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[L] [Lembas] [Aneleh]

Lembas

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[Lembas] [Aneleh]

Vou postar, por partes, o primeiro capítulo do conto que eu usei para dar forma ao meu mundo de AD&D. Podem palpitar...nem reparem o número de deuses, são 40.

ANELEH
Da orla da floresta podia se avistar uma grande faixa de terra, onde se espichava uma planície verdejante e o capim alto tremulava. Ao longe, o vento uivava nas Serranias de Fogo trazendo do leste as nuvens que marcavam o fim da primavera e o início da estação das chuvas em Herak. Por isso, era dia de festa, dia de Winal, deusa da vida que florescera na primavera. Herak, a terra dos centauros, era um país cercado por lendas de valorosos guerreiros que traziam a glória de toda uma nação na lâmina de suas espadas, fazendo-as brilhar como o fogo das estrelas. Herak era um país de coragem e bravura, que se refletia na hierarquia de todo o povo. O valor de seus feitos se espalhava pela grande planície de Herak, que surgia na borda da floresta de Keltrin ao norte e se espalhava ensolarada até o Lago Sagrado, alimentado pelos dois rios que traziam as notícias das Serranias de Fogo e que depois do Lago tornavam-se um só rumo sul.
Se ao norte a planície era verdejante e úmida, ao sul ela se tornava uma savana, aonde o búfalo corria em manadas e os grandes répteis viviam à beira rio. Havia um bosque perto do Lago, um pequeno bosque onde habitavam pigmeus. Eles viviam de modo selvagem, caçando os búfalos e as cobras, e dormindo sob a copa das árvores. Não travavam conhecimento dos centauros, que tampouco percebiam sua presença mais do que a de qualquer outro animal. Sabiam que nenhum pigmeu era jamais avistado à noite e a lenda que corria era que eles eram os espíritos das árvores velhas, que respiravam a luz do sol de dia para elas, e a noite compartilhavam sua energia para que elas sempre vicejassem. Por isso ele se chamava Bosque das Árvores Velhas. Elas tinham um brilho dourado como o capim da savana, e dourada era a pele dos pigmeus, refletindo o brilho do sol em suas gotas de suor.
Mas, era dia de Winal, e os centauros se reuniam na planície norte de Herak para celebrar a própria força e fertilidade em seus elaborados torneios, cujo Grande Vencedor era o rei do ano vindouro e o mais poderoso centauro de toda Malin. Ao menos por um ano. Essas disputas, que muitas vezes terminavam em contusões, ferimentos e ocasionais mortes, eram sagradas e fechadas a todos aqueles que não competiriam ou julgariam, com exceção dos anciãos e das centauras, que torciam por seus campeões e coroavam os vencedores com uma coroa de narcisos, uma honra incomparável.
O sol estava no centro do céu, já meio encoberto pelas nuvens, e a planície estava tomada de centauros, que aguardavam a chegada daqueles que disputavam a prova de velocidade, correndo os cem quilômetros que separavam a cidade-capital da planície. Aneleh podia vê-los todos, ansiosos, olhando para o horizonte a oeste. De súbito, seus ouvidos apurados captaram o intenso bater dos cascos e surgiram ao longe quatro deles, com as partes eqüinas brilhando com o suor e o esforço. A energia de sua luta pulsava a sua volta, e eles deixavam uma nuvem de poeira atrás de si, disputando palmo a palmo os metros finais. Por fim um deles, um grande centauro negro, atravessou entre as duas piras que sinalizavam a chegada, e empinou em triunfo. Aquela era a sua prova. Aneleh riu, dependurada no galho da goiabeira. Os centauros pareciam tão primitivos aos seus olhos, e, no entanto, guardavam tanta mágica dentro de si.
Agora começavam os preparativos para a grande prova de arco e flecha. Como era dia de Winal, nenhuma vida poderia ser tomada para a disputa, e os alvos, ao invés de pássaros, eram circunferências de madeira presas em postes há oitenta metros dos competidores. Estes postes estavam sendo perfilados cuidadosamente pelos juízes. Em meio a isso, os retardatários da corrida chegavam fazendo estardalhaço.
De súbito aconteceu uma agitação na tenda dos anciãos e duas pessoas disparam correndo em direção à floresta, encalçadas por centauros da guarda. Um dos fugitivos era obviamente um humano, o outro era menor, parecia...Um duende? Tão longe de suas terras natais? Aneleh arregalou os olhos e acompanhou-os em sua fuga alucinada, chegando cada vez mais perto da goiabeira onde estava escondida. De repente viu-os escalando rapidamente os galhos e os centauros embrenhando-se na floresta, numa perseguição infrutífera.
Um silêncio estranho seguiu-se então. Ao longe, ainda se escutava o galopar dos centauros pelo meio da floresta, mas nem sinal de vozes. Na planície, os preparativos continuavam, embora a indignação dos anciões fosse evidente.
- Pode pagar – Aneleh ouviu uma voz sibilante às suas costas – dez cobres pela sineta do ancião.
- Está certo, seu duende insano. – a outra voz tinha o sotaque urbano dos humanos de Turia – esses guardas vão correr daqui até Elanorel...
As duas vozes riram, sem aperceber-se de Aneleh, que virava, com a adaga em riste, para os dois intrusos em sua árvore. Árvore que ela mesma plantara, há vários anos, justamente com a finalidade de espiar as festas.
- Quem sois vós e o que fazeis aqui em Herak, em pleno dia de Winal? Poderia muito bem entregá-los para a guarda dos centauros...
Dois pares de olhos se voltaram em meio à folhagem, fitando-a com o olhar assombrado.
- Ora, ora – sibilou a primeira voz, pertencente ao duende – temos companhia.
- Permita-me, minha dama, sou Tchad Trevian e meu companheiro chama-se Felix. E como se chamará tão lindo par de olhos que fazem par com as flores mais belas da floresta? – o humano curvou-se numa reverência cortês. – mas pense, minha dama, o que ganharia em alertar os guardas? No entanto, se ficar em silêncio poderá desfrutar do prazer de nossa companhia, assim como desfrutamos da sua.
- Meu nome é Aneleh, Aneleh Adingankar, do reino élfico de Keltrin. E o que raios tu e teu companheiro fizeram ali embaixo? Porque os guardas não nos perceberam aqui?
- Tolos – Felix, o duende, riu e sibilou – estavam ocupados demais nos perseguindo para nos perceber aqui. Ninguém captura Felix, o Mago da Luz.
-Pois então, tu és um Ilusionista. Logo se percebe que sois dois gatunos. E que gostam de apostas.
- Sorte, acaso, tudo nas mãos de Lanah... – Felix riu, olhando para os céus – faça sua aposta, nós cobriremos.
Um desafio. Aneleh sorriu. Na planície os arqueiros centauros perfilaram-se de frente para o alvo, aguardando o início da prova. Todos estavam compenetrados, aljava carregada em suas costas, flecha preparada no cordão de seus arcos, prontos para atingir a mira perfeita. A platéia ovacionava ao longe. O centauro negro, vencedor da corrida, respirava devagar, recobrando suas forças, com a coroa de narcisos refulgindo em sua cabeça. Ele não seria o primeiro a atirar e parecia estar grato por isso. Outros centauros já estavam prontos.
- Certo. Vês o centauro ruivo, aquele mais próximo daqui? Talvez uns setenta, sessenta e cinco metros. Ele será o primeiro a atirar, e eu acertarei daqui com meu arco a sua flecha. Valendo cinco cobres.
- O quê? Vai acertar a flecha do centauro com esse seu arco curto? Essas flechas são mais rápidas que o som. Isso é proeza para um gênio ou...Ou um avatar. Não consegue isso não, elfinha. Não sem magia.
- Cinco cobres? – insistiu Aneleh – Ande logo, já vai começar o torneio.
- Cinco cobres. – disse Felix – vou ganhar dinheiro hoje.
Tchad soltou um resmungo. Fora limpo pela última aposta com Felix, e agora nem poderia participar desta. Também duvidava que a elfa fosse capaz de tal feito, mas com um elfo, nunca se sabe. Adoraria ver o Felix tomar uma lição.
- Nem no seu sonho mais desvairado... – resmungou Felix.
Aneleh se posicionou no galho e fez mira. Na planície, o centauro disparou. A flecha de Aneleh saiu zunindo em sua direção...Os dois ladrões fixaram o olhar em feroz expectativa. De fato, a flecha atingiu o alvo, cravou-se certeira na aljava de couro de búfalo do centauro, que deu um salto, assombrado por ter disparado uma flecha e ela cravar-se atrás de si. Os outros centauros riram e relincharam, rolando na relva, até perceber que a flecha dele havia atingido o centro do alvo, e aquela era outra.
- Bem, acho que o Sr. Duende me deve cinco cobres.
- Hey, isso não está certo. Você disse que acertaria a flecha do centauro ruivo.
- E acertei. Sua aljava está abarrotada de flechas, ou achas que eu me referia a flecha que ele disparou?
Tchad começou a rir. Aneleh também. Felix ficou vermelho, de seus olhos saía um olhar mortífero. Sua mão agarrou o cabo de seu espadim. Por fim ele deu de ombros, relaxou o punho e sorriu.
- Cinco cobres – ele estendeu as cinco moedas para Aneleh, que as pegou triunfante. Era realmente estranho um duende aceitar ser tapeado assim tão facilmente. Geralmente eles discutiam dias a fio. Esse ao menos tinha senso de humor.
- Aquele centauro ruivo está cravado pela sorte – disse Tchad, rindo ainda – pelo visto ganhou a competição.
- No entanto é melhor irmos, nossa goiabeira já chamou atenção demais e os pobres coitados querem celebrar a vida em paz. Qwert Poiuy Asdfg. – disse Aneleh
- Para onde?
- Ora, para Elanorel. No anoitecer de amanhã terá um banquete em Elanorel e eu não perco isso por nada nesse mundo. – Aneleh desceu agilmente da árvore e começou a acenar para eles. Eles se entreolharam.
- Vamos? – disse Tchad.
- A elfa falou banquete – disse Felix – isso quer dizer...COMIDA!!!
Os dois desceram apressados da árvore e seguiram Aneleh em direção à estrada que cortava a floresta.
 
CONTINUANDO...

A entrada da floresta de Keltrin era densa e um pouco sombria. As árvores eram altas, com copas espessas que se tocavam, filtrando a passagem do sol escaldante daquela época do ano, antes das nuvens de Aniliz tomarem conta dos céus. No chão, folhas caídas e uma gramínea rala formavam um tapete verde. De um lado para o outro, esquilos pulavam rapidamente, temendo ser pegos por uma raposa de passagem. Ao longe uma revoada de quero-queros alçava vôo, soltando seus pios meio guinchados. Flores silvestres, pequenas e peroladas, apareciam aqui e ali, mas não muitas nem muito próximas umas das outras. Os elfos de Keltrin eram com razão chamados de elfos das folhas. Aneleh parecia camuflada com sua capa verde-amarronzada que ocultava seu arco, sua adaga e sua lira, presos em um cinto trançado. Ela andava suavemente pela estrada de terra, sem deixar rastros. Menos confortável estava Felix, com seu mocassim bicudo, cuja sola, própria para andar silenciosamente por entre telhados e salas escuras, era muito fina para aliviar as pedras pontiagudas que apareciam pelo caminho. Ele se sentia cansado e com fome, e começava a considerar se havia sido realmente uma boa idéia acompanhar a elfa mata adentro. Tchad estava mais bem calçado, com suas sandálias de couro. Fitava o volver do cabelo cacheado de Aneleh, castanho como a terra viva, e que parecia em cada mecha esconder um segredo infindável. Ela era talvez a elfa mais bela que ele já tinha visto, e ele repassava todas as suas fórmulas de cortesia e sedução imaginando qual seria a melhor que ele poderia usar com Aneleh. Ora, pois ele era Tchad, Tchad Trevian, o maior e mais cortês de todos os ladrões de Turia, pelos quais as donzelas suspiravam em seus quartos, esperando arfantes por sua visita. Mais do que roubar suas casas, ele roubava seus corações. Os costumes dos elfos eram diferentes, e provavelmente não era Aneleh uma donzela, portanto ele tinha que ser mais preciso. Podia apostar consigo mesmo que em três dias, talvez dois, ela estaria suspirando em seus braços, numa luxuriosa noite de prazer. E é claro, ele jamais poderia resistir a uma aposta.
Andaram por cerca de seis horas quando Aneleh subitamente parou. Tchad e Felix pararam também, entreolhando-se. Aneleh cheirou a brisa e sorriu:
- Estamos na fronteira, bem vindos ao meu lar, o Reino de Keltrin. O sol se despede de nós com seus derradeiros raios vermelhos, e os pássaros voltam para os seus ninhos. Se prosseguirmos durante a noite, antes do raiar do dia estaremos em casa de meus parentes, porém, podemos acampar aqui se vossas aventuras diurnas foram demais para vossas resistências. – Aneleh riu um riso alegre.
- Eu ficaria muito grato em descansarmos, minha dama, pois há três noites não dormimos, achando nosso caminho desde Mercado através de Herak – Tchad se jogou na relva e largou sua mochila. Acabara de constatar que estava lidando com uma barda. Isso poderia ser útil aos seus planos. Precisava de sossego para pensar e traçar seu plano de ataque. Murmurou uma prece meio incrédula à Winal e à deusa do amor, Wenji. Sem dúvida era o seu maior sacerdote, mesmo sem ter as devoções e os votos de um clérigo ordenado. Quem em toda Malin despertava mais amor?
- Pois então levante, seu folgado – Felix deu um chute em Tchad – vá recolher lenha antes que anoiteça de vez, ou você quer tatear no escuro nessa floresta cheia de insetos fedidos?
Tchad levantou-se, fez uma reverência para Aneleh e se meteu mato adentro. Longe daquele duende avoado seria mais fácil pensar. Felix recostou-se a uma árvore e começou a revirar sua mochila de viagem. Não encontrando o que procurava, começou a mexer na de Tchad. De súbito, soltou um grito agudo e começou a praguejar:
- Maldito seja aquele ladrão de uma figa! Ai, meu dedo, que porcaria.
Aneleh aproximou-se e viu que o dedo do duende gotejava sangue verde escuro. Despontando pra fora da mochila de Tchad, uma pequena lâmina brilhava. Uma armadilha clássica. Felix arrancou uma pequena tira de couro de um rolo e amarrou o dedo, estancando o corte.
- Esse é o meu garoto – disse, então – a lâmina estava escondida no fecho interno...Quem diria. Tchad é o melhor aprendiz que eu já tive...Nunca pensei que teria que checar a mochila dele atrás de armadilhas. Ele me paga.
- Como se conhecestes? – perguntou Aneleh, sentada em uma pedra.
- Na prisão, ora. Ladrão de verdade sempre pára lá uma vez na vida. Os ruins não saem vivos, os bons não demoram muito a sair. Nós tínhamos objetivos parecidos, eu queria roubar as jóias da coroa, Tchad queria roubar a princesa. Seria o meu grande golpe se ele não tivesse escolhido o mesmo dia que eu para executar o serviço. Dois roubos no mesmo dia não passam despercebidos pela guarda do castelo, e nós acabamos parando na masmorra. Tchad, é lógico, ficou contente com isso, mas eu queria trucidá-lo ali mesmo.
- Contente?
- É, ele tinha negociado com um dragão, veja bem, um dragão. Humano lunático. Ele ia entregar a princesa para o bicho em troca de um décimo da pilha do dragão. Bom, ao invés de retirá-la do castelo rapidamente, ele resolveu seduzi-la. Isso chamou a atenção dos guardas. Enquanto os dois fugiam, eu estava na sala do trono roubando o cetro real. Nós trombamos e os guardas nos pegaram. Como o dragão ficou sem princesa, ele sobrevoou e botou fogo em meia cidade. Nós fugimos na confusão.
- Existem poucos dragões aqui no ocidente...Fico pensando quem será esse dragão – Aneleh levantou os olhos – há muito tempo, nosso povo tinha amizade com eles, mas agora, o contato é pouco. E nem sempre pacífico. Aliás, acho muito estranho que seu amigo tenha conseguido se aproximar de um deles sem ser devorado ou queimado.
- Fácil – disse Tchad, voltando com uma pilha de galhos – eu me disfarcei de ovo.
Aneleh caiu na risada.
- Ovo?
- É, um gnomo tinha me “emprestado” umas bombas de fumaça que deixam quem cheira meio confuso, meio amalucado. Soltei um monte no covil do dragão e depois entrei embaixo de uma casca de ovo rachada e me aproximei. O dragão foi muito simpático, até me fez umas charadas...
- Tu drogaste o dragão? – Aneleh riu, espantada – quanta fumaça tu usaste...
- Não sei, uns trinta quilos de bomba.
- Por Traptrickia! Daria para vencer uma guerra com isso. Como é que tu arrumaste tanta bomba? São artefatos raros, caros...
- Isso é outra história – disse Tchad. Ele tinha acabado de arrumar um jeito de conquistar Aneleh. Pelo seu tom de voz, sentira que ela adorava histórias, e ele tinha um monte, é claro, uma mais exagerada que a outra. Qual seria o melhor jeito de contar a ela, como Tchad, o incrível, tinha invadido o depósito do gnomo, que tinha trabalhado durante anos para acumular bombas suficientes para adormecer a guarda e livrar seu irmão da prisão...Não, teria que omitir esse detalhe. Aneleh não poderia ficar com dó do gnomo, mesmo que no final o plano dele tenha dado certo, já que todos os prisioneiros do rei tinham fugido e libertado aqueles que estavam acorrentados, enquanto o dragão punha a cidade em chamas. Claro! A história teria que ser contada por Tchad, o herói que libertou os oprimidos. Continuou então – foi assim...
- Não foi assim de jeito algum, Tchad – disse Felix – nem escute, elfa, porque ele só vai ficar contanto vantagem. Vamos comer logo de uma vez...Deixe-me ver, frutas e carne seca, pão...Pelos deuses, como isso está duro! – ele arremessou o pão para trás.
- Ei, essa é a minha mochila! – disse Tchad – vá revirar a sua comida. – tomou a mochila das mãos do duende. – Uhn, pelo seu dedo enfaixado vejo que você caiu na minha pequena armadilha...
- Ingrato! Aposto que o meu pão está mais duro que o seu...
Os olhos de Tchad brilharam:
- Quanto? Eu estou sem dinheiro...
- Quem perder vai ter que comer o pão – disse Felix – aceita?
Os dois se levantaram em desafio. Aneleh riu. Tinha seguido viagem com dois malucos. A noite estava quase totalmente formada e logo não haveria luz senão as das luas. Bom, ela mesma teria que fazer a fogueira. Cantarolando começou a arrumar a lenha enquanto os dois discutiam como eles iam medir a dureza do pão.
- E se a gente os amarrasse na testa e desse uma cabeçada um no outro?
- Não, e se cada um escolhesse uma árvore e ficasse atirando o pão nela, até ele se destruir ou a árvore cair? Aquele pão que durar mais tempo ganha.
- Nada disso – disse Aneleh - nada de ficar batucando nas árvores. Muitas delas tem habitantes mais antigos que o primeiro dos humanos. Fazei-vos assim, ponhais o pão em cima daquela pedra onde eu estava sentada. Depois mirai e flechai, aquele que for mais perfurado pela flecha é o mais mole. Embora, do jeito que esses pães estão, é possível que a flecha ricocheteie. Quereis meu arco?
- Não, eu tenho um.
Aneleh virou de costas para eles e voltou a dar atenção para a fogueira. Estava sem a sua pederneira, já que não tinha pretendido sair em viagem. Teria que acendê-la usando magia. Os dois estavam entretidos demais mesmo para perceber. Aneleh começou a cantarolar baixinho, tecendo a trama da realidade com sua melodia, logo uma fumaça violeta começou a subir e a lenha crepitou. Três das luas já eram visíveis no céu azul escuro, coroado pelas estrelas de Kalimakr. O pio dos pássaros se silenciava na copa das árvores e o mundo repousava em seu sono escuro. Estava tudo tão tranqüilo...De súbito, a floresta inteira ouviu um berro seguido de uma risada debochada.
- Pelos deuses, Tchad, onde foi que você arrumou esse negócio?!? Esse pão é mais duro que a cabeça de um troll. A elfa tinha razão em não deixar você bater com isso na árvore, porque derrubaria o tronco de uma vez.
- Pode comer Felix, hoje não é mesmo seu dia. – Tchad riu. – Ei, a Aneleh já acendeu o fogo, você pode dar uma tostadela nele.
- Não dá pra comer isso daí, parece pedra.
- Come.
- Não vou comer!
- Não vai pagar a aposta?
- Está certo, quanto você quer? – Felix suspirou, parcialmente resignado.
Tchad hesitou, seria melhor deixá-lo comer o pão, mas ele estava totalmente sem dinheiro e não havia ninguém por perto para ele roubar, exceto Aneleh. No entanto ele queria outra coisa dela, ao menos por agora.
- Está certo, seu covarde, devolva-me os dez cobres da aposta. Você ainda está com a sineta do centauro? Não, pode ficar. Mas me dá o meu dinheiro. E olha que isso é um favor pra você.
Felix grunhiu, mas deu o dinheiro a Tchad. Antes do raiar do dia ele teria esse dinheiro de volta, bem como o dinheiro que Aneleh tomara dele. O fogo estava aceso. Como um duende que era ele podia muito claramente sentir o cheiro da magia no ar vindo de Aneleh, e como mago sabia que ali havia muito poder latente. Aneleh era uma barda, isso estava mais do que claro. Era raro um elfo tão jovem como ela atingir esse status, ou seja, ela devia ser uma alta elfa. Filha de nobres, provavelmente. E mesmo assim tinha infringido a proibição dos centauros indo espiar a sua festa. Isso realmente não estava cheirando bem...Seria ela uma renegada? Mas ela estava voltando para Keltrin.
- Diga, elfa – disse desconfiado – por que nos chamou para acompanhá-la para Keltrin?
- Fácil, os dois têm muitas histórias pra contar e, além disso, não são essencialmente maus. Isso não é muito comum nos tempos conturbados de ultimamente. Além disso, vós subistes em minha goiabeira, dentre todas as árvores da orla da floresta. Isto indica destino, tu mesmo citaste Lanah, deusa do destino.
- Coincidência, acaso, sorte, essa face de Lanah eu citei. Um duende não acredita em destino, ele o faz.
-Pode ser, mas, sendo assim, porque me seguiste?
- Ora, banquete, comida, festa...- Felix riu seu riso sibilante.
- Bom, por falar em comida, vamos comer. – disse Tchad – não tenho nada a não ser carne seca e umas frutas que eu catei por aí...Felix pelo jeito não tem nada e não devia comer nada, já que não comeu o pão.
- Eu tenho bolo para nós três – disse Aneleh – geralmente isso me basta, mas faz dias que eu não como carne.
- Fique à vontade.
Os três se sentaram em volta da fogueira. Aneleh abriu um pequeno odre com vinho e eles comeram e beberam até se fartar. Era a hora das corujas, que vigiavam o grupo com olhos atentos. A Grande Lua estava cheia no céu, iluminando com seu brilho prateado a borda das folhas, refletindo no sereno. A Lua Enevoada estava minguando lentamente, parecendo uma lasca de unha no céu, rindo de lado. A Lua Vermelha estava meia-lua, exatamente no centro do céu. Ela girava mais rapidamente que as outras, e pelo seu ciclo se contava a passagem do tempo em meses. A Lua Verdejante, a menor das quatro que podiam ser avistadas nessa noite, também estava quase cheia, e brilhava palidamente, quase como uma estrela distante. Dizia-se que a influência dessas luas fazia os mares serem tão revoltosos, mas Atla, deus das águas, lutava diariamente contra a força das luas, deixando apenas com que a Lua Azul, invisível esta noite, governasse as águas, já que lá o próprio Atla morava.
Essa era uma noite especialmente bela e Aneleh, refletindo o luar em seus olhos, tomou da lira e começou a tocar e cantar:

Lua, poder secreto de toda terra
Lua, que no manto azul desse céu erra
Lua, lar de todos deuses, dos meus anseios
Lua, com este canto eu te homenageio

Noite, fonte das trevas, da solidão
Noite, que povoa, acalenta vastidão
Noite, mar estrelado, sacro, profano
Noite, com este canto eu te conclamo

Vida, luta incansável, serena e bela
Vida, força que vibra, que cria e cancela
Vida, roda infinita, ardor sem igual
É seu dia, canto e te chamo, vida Winal

- Bela melodia, bela balada. Tudo a seu respeito é belo – disse Tchad melodiosamente.
- Lembrei-me dela por causa do luar, é uma canção popular de Devaneio, tem a métrica quase perfeita na tradução. As canções élficas não têm esse tipo de preocupação. Estranho, agora não me ocorre nenhuma que se encaixe. Deve ser o vinho. Quereis cantar alguma, Tchad? Felix?
- Não – disse Felix – não são muitos os que apreciam o timbre sibilante de minha raça.
- E quanto a mim – disse Tchad – só conheço canções de taverna, que não devem ser cantadas na presença de damas.
Os três riram. Aneleh começou a dedilhar algumas notas e depois parou para ajustar as cordas. Felix resolveu não esperar pela próxima canção. Sem nem ao menos decidir se alguém ficaria de guarda a noite, ele se atirou na relva e dormiu.
 
MAIS UMA PARTE....(brigada pelo elogio, Mith)

Tchad e Aneleh se olharam por um momento. Tchad se aproximou devagar. Aneleh fingiu não perceber e começou a contemplar o crepitar da fogueira.
- Linda noite... - disse ele.
- É...
- Tem feras nessa floresta?
- Texugos, raposas, corujas, mas ao norte há panteras e na fronteira com o leste de Turia, monstros de pântano e jacarés. Mas nada muito perigoso. Essa floresta é lar dos elfos a milhares de anos.
- Então ninguém precisa ficar vigiando...
- Não...
Aneleh subitamente tinha ficado calada, com um olhar preocupado. Ela olhava o norte, em direção a Elanorel. Tchad sabia onde era, mas nunca tinha percorrido o reino élfico antes. Sabia que Elanorel era uma pequena vila arborícola, que vivia da pesca e no trabalho em pérola no rio Keltrin. Mas os elfos das folhas eram misteriosos. Governados por altos elfos...Ninguém sabia direito o que queria dizer alto elfo, mas eles eram diferentes de qualquer criatura na face de Malin, diáfanos, sábios e misteriosos. Não todos os elfos podiam ser altos elfos, e não todos queriam. Aneleh, sem dúvida, embora elfa das folhas, como todos os elfos de Keltrin, não era uma alta elfa. Era bem jovem ainda, e estranhamente já era uma barda, um posto concedido a poucos. Será que ela detinha poderes mágicos? Ou era apenas uma menestrel, e Tchad a estava superestimando?
De qualquer forma Aneleh detinha a magia feminina do encantar...Fazia tempo que uma mulher não chamava tanto a sua atenção. Não que ele estivesse apaixonado, é claro. Tchad, o sedutor, não se apaixona, deixa as outras apaixonadas. Ama o amor, não as amantes. Percebeu que Aneleh o olhava com o canto dos olhos, enquanto cantarolava baixinho. Era a hora de quebrar o gelo.
- Então, Aneleh, o que faz por aqui? Que tipo de vida você leva?
- Um tipo mais honesto que a tua vida – Aneleh sorriu – nas aldeias de Keltrin há uma certa divisão de tarefas, mas poucos são aqueles que realmente tem uma profissão. Eu viajo de um lado para o outro, há anos não tenho um lar fixo, caço quando meu suprimento acaba, e muitas árvores da floresta dão frutos. Dificilmente saio de Keltrin, e às vezes visito as aldeias. Quando há problemas na mata, como a invasão de homens-sapos há dez invernos atrás, eu e os que levam vida como a minha, somos responsáveis por dar o alerta. Meu clã é um dos maiores e tenho parentes até em Endymildas.
- Não sabia que os elfos das folhas eram aparentados aos elfos azuis.
- Não o são, mas tenho parentes que se mudaram para lá, a fim de estabelecer contato. São como embaixadores.
- Ahn...E esse banquete que irá acontecer em Elanorel? É em homenagem a Winal, às chuvas, ou o que?
- Tu deves saber. São raras as celebrações aos deuses na época das chuvas. Aniliz, deusa das tempestades, não gosta muito disso. Não é esse motivo – Aneleh deu um riso maroto – não precisas se preocupar, não serás o prato principal desse banquete. Tu já vais saber o porque dele.
- Está certo, eu não vou ser o prato principal...Mas eu posso ser um tira-gosto?
- Não, tu és muito magro para dar um bom prato.
- Nem o seu tira-gosto? – Tchad olhou fixo para Aneleh
Aneleh fixou o olhar de Tchad. Ele parecia encantadoramente atraído. Aneleh considerou se seria uma diversão ou um momento romântico.
- Deveras romântica a tua trova...
- O romance a gente não cria com vãs palavras. O mundo o cria para nós. Ele está no aroma da brisa, no brilho do luar, na chama de nossos corpos... – Tchad aproximou-se ainda mais, e ergueu suavemente a mão para tocar o rosto de Aneleh.
- A face fértil de Winal age em ti – Aneleh sorriu e segurou a sua mão, baixando-a suavemente – mas esse não é o momento apropriado para isso. – olhou Felix, que ressonava ao lado - Vem comigo.

Eles andaram um pouco no escuro, o terreno já começava a subir, para dar lugar, quilômetros além, às Serranias de Fogo, que já despontavam sombrias ao longe. As luas refletiam seu brilho nos fungos vermelhos que cresciam em toda a serra, formando uma muralha de fogo que separava o continente do Mar das Tormentas. Serranias de Fogo é o que ela era, com tesouros em suas entranhas, como ouro e jaspe vermelho, pedra consagrada a Atanaresch, deus do fogo. Uma das maiores frustrações dos anões é não terem conseguido, pelas negociações ou pela força, instalarem uma colônia de mineração lá, já que em terra dos centauros estrangeiro algum era bem vindo, e o mato se tornava muito denso nela em Keltrin, onde os elfos guardavam as colinas com um preciosismo sem igual.
Devia ser quase o meio da noite. Afora o zumbido constante dos insetos, não se ouvia nada além do murmúrio do vento nas árvores. Tchad respirava devagar, de prontidão para o momento certo de agir. Aneleh esta olhando para noroeste, novamente em direção à Elanorel. E novamente tinha a expressão estranhamente introspectiva.
- Há algo estranho no ar, no vento. – disse ela, devagar.
- Algo como o quê? – Tchad fitou-a, em dúvida.
- Opressão. Quando deixei Keltrin, na manhã de ontem, senti a mesma coisa neste lugar, mas de maneira mais suave. Há algo se aproximando pelas águas do rio Bramirel.
- Não há o que temer – disse Tchad, suavemente – pois você tem a mim para escoltá-la.
Aneleh sorriu para Tchad, ocultando dele sua preocupação. Keltrin era o espelho do reino do Horizonte, onde outrora os elfos moravam como os guardiões dos sonhos do mundo, antes do surgimento de Derrunnya e do primeiro pesadelo. O pesadelo estaria também transcendendo o Horizonte e se apoderando do mundo mortal? De súbito, o céu começou a escurecer, e o brilho das luas se refletiu por instante nas nuvens que se formavam, antes de se ocultar totalmente. Um trovão estalou ao longe. Aneleh e Tchad se aproximaram lentamente. Então, num raio, Aneleh deu um beijo em Tchad e saiu correndo, e a chuva despencou como uma cortina gelada. Tchad correu, tentando alcançar Aneleh, mas não via nada além de escuridão e não ouvia nada mais que seus gritos e a tempestade. Tropeçando na floresta, ele enfim conseguiu chegar ao acampamento, onde Felix tentava sem sucesso armar uma barraca. Não havia sinal de Aneleh.
Depois de muita labuta, Felix e Tchad conseguiram armar parcamente a barraca e se abrigar da chuva. Suas roupas e mochilas estavam encharcadas, e a pouca comida que sobrara se fora. Apesar disso o fogo crepitava na fogueira, numa tonalidade esverdeada. Nesse momento Felix teve certeza da magia que Aneleh utilizara, cujo domínio costumava ser restrito aos humanos. Mais uma coisa estranha a respeito da elfa. Tchad dormiu com um sorriso nos lábios, já que as suas táticas de sedução estavam engrenando. Aneleh queria fazer o jogo difícil com ele, pois então assim seria. Será que fora ela que invocara a tempestade? Isso ele não sabia dizer.
 
MAIS ANELEH...

Amanheceu e a chuva deu lugar ao sol, que trazia as novidades do leste. Os dois se levantaram e recolheram o acampamento. Aneleh dormia deitada na relva, com o cabelo quase preto por causa da água, brilhando. Sua respiração era serena, o ar saia de seus pulmões com tanta suavidade que poderia ser confundido com a brisa. Ao seu lado, encostada a uma árvore, estava a sua lira, protegida da chuva. A luz do sol nascente se refletia de uma maneira especial no orvalho na grama, proporcionando um momento de luz.
- Ela dormiu debaixo da chuva? – sussurrou Felix, arregalando uma de suas sobrancelhas.
Tchad não respondeu. Reclinou-se suavemente ao lado de Aneleh e beijou-lhe os lábios com sofreguidão. Os olhos de Aneleh se abriram e se fecharam novamente, enquanto ela se erguia devagar. Depois, afastou-se e sorriu.
- O sol estará alto no céu quando chegarmos a Elanorel. Vamos...

A floresta ganhava uma tonalidade acobreada conforme avançavam pela estrada, graças à cor dos troncos largos das árvores, e formando um belo contraste com o branco perolado das pequenas flores rasteiras. Na orla da estrada acumulavam-se moitas de um verde muito vivo, com densos agrupamentos de flores, semelhantes a hortênsias, mas vermelhas e de pétalas pontudas. A chuva tinha feito essas flores exalarem um perfume forte, não de todo agradável para Tchad e terrível para Felix. Imediatamente ele começou a resmungar, sibilando baixo na língua dos duendes. Eles andavam lado a lado agora, como se os flancos precisassem de mais proteção do que a retaguarda, mas nenhum deles parecia realmente se preocupar com ataques. Aneleh estava com o olhar preocupado, pois havia visto algo que obviamente Tchad não vira na noite anterior...Pegadas. Pequenas demais para serem de orc, mas cujo formato lhe era familiar. Assim que ela as percebeu, a tempestade começou. Depois de se assegurar que o humano, desacostumado com Keltrin, estivesse em segurança, ela tinha saído para investigar, mas a chuva lhe embotara a visão e a audição. Esperaria até depois do banquete em Elanorel para averiguar isso.
- Qual é o nome dessas árvores de tronco vermelho? – disse Tchad, subitamente.
- Imagin – Aneleh sorriu – é usada para fazer tintas carmim e suas folhas verdes têm propriedades medicinais. Mas eu não conheço o suficiente sobre esses assuntos...
- Uhn, e há quem diga que todos os elfos são grandes herbalistas – disse Felix, zombando – essa região é chamada de Kawedjnill pelos elfos, que pelo que eu sei significa Rubro Verdejante. Você reparou que tudo o que vêm dos elfos é vermelho? O vinho de Gynill, a tinta de Kawedjnill...
- O sangue que verte das lâminas élficas depois de um combate com orcs é verde. Esse sangue derramado é legitima produção dos elfos. – disse Aneleh, rindo da colocação estapafúrdia de Felix.
- Grikmash, a terra dos orcs, fica muito a oeste daqui, no além mar. Aposto que fazem algumas décadas que não se vê um orc por aqui.
- Existem orcs montanheses no sul das Serranias de Fogo, e às vezes eles atacam Herak no inverno, quando o cabrito montês escasseia e há fome na região. Alguns chegaram escondidos até o norte e causaram confusão nas fronteiras, há trinta invernos passados.
Continuaram andando e conversando, com os troncos vermelhos das árvores tomando o aspecto de uma muralha cujo teto arqueado tocava no verde das outras árvores. O sul de Keltrin era uma terra assombreada, cujo contraste com os campos ensolarados de Herak era gritante. Podiam avistar esquilos nas árvores e raposas caçando coelhos. Um urso pardo de pêlo curto cortou a estrada sem dar atenção a eles.
- Ainda bem – disse Felix – um urso desse tamanho seria uma parada indigesta para nós, mesmo que sua carne seja muito boa.
- Eles não costumam se aproximar muito da aldeia, e só atacam para comer ou quando se assustam.
Oito horas e meia se passaram desde o amanhecer. Faixas iluminadas de luz venciam a copa das árvores e faziam as partículas de poeira do ar brilharem. Não havia sinal de brisa ou de nuvens da chuva da noite anterior. Finalmente, podia-se avistar uma paliçada erguida há uns cinqüenta metros da estrada. Um portão dourado estava entreaberto, deixando passar sons alegres e cheiros convidativos. Felix subitamente se animou, pois o assado que estava sendo feito lá tinha um apelo irresistível. Com suas perninhas curtas de duende ele começou a andar na frente dos outros, quase correndo.
- O baixinho está com fome – riu Tchad
- Mas se o que ele quer é o assado, vai ter que esperar até o anoitecer. Nós não temos o hábito de comer carne de dia. Especialmente quando um banquete à luz das estrelas nos aguarda. Mas se vós quereis comida, há uma pequena estalagem que deve ter cerveja escura e pão.
 
SE ALGUÉM AINDA LÊ ISSO AQUI...=/

Eles transpuseram o portão com certa ansiedade e a visão da paliçada deu lugar às cores da grande fogueira que crepitava no centro da lareira, com mesas em volta. Um enorme pedaço de carne estava sendo preparado por duas elfas, e coberto por ervas cheirosas. Dele escorria um líquido avermelhado, que soltava um cheiro divino ao tocar no fogo logo embaixo. Havia, em volta da praça, umas poucas choupanas, feitas com ramos trançados e um material translúcido, como enormes vitrais. O teto era de palha acobreada, espessa o suficiente para proteger da chuva. Entre os ramos das árvores, havia diversas outras casas no mesmo estilo, com balaustradas reluzentes e pontezinhas de corda ligando-as graciosamente. Não havia mais de cinqüenta habitações no total. No chão, aparentemente apenas oito. Entre essas, duas eram maiores, uma circular e a outra quadrada. Na porta dupla de entrada da choupana quadrada havia uma tabuleta balançando com a brisa, onde dizia “Para quem gostar” em diversas línguas. Sentado à porta, estava um elfo vigoroso, de longos cabelos louros, lixando uma espada longa. Quando Aneleh o viu, abriu um sorriso de borboleta, e correu ao seu encontro. Ele levantou a cabeça, embainhou a espada, e pondo-se de pé, fez uma reverência cortês.
- Saudações, Aneleh do clã Adingankar, é uma benção poder contemplar novamente o brilho do teu olhar...Tu vieste da borda sul?
- Saudações Glorin, mestre de armas do clã Guerbalin, querido amigo – disse Aneleh, saudando-o à maneira dos elfos – sim, vim de Herak e trouxe dois amigos. Estes são Tchad Trevian e Felix Matreiro, Mago da Luz.
Os dois acenaram, Felix achando aquela pomposidade ridícula e Tchad sentindo um inconfessável ciúme de Aneleh. O elfo parecia dono da situação. Pouquíssimas vezes um outro chamava mais a atenção das damas do que Tchad, e esse outro costumava ser prontamente humilhado. Dessa vez eles não estavam em uma taverna e Tchad teria que fazer isso sem ofender as regras de hospitalidade. Durante o banquete seria uma boa ocasião. Ele teria ainda quase seis horas antes do sol se pôr para articular isso com cuidado.
- Veremos – murmurou Tchad, entre os dentes.
- Tchad, Felix – disse Aneleh, interrompendo suas divagações – preciso ir ter com os Senhores de Elanorel. Aqui na estalagem há camas limpas e uma piscina natural para limpar a poeira da viagem. Descanseis e comais a vontade. Eu voltarei antes do pôr do sol.
Aneleh virou as costas com o braço nos ombros de Glorin, conversando animadamente. Tchad e Felix se entreolharam, escutando algo sobre a partida de noite:
- Partida? Terão jogos acontecendo durante o banquete? – perguntou Tchad
- Não sei, os poucos elfos que eu conheci bem sabiam jogos humanos, mas nunca falaram sobre jogos élficos. Só espero que seja algo emocionante, e que as apostas estejam boas. Tenho quinze cobres aqui coçando por uma aposta.
- E eu tenho os dez que você me devolv... – Tchad começou a revirar a algibeira.
Felix o empurrou pra dentro da estalagem: - Venha, vou lhe pagar uma cerveja élfica. Fraquinha, mas não te deixa com dores de cabeça no outro dia. – Se dependesse de Felix, Tchad não perceberia tão cedo onde seu dinheiro havia parado.

A estalagem era ao mesmo rústica e elaborada. Na parede oeste havia um grande tronco em volta do qual se fizera a construção. O chão era de basalto irregular, com pedras semipreciosas incrustadas. Penduradas nas vigas próximas ao teto, teias e teias de fios com pérolas formavam um dossel. Havia apenas quatro mesas circulares, feitas de troncos maciços de árvores, formando anéis castanhos e acobreados na superfície onde odres rústicos de barro estavam junto a taças ricamente trabalhadas em prata. Uma porta arqueada, coberta por uma cortina de fios de pérola, levava a um pátio central onde havia mais mesas e no centro um pequeno laguinho alimentado por um córrego. Havia um balcão onde um elfo parecia ocupar-se selecionando os vinhos e os tira-gostos que seriam servidos no banquete. Talvez em virtude desse não havia nenhum cliente, mesmo perto do meio do dia, hora tradicional de almoço. Ao menos para os humanos.
- Saudações, Mestre da Taverna – disse Tchad, imitando a pomposidade de Glorin.
O elfo, esfregando com um lenço uma taça, sorriu:
- Vejam só, um humano, certamente vindo de Turia, e um duende...Quereis beber algo?
- Ah, duas canecas da velha cerveja élfica viriam bem pra limpar a poeira da estrada! – disse Felix, acomodando-se num banco em frente ao balcão.
- E mais duas pra mim – disse Tchad, rindo – ou você acha, seu duende baixinho, que só uma me bastaria?
- Ótimo, então você que pague! – Felix riu por dentro, já imaginando Tchad tendo que lavar pratos para pagar a conta.
O estalajadeiro trouxe as duas canecas, enchidas em um barril ali perto. A espuma alva escorria pelas bordas, trazendo um aroma delicioso de cevada. Os dois ladrões ergueram as canecas e bradaram:
- Para os céus! - erguendo-as, - para o solo! - batendo a caneca no balcão, - para a força! -chocando as duas canecas - e para mim! – virando-as goela abaixo.
O estalajadeiro riu – É assim que vós consagrais a bebida aos quatro elementos? Os menestréis sempre compõem trovas sobre a capacidade humana de se embebedar...
- Diga lá, Mestre da Taverna! Pra que os elfos vão fazer um banquete? – disse Tchad, limpando a boca com a manga.
- Vais participar de um banquete e nem sabes a sua razão? Pois não serei eu a estragar a surpresa...Só mesmo Aneleh Adingankar para trazê-los até aqui hoje...
 
LÁ VAI MAIS

Enquanto os três discutiam animadamente dentro da estalagem, Aneleh se inteirava das novidades de Elanorel com Glorin. Eles estavam sentados numa parte mais elevada da clareira, encostados na paliçada, vendo a fogueira no centro. Glorin estava com o braço em torno de Aneleh, preocupado.
- O que há contigo? – perguntou Aneleh.
- Há algo estranho na nossa partida. Como te disse, é uma missão diplomática em Turia. O rei humano tem tido problemas com os homens-lagartos do pântano de Kelfazim e está prejudicando todas as suas relações. É um homem velho, fraco, sem capacidades de sonhar. Foi um grande rei em seu auge, mas não teve a sabedoria de abdicar antes de seu declínio. Turia tornou-se uma corte corrupta, conspiradora. Logo Turia, o reino da honra. Nossa comitiva de embaixadores partirá no meio da noite rumo norte e teremos de cruzar toda Keltrin. Não sei exatamente porque os Senhores não reuniram a comitiva logo em Ilia, que guarda nossa fronteira norte. Na verdade, ouvi rumores de que isso tinha a ver contigo. Sem dúvida tua tia deseja te enviar junto conosco. Tu irás?
- Eu? – disse Aneleh, espantada – A Senhora Killyand está em Elanorel?
- Tua tia Gillyand está a par da vontade da Senhora de Keltrin, Killyand...Ela queria ver-te assim que chegasses aqui. Mas eu não perderia a oportunidade de matar as saudades de ti. Fibryline também queria ver-te.
Aneleh levantou-se devagar: - Leve-me à Senhora de Elanorel.

Os dois desceram a pequena elevação e seguiram em direção a choupana circular. A porta de juncos trançados estava entreaberta, balançando suavemente com a brisa. Lá estava o Trono de Mogno da Senhora e o Trono de Carvalho do Senhor de Elanorel. Os dois Senhores, graves como são as folhas no outono, estavam sentados, de mãos dadas, conversando com o enviado de Ilia, um elfo de nome Gorethmiel. Pareciam acertar os detalhes da passagem da comitiva por Ilia, além de se informar das últimas notícias do norte.
Os dois altos elfos dividiam os governo da pequena cidade. A Senhora era a organizadora da vila e “ministra” do interior, enquanto o Senhor era o grão-mestre das armas e “ministro” do exterior. Pelas leis dos elfos, os Senhores não precisavam necessariamente estar casados, mas Gillyand e Lingon já partilhavam da vida conjugal há mais de trezentos anos, ocasião na qual fundaram a pequena vila de Elanorel. Gillyand; Killyand, a Senhora de Gynnil e de toda Keltrin; e Fillyand, a Senhora de Kimeniluis, eram irmãs treinadas desde o nascimento para essa função e a exerciam em consonância umas com as outras. Apenas Ilia, ao norte, tinha uma Senhora de outro clã, Kalinda do clã Anteris.
Ao entrarem na choupana, Aneleh e Glorin fizeram um gesto de saudação e se aproximaram. Gillyand e Lingon abriram um sorriso afetuoso e disseram:
- Seja bem vinda, Aneleh Adingankar.
- Saudações tia...Senhor...Gorethmiel de Ilia. Há dois verões eu não entrava nesta aldeia, a que me é mais cara no mundo.
A Senhora levantou-se e deu um abraço longo na sobrinha. Glorin sorriu, pois não tinha certeza da recepção que Aneleh teria na aldeia. Aneleh, a eterna criança cheia de artimanhas, fugindo de seu destino e se aventurando pelo mundo. Aneleh que vivia em sua anarquia interior. Aneleh que será a grande alta elfa de todo um milênio. Aneleh que vivia em uma simplicidade ainda mais simples que os elfos de Endymildas. Ser o confidente de Aneleh por tantos anos levara Glorin a uma compreensão muito profunda acerca do mundo interior da jovem elfa, e a amá-la de uma maneira muito peculiar. Aneleh amava a tudo, seus olhos ardiam com esse amor ao contemplar o mundo.Ah, Aneleh...
- Aneleh, quando for o meio da noite a Missão partirá e tu irás com ela, entre os menestréis. Nós estamos preocupados com as incursões de feras pela Serra Azul, como em Turia a chamam. Não sabemos até que proximidade do centro de fogo da terra os humanos estão escavando, e eles vêem esse nosso interesse como cobiça. Precisamos de gente doce para com o rei, e reatar nossa amizade. Enviados nossos falam de uma movimentação invulgar de orcs em Grikmash e nos portos de Mercado. Yodeth ainda não nos mandou mensagem de Rafian Kiru e eu estou preocupado – Lingon calou-se.
- Nós queremos enviar alguém que ele interpretaria como da família real, mas não em posição de destaque – Gillyand continuou – e tu és a mais indicada dentro de nossas possibilidades. Talvez ele nem saiba que és sobrinha da Senhora e tu não irás se identificar como tal a menos que alguém o perceba.
- Estou com hóspedes aqui – simplesmente disse Aneleh.
- Um humano e um duende, Senhora. – disse Glorin, adiantando-se – poderia até ser útil que eles fossem juntos.
- Que seja – disse Lingon, - Aneleh, tu irás?
Aneleh pareceu hesitar por alguns instantes. Glorin suou frio. Então Aneleh sorriu de novo, fez uma reverência rasgada, e disse:
- Mas claro. Turia é meu destino agora. Vamos fazer uma viagem chuvosa através de Kawedjnill, o rio Keltrin, Ilia, rumo norte sempre. Até chegarmos ao centro da Serra Azul e Turia, a monumental cidade dos humanos, onde o céu nunca é azul e a gente acha até mesmo sonhos a venda no mercado.
Aneleh virou-se e saiu correndo e saltitando para fora. Glorin fez uma reverência apressada e foi atrás. Os Senhores entreolharam-se.
 

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