a sua carne e o seu sangue e a sua vontade.

Encostou-se na parede escorregadia, cruzou os braços e começou a pensar. E, ao mesmo tempo, não estava pensando, porque estava cansado, e sim procurando inconscientemente uma outra alternativa que não fosse passar. Porém, quais eram os outros caminhos e as outras opções? Não havia porque voltar tanto quanto não havia porque seguir, mas ele seguia, porque queria continuar.

Sendo a grade muito espaçada entre suas barras, tentou passar por ela sem grandes sacrifícios ou planos os mais dispendiosos. Falhou. Segurou nos ferros, balançou-os e praguejou. Estava quase desistindo e jogando-se na água, para morrer afogado e misturar-se junto com o esgoto e a escória, quando ouviu o tremelicar da caveira aproximar-se.

Ela veio, amarelada, com restos de carne e cartilagem, regada no sangue, com dentes de ferro, e – ainda que não tivesse músculos ou pele no rosto – Johann soube que sorria. Nos seus olhos brilhava um terrível brilho apagado, imperceptível e escuro, que na verdade não era um brilho mas toda a escuridão e o vazio refletidos.

Esticou o braço por entre a barreira, abriu sua mão vazia e magra e esticou o indicador para o menino, que tremelicou ele mesmo. Entretanto, Johann reuniu coragem e aproximou-se da caveira sorridente – que não sorria, deveras! -, a cabeça erguida. Antes que ele estivesse próximo, porém, ela arregalou os olhos – que não se podiam arregalar, porque eram vazios – e num salto repentino esticou-se ainda mais e o agarrou pela gola da camiseta suja e rasgada.

Antes que ele pensasse em reagir (e não pensaria, porque nem havia reação nem a que reagir), ela riu e o puxou por entre as barras de ferro enferrujadas, destruindo o seu corpo. Do outro lado da grade, ele percebeu-se ainda nas mãos dela – que ria -, todo destroçado e desmontado. A caveira esperou algum tempo, para que ele sentisse muita dor (ela gostava de ver a dor), e, mais uma vez subitamente, o afundou na água do rio que passava por debaixo deles.

Quando veio à tona, cuspindo o líquido preto viçoso que engolira, já não via caveira nenhuma e tampouco sentia dor, e seu corpo parecia inteiro, apesar de não ser essa a sua impressão. Respirou fundo, levantou-se pela terceira vez e olhou para trás, e riu, continuando – agora apressado – em direção ao que começava a compreender, ainda que a compreensão seja de certa forma perigosa quando se lida com a morte e os seus tentáculos imundos. Mas Johann ainda não desconfiava disso, portanto passou para o último cômodo.

O último cômodo era grande e incrível como o salão onde acordara, mas ainda mais magnífico e mais régio. Tapetes negros enfeitavam as paredes, lampiões sem luz pulsavam nos pilares de ossos, um lustre de diamante balançava rangendo, gárgulas astutas sentavam-se nos cantos, teias cobriam como lençóis o chão... E, no meio da sala, via-se o trono, que era cruel.

Foi recebido com os dedos magros que batiam em cadência no braço da cadeira sinistra. Seu dono suspirou, o observou e riu um pouco, satisfeito. Conforme Johann aproximou-se foi que conseguiu vê-lo com mais clareza e perceber que – mais do que uma caveira como a que havia visto há pouco – se tratava de uma força morta, um espírito vil, uma essência sombria. O portão da sala fechou-se de sobressalto e ele assustou-se, mas o susto deu-se mais devido ao barulho do que à impossibilidade de fuga, porque ele já não pensava em fugir.

O monstro falou, então:

- Fétido Fletcher é o nome do rei, e o rei da morte é nada senão um morto.
- Às suas ordens.
- Sim, sim, eu imagino – ele riu e, por um instante, fechou os seus olhos amarelados, pousando por sobre eles as pálpebras secas e sujas.
- Meu nome é Johann
- Ah, é? – ele ergueu as sobrancelhas peludas – Interessante saber. Prazer em conhecê-lo, Johann.
- Eu quero voltar para a superfície, senhor – o menino disse, controlando a sua voz trêmula e escorregadia.
- Para a superfície? – ele surpreendeu-se – Para a superfície, que é clara, cheia de gente e que tem água limpa? Para a superfície, onde há vida, animais, cura para as doenças, comida para todos? Para a superfície, lar dos seus amigos, parentes, conhecidos e por-se-conhecer? Para lá você quer ir, é esse o seu desejo?
- Sim, é esse o meu desejo – Johann respondeu.
- Pois bem – o morto disse, sorrindo, e deu a Johann algum tempo para que se sentisse feliz e tivesse esperanças, antes de continuar – Mas temos um problema, e você sabe qual é?
- Não, não sei.
- É que eu adoro sofrimento, dor e mutilação. Também gosto muito de incinerar, necrosar, flagelar, torturar, destruir, assassinar, destroçar, esmigalhar, esfarelar, amassetar, quebrar, trincar, sangrar, amassar, esticar, erradicar, massacrar, pisar, serrar... dentre outras coisas.
- Mas... – Johann tentou falar, entretanto, sentiu sua garganta rasgando de dentro pra fora.
- E acontece que eu sou o rei, só por acaso, deste esgoto e de todos os outros que me foram dados pela morte, que é minha senhora. E, sendo eu rei, você precisa saber de duas coisas: odeio ser interrompido e costumo realizar meus prazeres. Fétido Fletcher é o nome do rei, e o rei da morte é nada senão um morto.


O demônio esticou sua mão e fez fogo surgir nela, queimando-a. Aspirou o aroma de pele derretida, a sua própria tez, e gargalhou. Depois, apenas assoprou a chama e imediatamente o menino começou a queimar. Pouco a pouco, sua pele derreteu-se e, antes que morresse, Fétido – evidentemente contrariado – sugou-a de volta para o seu peito infernal.
E disse, alegre:


- A dor não é nada senão o esquecimento da felicidade e do bem-estar.


Em seguida, rasgou um pedaço do pano negro que cobria a pele suja e esverdeada do seu braço, cortou a sua pele com a unha amarela e arrancou de dentro da sua carne podre o seu osso do rádio. Fez pontaria no menino agonizante, que tentava aproximar-se do trono, e atirou o osso em cheio no seu peito arquejante.
Johann sentiu não só o seu coração sendo furado e o seu sangue jorrando e secando, mas a sua carne ser dilacerada em todos os pontos do seu corpo, como se tivesse sido plantada nele uma semente de destruição e caos. E Fétido sorria, dizendo:


- A morte do corpo não é nada senão a invalidação da manifestação no plano material.


O menino, assustado, e também cansado de tanto sofrer, começou a resignar-se e entender aquilo que já pensava compreender desde que passara a terceira grade. Percebia que sua existência estava se esgotando e, sabe-se lá porque ou como, desde que chegara naquele subterrâneo estava fadado a desaparecer e morrer e sumir e deixar de ser.
Mas a morte é, como já se disse, impossível de se associar com a sua própria compreensão e Johann, não tendo percebido isso, esvaeceu por completo naquele momento no qual julgou ter percebido o que estava acontecendo. E Fétido Fletcher, não exatamente satisfeito, mas contente, disse, para ninguém ouvir senão ele:


- O desaparecimento é o resultado da compreensão da morte, portanto uma vez que se entende que se está morto, se morre.


O rei das profundezas, já agora entediado, desagradou-se com o cadáver no seu salão e o devorou, apenas para não mais ter de vê-lo e lembrar-se de quão rápida foi a sua diversão, daquela vez. Espreguiçou-se, esticou seu corpo deformado e apoiou a cabeça no braço, que estava apoiado no braço do trono despótico.

Como se estivesse cantando ou recitando uma poesia, proferiu as suas mais prediletas palavras na sua preferida combinação:

- Fétido Fletcher é o nome do rei, e o rei da morte é nada senão um morto.


FIM


Diogo Bercito,
08/04/06
Finalizado às 01:54
 

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