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[L] [Melkor, o Inimigo da Luz] [Fausto Relinchar]

Melkor- o inimigo da luz

Senhor de todas as coisas
Esse texto é bem recente, foi o penúltimo que escrevi até agora. Pra quem acompanha meus contos, é uma leitura interessante. =)



FAUSTO RELINCHAR

Fausto era um cavalo preto lindo, um daqueles cavalos grandes e maravilhosos que se vê nos filmes ou nas revistas. Ou nos sonhos. Era quase como todos os outros eqüinos, acho: quatro patas grossas e hipertrofiadas, corpo bem desenhado, rabo comprido e liso, dorso reluzente, crina de fios de seda... A diferença estava só no pescoço, que subia torcido e retorcido, torto.

Ah, outra diferença: seus olhos, seus olhos eram de um pretume absurdamente curioso, e ele sempre olhava as coisas, curioso, como se as estivesse vendo pela primeira vez. E seus ossos: seus ossos estalavam, estralavam, enquanto ele andava, de modo com que nem precisava que ele trotasse para que se ouvisse aquele som característico dos cavalos.

Ele vivia, o Fausto, enfastiado num vale qualquer. O que lhe irritava eram as coisas ao seu redor, que nunca se alteravam: o céu avermelhado e manchado de laranja, as montanhas cinza em volta de todo o cenário, o miasma verde que flutuava... e o lago, o lago preto e oleoso, com toda aquela areia branca em volta.

Costumava ficar por ali, perto do lago, as pernas dobradas quase como se em reverência. O pescoço torcido levantado, ficava olhando a praia de pólvora e a explosão que sucedia a todas as lambidas que a água de óleo fervendo tentava dar. Bum!, e a cada explosão ele se assustava um pouco e relinchava, para depois se acomodar mais uma vez e esperar a próxima.

Que é que se havia escondido dentro do lago?, pensava. Podia ser que fosse felicidade. Podia ser que fosse liberdade, tomara que fosse. Será que havia lá no fundo um mundo inteiro, ou ruínas, será que havia um monte de coisas que não fossem céu, pedra, ar, óleo, pólvora, casco, olhos, seda, osso, pêlo, fumaça, explosão?

O sol passava no céu deixando um rastro desbotado. As nuvens corriam rápidas, esfumaçadas. O calor ondulava. E Fausto permanecia lá, olhando as coisas, entediado com o seu tédio, assustando-se com o bum dos vagalhões misturando-se com os grãos da borda do lago. Perguntava-se o que havia dentro do óleo, por que ele fervia?

Um dia, enquanto dava uma volta na lagoa, encontrou, na margem, uma garrafa de vidro rachada. Suja e envelhecida, a garrafa se prostrava como um ídolo destronado. Vibrava, em ressonância. Fausto a olhou, curioso, e a adorou como a um ídolo antigo, venerável. Trocaram um olhar de sintonia – ele, com seus olhos pretos; ela, com o seu desinteresse cruel de olhos vidrados– e logo se firmou entre eles um pacto de cumplicidade.

Pisou na garrafa com seu casco duro num movimento que se assemelhou ao mecanismo das engrenagens que moviam as rodas dum trem, antigamente. Sentiu-se imponente pela graça do gesto, sua postura estava formidável, só a pata se moveu. Via-se um cavalo de raça, treinado, apresentando-se para o seu nobre cavaleiro. Sorriu.

Mas Fausto não sentiu a garrafa se quebrar, estranhamente, como se garrafa não o houvesse. Talvez tivesse sido só impressão, talvez o cansaço lhe tivesse pregado a peça de inventar um objeto naquele lugar quieto e repleto de marasmo onde as coisas não apareciam de repente sem se perceber. Por outro lado, a garrafa tinha se quebrado, ele via os estilhaços, e isso independia dela existir ou não.

O acontecimento, que poderia ter sido só um acontecimento – afinal, só se quebrara uma garrafa de vidro e, apesar de Fausto nunca ter visto uma, era um objeto absolutamente trivial e desinteressante; e as coisas se quebram mesmo, quando são pisoteadas – desencadeou no cavalo uma reflexão interessante. Afinal, as coisas podem inexistir sem antes terem existido, ou existir sem antes terem inexistido?, pensava.

Porque a garrafa agora inexistia, fato: estava quebrada. Se não inexistia, existia a sua não-existência, seus estilhaços. Os pensamentos rodavam dentro da sua cabeça como panos coloridos se entrelaçando, dançando com o vento. Pisou mais um pouco nos cacos, para esfarelá-los, e continuou a perscrutar a existência.

E o que era a existência, no final das contas? Existir era o microcosmo, pensava Fausto, delirante. Existir lhe parecia exatamente o ato de fazer parte do microcosmo, das pequenas coisas. Ser um cavalo, ter pêlo eriçado, seu pescoço fazer uma curva, seus dentes estarem amarelados... isso, isso se assemelhava a existir, para ele.

Não-existir era diferente. A inexistência era o macrocosmo, descobriu. Inexistir lhe parecia vagamente a ação de não fazer parte do microcosmo, mas do macrocosmo, de ver as coisas todas de longe, os sentimentos, as lógicas que regem o universo, as leis da física, a energia flutuando por entre os objetos e as sensações... isso, isso se aproximava da não-existência, para ele.

Deu alguns passos para trás, ajoelhou-se e olhou de perto o vidro quebrado. A luz avermelhada do sol se refletia nos pedacinhos destroçados, emprestando à cena uma beleza incomum. Depois, levantou-se, trotou um pouco e parou na borda do lago. As cristas das ondas continuavam a explodir.

“O que eu quero?”, pensou. Afinal, agora que entendia a dualidade do universo, percebia que precisava escolher (se é que a chance de escolha lhe estava sendo dada, mas ele acreditava piamente que sim) entre os dois lados de uma moeda que aparentemente tem um só: ser ou não-ser?

E o que ele queria?, podemos pensar. A que reino tencionava pertencer, qual dos dois? Podia conhecer os detalhes, mas desconhecer o todo, ou conhecer o todo sem vê-lo nos detalhes. A escolha não era fácil, e ambas as opções eram tentadoras. Isso sem contar o agravante: uma alternativa, automaticamente, anulava por toda a eternidade a outra. Fausto relinchou, triste.

Por entre a tristeza relinchante, porém, percebeu: de quem fora a escolha, dele ou da garrafa? Parou, assustado, e olhou para os estilhaços brilhantes que lhe diziam: nós escolhemos, nós! E, de fato, havia sido a garrafa de vidro que tinha decidido pelo macrocosmo e se deixara despedaçar pela pata vacilante e angustiada de Fausto. Onde estava, então, o seu direito de optar pelas coisas? Havia sido naquele momento, quando trocaram o olhar de cúmplices... naquele momento, a garrafa lhe avisara: me quebre, pois é a minha escolha. Quebrou-a, obediente, o tolo.

Deixou-se por um instante esquecer tudo aquilo. Afrouxou as rédeas dos seus pensamentos; libertou os seus olhos e logo eles giraram na cavidade ocular e se puseram a olhar as coisas, curiosos, como se fosse a primeira vez, como se nunca tivessem observado aquele mundo estático e patético de onde nunca haviam saído. As árvores pretas e secas erguiam-se, imponentes e insensatas, os galhos rasgando o céu, as raízes soltando-se do chão para respirar um pouco, aflitas.


E voltou a pensar: o que quero, que cosmo? As coisas no seu todo ou elas mesmas, as coisas? O conjunto ou o individual? Matilha ou cão? Ossada ou osso? Frota ou navio? Colar ou pérola? Pinacoteca ou quadro? Cardume ou peixe? Alcatéia ou lobo? Código ou lei? Bando ou macaco (babuíno)? Nuvem ou gafanhoto? Molho ou chave? Cáfila ou camelo? Legião ou arcanjo? Tertúlia ou amigo (que diabos é uma tertúlia?, pensou), elenco ou ator? Atlas ou mapa?


Relinchou


Que quero eu? Quero conhecer os organismos ou as células? O céu ou o ar? Papel ou carta? Rosto ou íris? Pele ou pêlo? Planeta ou placenta? Firmamento ou estrela? Felicidade ou lágrima? Vermelho ou amor? Areia ou grão? Quero conhecer a gramática, a sintaxe e o alfabeto ou as letras? Quero conhecer os segredos que envolvem o universo ou o universo em si? Quero conhecer a magnificência do vazio ou a ausência?

Ereto, os pés pisando na areia quente e de porvires de explosão, fitou o óleo escaldante do lago. Seu pescoço girou lentamente como a cabeça de uma hidra, durante algum tempo, – é o que fazia enquanto estava ocupado pensando, era seu modo de concentrar-se. Emaranhava-se como se estivesse dando um nó em si mesmo.

A água quente, preta, parecia seduzir o seu corpo, como se dissesse ei, venha, quero te chamuscar. E podia mesmo se imaginar entrando no lago, passando pelas explosões da beirada, colocando as suas patas no óleo, derretendo pouco a pouco toda a sua existência e mergulhando no infinito da morte, viajando ao país de onde jamais voltou nenhum viajante. Sua vontade estava toda confusa, e não sabia se preferia suportar os males que já tinha ou lançar-se a outros que desconhecia. Não-existir, o macrocosmo, daria a Fausto conhecimentos e certezas que gostaria de possuir.

As montanhas atrás de si, porém, faziam outro chamado: havia, por entre dois montes, uma trilha que só agora percebia. Passando pelo meio de duas elevações de terra, como se fosse um risco correndo pelo espaço que há entre dois seios, havia um caminho que levava para fora do vale. E o que tinha lá, fora do vale? Ele não sabia. Conhecer as pequenas coisas novas, o microcosmo, era uma forma de existência que traria gozo à sua alma eqüina. Imaginava-se trotando pela estrada, olhando as novidades, sorrindo.


Queria que o mundo decidisse por ele, como a garrafa havia feito. Trocariam também um olhar, firmariam um pacto silencioso e de repente teria a sua escolha sem ter que escolher. Estilhaçaria-se, como o vidro, e estaria feliz com qualquer que fosse o resultado, conquanto não tivesse que decidir. Mas, onde se olha o mundo? Onde estão os seus olhos grandes e acusadores, por onde se penetra na essência da existência? Como se troca um olhar se só você tem olhos? A cegueira do universo era injusta e covarde.


E foi nesse instante – enquanto seu pescoço retorcido girava para observar as montanhas e o lago, alternadamente – que o babuíno voluntarioso chegou. Como um messias, veio de dentro de uma floresta de árvores mortas, imponente, e a sua simples presença fez Fausto prostrar-se e reverenciá-lo. Era definitivamente o macaco mais incrível que já vira, levando-se em conta todos os um macacos que conhecera.

Quando chegou mais perto, foi possível observá-lo detalhadamente: quase grande como um gorila, pêlo marrom, ânus rosado, olhos pequenos e amarelados protegidos por uma testa preta protuberante, rosto alongado, uma pequena juba de pelugem mais clara, dentes pontudos grudados numa boca semi-aberta... e aquele jeitão de babuíno: meio dengoso, meio sério; meio austero, meio largado; meio mistificado, meio vulgar; meio bravo, meio paterno; meio violento, violentíssimo. Pigarreou.

O macaco aproximou-se, colocou a mão no dorso negro de Fausto, fez carinho e os dois se observaram durante aquele último minuto de silêncio. Depois, o babuíno voluntarioso ergueu o seu braço e apontou enfaticamente para uma porta que havia acabado de surgir na frente deles dois, a alguns palmos de distância: porta de madeira envernizada.


- Eu tenho uma proposta a te fazer, cavalo – o primata disse
- Proposta? – Fausto perguntou
- Proposta


Silêncio.


- Atrás dessa porta, atrás dela há o terceiro cosmo - continuou
- Terceiro cosmo?
- Terceiro cosmo


Fausto franziu as sobrancelhas, fazendo sombra nos seus olhos confusos.


- O terceiro cosmo é o último cosmo, e é o maior cosmo. O holocosmo, como eu mesmo o batizei: é a completude.
- Completude?
- Caramba, você vai repetir tudo o que eu digo?


Constrangimento.


- Completude – ele riu – Completude, Fausto! As coisas emaranhadas com as suas essências, as coisas todas flutuando num caldeirão enferrujado! Pense num caldo primordial que contenha tudo, mas tudo mesmo: as idéias e o resultado delas, as cores e o calor, os dedos e a sensação de toque, os sorrisos e a felicidade. Completude, completude!
- Completude...
- Pense num céu só feito de nuvens, pense em baleias e em umidade! Imagine a gravidade atraindo eternamente toda as maçãs num mesmo instante, guerras sendo travadas sem mortos, ursos polares enamorados... Completude, completude!
- Completude
- Não seja bobo de pensar que precisa escolher entre o microcosmo e o macrocosmo, Fausto. Escolha o cosmo ele mesmo, completo – o macaco velho ria, com seus gestos grandiosos e únicos – Escolha nadar num rio de insetos, cantar todas as óperas de uma só vez, conhecer todas as letras de todos os alfabetos e todas as palavras de todas as línguas.
- Completude!
- Isso mesmo: completude. Veja...


O babuíno voluntarioso abriu sua própria caixa torácica. Fausto observou, curioso, o interior inesperado: ao invés de entranhas, havia dentro do macaco um conjunto complexo de engrenagens vermelhas e pulsantes. O sangue escorria por canos de plástico. No lugar do coração, uma dançarina de caixinha de música girando loucamente.

Foi de lá de dentro que o ancião retirou uma chave de lápis lazuli, do seu eu-interior. Pegou-a com sua mão peluda e foi até a porta procurar a fechadura, para poder abri-la. Não encontrou. Ele coçou a cabeça, pensou um pouco, resmungou alguma coisa. Então, abriu mais uma vez seu corpo e pegou uma fechadura que estava escondida no seu pulmão. “Agora sim”, bradou, triunfante: instalou-a na madeira, introduziu a chave e o mundo inteiro fez clique.
 
Esse texto é bem recente, foi o penúltimo que escrevi até agora. Pra quem acompanha meus contos, é uma leitura interessante. =)



FAUSTO RELINCHAR

Fausto era um cavalo preto lindo, um daqueles cavalos grandes e maravilhosos que se vê nos filmes ou nas revistas. Ou nos sonhos. Era quase como todos os outros eqüinos, acho: quatro patas grossas e hipertrofiadas, corpo bem desenhado, rabo comprido e liso, dorso reluzente, crina de fios de seda... A diferença estava só no pescoço, que subia torcido e retorcido, torto.

Ah, outra diferença: seus olhos, seus olhos eram de um pretume absurdamente curioso, e ele sempre olhava as coisas, curioso, como se as estivesse vendo pela primeira vez. E seus ossos: seus ossos estalavam, estralavam, enquanto ele andava, de modo com que nem precisava que ele trotasse para que se ouvisse aquele som característico dos cavalos.

Ele vivia, o Fausto, enfastiado num vale qualquer. O que lhe irritava eram as coisas ao seu redor, que nunca se alteravam: o céu avermelhado e manchado de laranja, as montanhas cinza em volta de todo o cenário, o miasma verde que flutuava... e o lago, o lago preto e oleoso, com toda aquela areia branca em volta.

Costumava ficar por ali, perto do lago, as pernas dobradas quase como se em reverência. O pescoço torcido levantado, ficava olhando a praia de pólvora e a explosão que sucedia a todas as lambidas que a água de óleo fervendo tentava dar. Bum!, e a cada explosão ele se assustava um pouco e relinchava, para depois se acomodar mais uma vez e esperar a próxima.

Que é que se havia escondido dentro do lago?, pensava. Podia ser que fosse felicidade. Podia ser que fosse liberdade, tomara que fosse. Será que havia lá no fundo um mundo inteiro, ou ruínas, será que havia um monte de coisas que não fossem céu, pedra, ar, óleo, pólvora, casco, olhos, seda, osso, pêlo, fumaça, explosão?

O sol passava no céu deixando um rastro desbotado. As nuvens corriam rápidas, esfumaçadas. O calor ondulava. E Fausto permanecia lá, olhando as coisas, entediado com o seu tédio, assustando-se com o bum dos vagalhões misturando-se com os grãos da borda do lago. Perguntava-se o que havia dentro do óleo, por que ele fervia?

Um dia, enquanto dava uma volta na lagoa, encontrou, na margem, uma garrafa de vidro rachada. Suja e envelhecida, a garrafa se prostrava como um ídolo destronado. Vibrava, em ressonância. Fausto a olhou, curioso, e a adorou como a um ídolo antigo, venerável. Trocaram um olhar de sintonia – ele, com seus olhos pretos; ela, com o seu desinteresse cruel de olhos vidrados– e logo se firmou entre eles um pacto de cumplicidade.

Pisou na garrafa com seu casco duro num movimento que se assemelhou ao mecanismo das engrenagens que moviam as rodas dum trem, antigamente. Sentiu-se imponente pela graça do gesto, sua postura estava formidável, só a pata se moveu. Via-se um cavalo de raça, treinado, apresentando-se para o seu nobre cavaleiro. Sorriu.

Mas Fausto não sentiu a garrafa se quebrar, estranhamente, como se garrafa não o houvesse. Talvez tivesse sido só impressão, talvez o cansaço lhe tivesse pregado a peça de inventar um objeto naquele lugar quieto e repleto de marasmo onde as coisas não apareciam de repente sem se perceber. Por outro lado, a garrafa tinha se quebrado, ele via os estilhaços, e isso independia dela existir ou não.

O acontecimento, que poderia ter sido só um acontecimento – afinal, só se quebrara uma garrafa de vidro e, apesar de Fausto nunca ter visto uma, era um objeto absolutamente trivial e desinteressante; e as coisas se quebram mesmo, quando são pisoteadas – desencadeou no cavalo uma reflexão interessante. Afinal, as coisas podem inexistir sem antes terem existido, ou existir sem antes terem inexistido?, pensava.

Porque a garrafa agora inexistia, fato: estava quebrada. Se não inexistia, existia a sua não-existência, seus estilhaços. Os pensamentos rodavam dentro da sua cabeça como panos coloridos se entrelaçando, dançando com o vento. Pisou mais um pouco nos cacos, para esfarelá-los, e continuou a perscrutar a existência.

E o que era a existência, no final das contas? Existir era o microcosmo, pensava Fausto, delirante. Existir lhe parecia exatamente o ato de fazer parte do microcosmo, das pequenas coisas. Ser um cavalo, ter pêlo eriçado, seu pescoço fazer uma curva, seus dentes estarem amarelados... isso, isso se assemelhava a existir, para ele.

Não-existir era diferente. A inexistência era o macrocosmo, descobriu. Inexistir lhe parecia vagamente a ação de não fazer parte do microcosmo, mas do macrocosmo, de ver as coisas todas de longe, os sentimentos, as lógicas que regem o universo, as leis da física, a energia flutuando por entre os objetos e as sensações... isso, isso se aproximava da não-existência, para ele.

Deu alguns passos para trás, ajoelhou-se e olhou de perto o vidro quebrado. A luz avermelhada do sol se refletia nos pedacinhos destroçados, emprestando à cena uma beleza incomum. Depois, levantou-se, trotou um pouco e parou na borda do lago. As cristas das ondas continuavam a explodir.

“O que eu quero?”, pensou. Afinal, agora que entendia a dualidade do universo, percebia que precisava escolher (se é que a chance de escolha lhe estava sendo dada, mas ele acreditava piamente que sim) entre os dois lados de uma moeda que aparentemente tem um só: ser ou não-ser?

E o que ele queria?, podemos pensar. A que reino tencionava pertencer, qual dos dois? Podia conhecer os detalhes, mas desconhecer o todo, ou conhecer o todo sem vê-lo nos detalhes. A escolha não era fácil, e ambas as opções eram tentadoras. Isso sem contar o agravante: uma alternativa, automaticamente, anulava por toda a eternidade a outra. Fausto relinchou, triste.

Por entre a tristeza relinchante, porém, percebeu: de quem fora a escolha, dele ou da garrafa? Parou, assustado, e olhou para os estilhaços brilhantes que lhe diziam: nós escolhemos, nós! E, de fato, havia sido a garrafa de vidro que tinha decidido pelo macrocosmo e se deixara despedaçar pela pata vacilante e angustiada de Fausto. Onde estava, então, o seu direito de optar pelas coisas? Havia sido naquele momento, quando trocaram o olhar de cúmplices... naquele momento, a garrafa lhe avisara: me quebre, pois é a minha escolha. Quebrou-a, obediente, o tolo.

Deixou-se por um instante esquecer tudo aquilo. Afrouxou as rédeas dos seus pensamentos; libertou os seus olhos e logo eles giraram na cavidade ocular e se puseram a olhar as coisas, curiosos, como se fosse a primeira vez, como se nunca tivessem observado aquele mundo estático e patético de onde nunca haviam saído. As árvores pretas e secas erguiam-se, imponentes e insensatas, os galhos rasgando o céu, as raízes soltando-se do chão para respirar um pouco, aflitas.


E voltou a pensar: o que quero, que cosmo? As coisas no seu todo ou elas mesmas, as coisas? O conjunto ou o individual? Matilha ou cão? Ossada ou osso? Frota ou navio? Colar ou pérola? Pinacoteca ou quadro? Cardume ou peixe? Alcatéia ou lobo? Código ou lei? Bando ou macaco (babuíno)? Nuvem ou gafanhoto? Molho ou chave? Cáfila ou camelo? Legião ou arcanjo? Tertúlia ou amigo (que diabos é uma tertúlia?, pensou), elenco ou ator? Atlas ou mapa?


Relinchou


Que quero eu? Quero conhecer os organismos ou as células? O céu ou o ar? Papel ou carta? Rosto ou íris? Pele ou pêlo? Planeta ou placenta? Firmamento ou estrela? Felicidade ou lágrima? Vermelho ou amor? Areia ou grão? Quero conhecer a gramática, a sintaxe e o alfabeto ou as letras? Quero conhecer os segredos que envolvem o universo ou o universo em si? Quero conhecer a magnificência do vazio ou a ausência?

Ereto, os pés pisando na areia quente e de porvires de explosão, fitou o óleo escaldante do lago. Seu pescoço girou lentamente como a cabeça de uma hidra, durante algum tempo, – é o que fazia enquanto estava ocupado pensando, era seu modo de concentrar-se. Emaranhava-se como se estivesse dando um nó em si mesmo.

A água quente, preta, parecia seduzir o seu corpo, como se dissesse ei, venha, quero te chamuscar. E podia mesmo se imaginar entrando no lago, passando pelas explosões da beirada, colocando as suas patas no óleo, derretendo pouco a pouco toda a sua existência e mergulhando no infinito da morte, viajando ao país de onde jamais voltou nenhum viajante. Sua vontade estava toda confusa, e não sabia se preferia suportar os males que já tinha ou lançar-se a outros que desconhecia. Não-existir, o macrocosmo, daria a Fausto conhecimentos e certezas que gostaria de possuir.

As montanhas atrás de si, porém, faziam outro chamado: havia, por entre dois montes, uma trilha que só agora percebia. Passando pelo meio de duas elevações de terra, como se fosse um risco correndo pelo espaço que há entre dois seios, havia um caminho que levava para fora do vale. E o que tinha lá, fora do vale? Ele não sabia. Conhecer as pequenas coisas novas, o microcosmo, era uma forma de existência que traria gozo à sua alma eqüina. Imaginava-se trotando pela estrada, olhando as novidades, sorrindo.


Queria que o mundo decidisse por ele, como a garrafa havia feito. Trocariam também um olhar, firmariam um pacto silencioso e de repente teria a sua escolha sem ter que escolher. Estilhaçaria-se, como o vidro, e estaria feliz com qualquer que fosse o resultado, conquanto não tivesse que decidir. Mas, onde se olha o mundo? Onde estão os seus olhos grandes e acusadores, por onde se penetra na essência da existência? Como se troca um olhar se só você tem olhos? A cegueira do universo era injusta e covarde.


E foi nesse instante – enquanto seu pescoço retorcido girava para observar as montanhas e o lago, alternadamente – que o babuíno voluntarioso chegou. Como um messias, veio de dentro de uma floresta de árvores mortas, imponente, e a sua simples presença fez Fausto prostrar-se e reverenciá-lo. Era definitivamente o macaco mais incrível que já vira, levando-se em conta todos os um macacos que conhecera.

Quando chegou mais perto, foi possível observá-lo detalhadamente: quase grande como um gorila, pêlo marrom, ânus rosado, olhos pequenos e amarelados protegidos por uma testa preta protuberante, rosto alongado, uma pequena juba de pelugem mais clara, dentes pontudos grudados numa boca semi-aberta... e aquele jeitão de babuíno: meio dengoso, meio sério; meio austero, meio largado; meio mistificado, meio vulgar; meio bravo, meio paterno; meio violento, violentíssimo. Pigarreou.

O macaco aproximou-se, colocou a mão no dorso negro de Fausto, fez carinho e os dois se observaram durante aquele último minuto de silêncio. Depois, o babuíno voluntarioso ergueu o seu braço e apontou enfaticamente para uma porta que havia acabado de surgir na frente deles dois, a alguns palmos de distância: porta de madeira envernizada.


- Eu tenho uma proposta a te fazer, cavalo – o primata disse
- Proposta? – Fausto perguntou
- Proposta


Silêncio.


- Atrás dessa porta, atrás dela há o terceiro cosmo - continuou
- Terceiro cosmo?
- Terceiro cosmo


Fausto franziu as sobrancelhas, fazendo sombra nos seus olhos confusos.


- O terceiro cosmo é o último cosmo, e é o maior cosmo. O holocosmo, como eu mesmo o batizei: é a completude.
- Completude?
- Caramba, você vai repetir tudo o que eu digo?


Constrangimento.


- Completude – ele riu – Completude, Fausto! As coisas emaranhadas com as suas essências, as coisas todas flutuando num caldeirão enferrujado! Pense num caldo primordial que contenha tudo, mas tudo mesmo: as idéias e o resultado delas, as cores e o calor, os dedos e a sensação de toque, os sorrisos e a felicidade. Completude, completude!
- Completude...
- Pense num céu só feito de nuvens, pense em baleias e em umidade! Imagine a gravidade atraindo eternamente toda as maçãs num mesmo instante, guerras sendo travadas sem mortos, ursos polares enamorados... Completude, completude!
- Completude
- Não seja bobo de pensar que precisa escolher entre o microcosmo e o macrocosmo, Fausto. Escolha o cosmo ele mesmo, completo – o macaco velho ria, com seus gestos grandiosos e únicos – Escolha nadar num rio de insetos, cantar todas as óperas de uma só vez, conhecer todas as letras de todos os alfabetos e todas as palavras de todas as línguas.
- Completude!
- Isso mesmo: completude. Veja...


O babuíno voluntarioso abriu sua própria caixa torácica. Fausto observou, curioso, o interior inesperado: ao invés de entranhas, havia dentro do macaco um conjunto complexo de engrenagens vermelhas e pulsantes. O sangue escorria por canos de plástico. No lugar do coração, uma dançarina de caixinha de música girando loucamente.

Foi de lá de dentro que o ancião retirou uma chave de lápis lazuli, do seu eu-interior. Pegou-a com sua mão peluda e foi até a porta procurar a fechadura, para poder abri-la. Não encontrou. Ele coçou a cabeça, pensou um pouco, resmungou alguma coisa. Então, abriu mais uma vez seu corpo e pegou uma fechadura que estava escondida no seu pulmão. “Agora sim”, bradou, triunfante: instalou-a na madeira, introduziu a chave e o mundo inteiro fez clique.


Não vou mentir; está um pouco confusa:think: ... mas o cavalo está óptimo!! Mas não, a sério; está confusa... e muito... devias melhora-la!

Cavaleira Negra
 

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