Largo Cavafundo
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[Largo Cavafundo][O Ser Nu]
Bem, aqui está mais um conto que eu escrevi. Ao contrário de Protuberando, este tem uma crítica e mensagem específicos (pelo menos isso
)
Só uma curiosidade: a primeira frase do conto simplesmente 'veio' na minha cabeça uma noite, quando eu abri o armário pra pegar minhas roupas, antes de dormir. E foi daí que veio todo o resto.
Boa leitura!
"
Abriu seu guarda-roupas e deparou-se com um ser. Desejava apenas apanhar uma cueca, uma camisa e calças, que usaria no trabalho naquele dia, mas deparou-se com dois olhos luzidios e esbugalhados barrando a passagem de suas mãos.
- Posso pegar minhas roupas?
- Não.
Foi nu para o trabalho. A normalidade com a qual vivia sua já memorizada rotina repeliu os olhares que a mente humana – considerando uma situação hipotética – pensaria serem de estranhamento. Ver a conjeturadamente censurável nudez do homem na vida real não parecia tão pejorativo. Além do mais, ele tinha uma desculpa. Nenhum de seus colegas se acreditava disposto a discordar do ser que se alojara no armário do qual o pobre nudista costumava retirar suas vestes.
Quando voltou para casa, no fim-da-tarde, tentou dialogar com o ser.
- Posso pegar minhas coisas agora?
- Não. - respondeu o ser, agora vestido com um suéter vermelho-alaranjado e calças de moletom azuis.
- Só algumas, para eu vestir amanhã?
- Não.
- Digo-lhe o seguinte: pego dois conjuntos e nunca te incomodo de novo. Guardo-os no criado-mudo. Só vai me custar umas viagens a mais à casa de mamãe.
- Não. - ouviu, mais uma vez, a voz rouca dizer.
- Por que não?
- Preciso delas para aquecer meus filhotes.
Dormiu nu, acordou nu e foi para o trabalho nu. Parecia justo. Os filhotes do ser certamente tinham mais necessidade do vestuário. Quem era ele para negar-lhes o calor e aconchego de seu guarda-roupas?
No caminho para casa, passou numa loja de departamento e comprou uma camiseta, calças, roupas-de-baixo e um par de meias. Em casa, inadvertidamente, colocou as vestes no guarda-roupas. Só chegou a perceber o deslize quando, ao deitar-se para dormir, ouviu o deleite dos serezinhos com as ainda etiquetadas peças e o cheiro de roupa nova. Grunhiu, baixinho, ao notar a falha, e adormeceu.
Acordou de madrugada, incomodado pelo frio que o vento noturno provocava em seu corpo despido. E foi enquanto ele fechava a janela do quarto que lhe veio a idéia: não haveria o ser de dormir como todos os outros seres? O ser não mais seria.
Foi até a pequena cozinha de seu pequeno apartamento, abriu uma gaveta e pegou um facão. Segurava o cabo, que seria branco não fossem os anos de uso, com o punho nada firme e a sonolência dos que ainda não deixaram de dormir. Andou, decididamente (embora não parecesse), até seu quarto. Pôs-se diante do guarda-roupas, firmou seus pés no chão de madeira e seus de dos em volta do plástico claro. Com a outra mão, abriu a porta do armário de súbito. Levantou a faca (não sabia por quê, mas dava um efeito legal).
Foi impedido de prosseguir com o extermínio pela visão do interior do móvel, agora livre da obstrução causada pelo ser nas outras vezes em que abrira o guarda-roupas nos últimos dias. Sobre seus agasalhos, feitos carinhosamente pela sua mãe, que usava nos invernos mais rigorosos, estavam mínimos serezinhos, encolhidos como se abraçassem seus próprios corpos, enrugadinhos e calmos. Os olhos se remexiam sob as pálpebras, e a respiração constante, que fazia suas barriguinhas encherem e esvaziarem ritmicamente, soava apaziguável em meio ao silêncio que invadia o quarto logo antes da aurora.
Chegou em casa sorrindo, sacolas e caixas debaixo dos braços, após uma deliciosa ceia de Natal na casa de sua mãe. Abriu as caixas que ganhara, todas de roupas, e colocou o conteúdo no guarda-roupas, cobrindo bem o adormecido ser e os serezinhos. E foi dormir, ainda nu.
"
Bem, aqui está mais um conto que eu escrevi. Ao contrário de Protuberando, este tem uma crítica e mensagem específicos (pelo menos isso

Só uma curiosidade: a primeira frase do conto simplesmente 'veio' na minha cabeça uma noite, quando eu abri o armário pra pegar minhas roupas, antes de dormir. E foi daí que veio todo o resto.
Boa leitura!
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Abriu seu guarda-roupas e deparou-se com um ser. Desejava apenas apanhar uma cueca, uma camisa e calças, que usaria no trabalho naquele dia, mas deparou-se com dois olhos luzidios e esbugalhados barrando a passagem de suas mãos.
- Posso pegar minhas roupas?
- Não.
Foi nu para o trabalho. A normalidade com a qual vivia sua já memorizada rotina repeliu os olhares que a mente humana – considerando uma situação hipotética – pensaria serem de estranhamento. Ver a conjeturadamente censurável nudez do homem na vida real não parecia tão pejorativo. Além do mais, ele tinha uma desculpa. Nenhum de seus colegas se acreditava disposto a discordar do ser que se alojara no armário do qual o pobre nudista costumava retirar suas vestes.
Quando voltou para casa, no fim-da-tarde, tentou dialogar com o ser.
- Posso pegar minhas coisas agora?
- Não. - respondeu o ser, agora vestido com um suéter vermelho-alaranjado e calças de moletom azuis.
- Só algumas, para eu vestir amanhã?
- Não.
- Digo-lhe o seguinte: pego dois conjuntos e nunca te incomodo de novo. Guardo-os no criado-mudo. Só vai me custar umas viagens a mais à casa de mamãe.
- Não. - ouviu, mais uma vez, a voz rouca dizer.
- Por que não?
- Preciso delas para aquecer meus filhotes.
Dormiu nu, acordou nu e foi para o trabalho nu. Parecia justo. Os filhotes do ser certamente tinham mais necessidade do vestuário. Quem era ele para negar-lhes o calor e aconchego de seu guarda-roupas?
No caminho para casa, passou numa loja de departamento e comprou uma camiseta, calças, roupas-de-baixo e um par de meias. Em casa, inadvertidamente, colocou as vestes no guarda-roupas. Só chegou a perceber o deslize quando, ao deitar-se para dormir, ouviu o deleite dos serezinhos com as ainda etiquetadas peças e o cheiro de roupa nova. Grunhiu, baixinho, ao notar a falha, e adormeceu.
Acordou de madrugada, incomodado pelo frio que o vento noturno provocava em seu corpo despido. E foi enquanto ele fechava a janela do quarto que lhe veio a idéia: não haveria o ser de dormir como todos os outros seres? O ser não mais seria.
Foi até a pequena cozinha de seu pequeno apartamento, abriu uma gaveta e pegou um facão. Segurava o cabo, que seria branco não fossem os anos de uso, com o punho nada firme e a sonolência dos que ainda não deixaram de dormir. Andou, decididamente (embora não parecesse), até seu quarto. Pôs-se diante do guarda-roupas, firmou seus pés no chão de madeira e seus de dos em volta do plástico claro. Com a outra mão, abriu a porta do armário de súbito. Levantou a faca (não sabia por quê, mas dava um efeito legal).
Foi impedido de prosseguir com o extermínio pela visão do interior do móvel, agora livre da obstrução causada pelo ser nas outras vezes em que abrira o guarda-roupas nos últimos dias. Sobre seus agasalhos, feitos carinhosamente pela sua mãe, que usava nos invernos mais rigorosos, estavam mínimos serezinhos, encolhidos como se abraçassem seus próprios corpos, enrugadinhos e calmos. Os olhos se remexiam sob as pálpebras, e a respiração constante, que fazia suas barriguinhas encherem e esvaziarem ritmicamente, soava apaziguável em meio ao silêncio que invadia o quarto logo antes da aurora.
Chegou em casa sorrindo, sacolas e caixas debaixo dos braços, após uma deliciosa ceia de Natal na casa de sua mãe. Abriu as caixas que ganhara, todas de roupas, e colocou o conteúdo no guarda-roupas, cobrindo bem o adormecido ser e os serezinhos. E foi dormir, ainda nu.
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