Largo Cavafundo
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[Largo Cavafundo][Conto passado num ponto de ônibus]
Bem, amigos meus, mais uma vez venho postar uma história aqui no Clube dos Escritores. Apesar do título, não tenho total certeza de que isto é um conto. É... algo. Algo que escrevi hoje, rapidamente, simplesmente porque quis. Não tem mensagens implícitas e significados misteriosos. Ela é o que vocês vêem. E espero que isto faça vocês gostarem ainda mais de minha história.
Boa leitura.
"
Sentou-se no banco duro e vermelhor do ponto de ônibus ao lado de sua escola. Apoiou o fichário nas pernas, e o livro que lia sobre o fichário. Com o ombro, moveu a mochila até que esta descansasse sobre o banco ao lado. Passou a olhar para a rua, esperando o ônibus que o levaria para casa passar.
Acabara de deixar sua sala após uma especialmente chata aula de Biologia. Cansado de especular sobre os aminoácidos e coacervados, marchou diretamente da classe para a portaria do colégio e então para o ponto. Desde o início do primeiro ano do Ensino Médio (o mesmo que cursava agora), voltava de ônibus para casa todos os dias, pegando sempre o mesmo 6262 – Terminal Bandeira. Nada havia de estranho para ele na cena – ele esperando o veículo –, embora alguns colegas estranhassem o seu hábito de usar o transporte coletivo: em seu colégio, a grande maioria dos alunos voltavam para casa com seus motoristas, ou no mínimo suas mães em seus carros importados. Mas a inconveniência do horário de saída dos alunos do Colegial (e conseqüentemente a incompatibilidade deste com o de sua mãe) fez com que o garoto tivesse de voltar para casa do jeito mais vagaroso e desconfortável.
Continuou com sua inativa tarefa, assistindo os carros e as pessoas dentro deles, reconhecendo colegas e pais de colegas, até ser interrompido por um barulho à sua esquerda, vagamente lembrando uma voz humana, mas tão incompreensível quanto o grunhido de um animal selvagem. Virou-se para a direção de onde a voz vinha, e deparou-se com um homem cuja aparência mostrava o quanto ele estava fora da realidade do jovem. Porém, nem um pouco incomum era aquele indivíduo. Antes fosse.
Sua imagem suja e acabada não lhe parecia tão diferente daquelas que ele e milhões de outras pessoas viam todos os dias em semáforos, deitados em frente a lojas fechadas quando a noite começava a se aproximar, amontoando-se nos cantos mais aconchegantes formados pelas paredes externas dos supermercados. Suas barbas, brancas como seus cabelos (que mostravam claramente o topo liso de sua cabeça quase careca), criavam um forte contraste com a pele escura do homem. Não escura como a de um negro ou mulato, mas escura como a pele tostada de um personagem de quadrinhos após um período demasiadamente longo de exposição aos raios do Sol. Suas vestes azuis estavam velhas e rasgadas, mas pareciam ser quentes o suficiente para que ele não sofresse muito com o frio daquele dia. Os pés machucados e cheios de calos se dividiam: as partes da frente (desde a metade da planta do pé, o jovem tentou adivinhar) permanesciam dentro dos sapatos marrons, enquanto os calcanhares apareciam fora dos calçados e pisando nestes. Seus olhos azuis claros passavam um sentimento de tristeza intenso, como se eles fossem belos demais para estar num corpo tão maltratado.
– O quê? – o jovem perguntou, tentando entender o que o outro havia dito. Da resposta, pouco mais que um zumbido para os ouvidos do garoto, ele só entendeu a palavra “passe”.
Talvez por causa do tal ‘sentimentalismo burguês’ sobre o qual Fernando Sabino o ensinara no ano anterior, por intermédio de uma professora de português de oitava série e de uma simples e primária análise de crônica feita em classe; ou talvez por causa de um sincero e verdadeiro sentimento de solidariedade e fraternidade, o garoto decidiu ceder ao indigente senhor um passe de ônibus. Pôs-se a procurar em sua carteira, que retirou do bolso da frente de sua mochila, o papelzinho, enquanto o velho contava que só tinha um real e cinco centavos e mostrava as moedas imundas na palma de uma mão mais imunda ainda. O jovem pincela a conversa com alguns “sins” e “nãos” desinteressados e alguns gestos e expressões faciais.
Achou o passe amarelado. Estendeu-o para o homem, mas este pareceu nem perceber, e continuou a falar. Já pegara carona em ônibus por quatro vezes, mas os motoristas pareciam mais e mais relutantes em permitir tal ato, fosse isto demonstrado pela fala ou por simples mas terríveis olhares de desaprovação e nojo. O velho pegou o passe. Viera do Rio de Janeiro, como mostrava o passe amassado que insistiu em mostrar para o garoto e o inconfundível sotaque carioca, um mês e meio antes daquele dia, por motivos que não foram entendidos pelo rapaz, apesar da explicação do sujeito, parcialmente pelo fato de o sujeito falar muito baixo, parcialmente pelo fato de o garoto não estar prestando total atenção. Carregava na ocasião uma mala e seiscentos reais, tudo roubado instantes depois de chegar na terra da garoa. Não tendo maneira de viver em São Paulo e nem de voltar para sua terra natal, foi ao CEASA tentar arranjar carona de volta para a cidade maravilhosa num caminhão. Não conseguira. Passou a queixar-se então de que deveria ter ido a Santos. Algo ligado ao motivo de sua vinda à capital do estado.
Um desconfortável silêncio seguiu. Os minutos passaram como os ônibus: nenhum indo para o bendito Terminal Bandeira. CEASA, Parque Continental, Praça Ramos. O garoto olhava para o próprio fichário, pensativo. Abriu novamente o bolso menor de sua mochila, pegou o estojo e tirou dele uma lapiseira, que passou a segurar.
– Já devem ser umas doze e meia. – disse o sujeito.
– Doze e quarenta. – corrigiu o jovem.
O velho olhou para um relógio velho e ordinário no seu pulso. Meio dia e quarenta e quatro. Voltou a falar com a voz rouca e cansada:
– Já é hora de comer... vou ter que ver o que eu consigo.
Muito não deve ser, pensou o estudante.
Outro silêncio, desta vez mais curto que o anterior.
– Os motoristas reclamam que eu estou sujo. – disse ele enquanto mostrava as mãos – Mas se eu estou pagando – levantou levemente o passe doado pelo rapaz – eles não podem fazer nada.
– Ahn-han.
Tentava ouvir o velho, mas um sentimento de superioridade misturado com culpa e pena tentavam dispersá-lo, como se tentasse poupá-lo da consciência de sua existência passiva e prosaica. As mesmas características que costumava criticar nos colegas da escola de classe média-alta. Desejava, mesmo sem querer desejar, que o velho fosse embora. Já cumpri meu dever, fiz minha boa ação do dia. Nem um agradecimento recebi, aliás. Preciso também fazê-lo companhia? Os pensamentos escondiam-se no fundo, bem no fundo de sua mente, mas sem dúvida estavam presentes.
Como se adivinhasse os pensamentos do rapaz, o velho levantou-se do banco em que estava sentado e murmurou uma despedida. Caminhou pelas calçadas, afastando-se mais e mais do garoto, sem olhar para trás. Pouco depois o tão esperado 6262 – Terminal Bandeira aproximou-se do ponto. O jovem levantou-se e fez sinal para ele, ainda com a lapiseira na mão. Entrou no veículo e foi até a catraca. Entregou um passe, idêntico ao que dera ao velho, para o cobrador. Foi até um dos assentos cinzentos da viatura e sentou-se. Apoiou o fichário sobre as pernas e moveu a mochila com o ombro até que esta se acomodasse no assento ao lado. Mas desta vez não apoiou o livro no fichário, mas abriu a pasta e encontrou uma folha em branco no bloco de papel pautado que possuía, segurou firmemente a lapiseira azul entre os dedos, e pôs-se a escrever esta história.
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Bem, amigos meus, mais uma vez venho postar uma história aqui no Clube dos Escritores. Apesar do título, não tenho total certeza de que isto é um conto. É... algo. Algo que escrevi hoje, rapidamente, simplesmente porque quis. Não tem mensagens implícitas e significados misteriosos. Ela é o que vocês vêem. E espero que isto faça vocês gostarem ainda mais de minha história.
Boa leitura.
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Sentou-se no banco duro e vermelhor do ponto de ônibus ao lado de sua escola. Apoiou o fichário nas pernas, e o livro que lia sobre o fichário. Com o ombro, moveu a mochila até que esta descansasse sobre o banco ao lado. Passou a olhar para a rua, esperando o ônibus que o levaria para casa passar.
Acabara de deixar sua sala após uma especialmente chata aula de Biologia. Cansado de especular sobre os aminoácidos e coacervados, marchou diretamente da classe para a portaria do colégio e então para o ponto. Desde o início do primeiro ano do Ensino Médio (o mesmo que cursava agora), voltava de ônibus para casa todos os dias, pegando sempre o mesmo 6262 – Terminal Bandeira. Nada havia de estranho para ele na cena – ele esperando o veículo –, embora alguns colegas estranhassem o seu hábito de usar o transporte coletivo: em seu colégio, a grande maioria dos alunos voltavam para casa com seus motoristas, ou no mínimo suas mães em seus carros importados. Mas a inconveniência do horário de saída dos alunos do Colegial (e conseqüentemente a incompatibilidade deste com o de sua mãe) fez com que o garoto tivesse de voltar para casa do jeito mais vagaroso e desconfortável.
Continuou com sua inativa tarefa, assistindo os carros e as pessoas dentro deles, reconhecendo colegas e pais de colegas, até ser interrompido por um barulho à sua esquerda, vagamente lembrando uma voz humana, mas tão incompreensível quanto o grunhido de um animal selvagem. Virou-se para a direção de onde a voz vinha, e deparou-se com um homem cuja aparência mostrava o quanto ele estava fora da realidade do jovem. Porém, nem um pouco incomum era aquele indivíduo. Antes fosse.
Sua imagem suja e acabada não lhe parecia tão diferente daquelas que ele e milhões de outras pessoas viam todos os dias em semáforos, deitados em frente a lojas fechadas quando a noite começava a se aproximar, amontoando-se nos cantos mais aconchegantes formados pelas paredes externas dos supermercados. Suas barbas, brancas como seus cabelos (que mostravam claramente o topo liso de sua cabeça quase careca), criavam um forte contraste com a pele escura do homem. Não escura como a de um negro ou mulato, mas escura como a pele tostada de um personagem de quadrinhos após um período demasiadamente longo de exposição aos raios do Sol. Suas vestes azuis estavam velhas e rasgadas, mas pareciam ser quentes o suficiente para que ele não sofresse muito com o frio daquele dia. Os pés machucados e cheios de calos se dividiam: as partes da frente (desde a metade da planta do pé, o jovem tentou adivinhar) permanesciam dentro dos sapatos marrons, enquanto os calcanhares apareciam fora dos calçados e pisando nestes. Seus olhos azuis claros passavam um sentimento de tristeza intenso, como se eles fossem belos demais para estar num corpo tão maltratado.
– O quê? – o jovem perguntou, tentando entender o que o outro havia dito. Da resposta, pouco mais que um zumbido para os ouvidos do garoto, ele só entendeu a palavra “passe”.
Talvez por causa do tal ‘sentimentalismo burguês’ sobre o qual Fernando Sabino o ensinara no ano anterior, por intermédio de uma professora de português de oitava série e de uma simples e primária análise de crônica feita em classe; ou talvez por causa de um sincero e verdadeiro sentimento de solidariedade e fraternidade, o garoto decidiu ceder ao indigente senhor um passe de ônibus. Pôs-se a procurar em sua carteira, que retirou do bolso da frente de sua mochila, o papelzinho, enquanto o velho contava que só tinha um real e cinco centavos e mostrava as moedas imundas na palma de uma mão mais imunda ainda. O jovem pincela a conversa com alguns “sins” e “nãos” desinteressados e alguns gestos e expressões faciais.
Achou o passe amarelado. Estendeu-o para o homem, mas este pareceu nem perceber, e continuou a falar. Já pegara carona em ônibus por quatro vezes, mas os motoristas pareciam mais e mais relutantes em permitir tal ato, fosse isto demonstrado pela fala ou por simples mas terríveis olhares de desaprovação e nojo. O velho pegou o passe. Viera do Rio de Janeiro, como mostrava o passe amassado que insistiu em mostrar para o garoto e o inconfundível sotaque carioca, um mês e meio antes daquele dia, por motivos que não foram entendidos pelo rapaz, apesar da explicação do sujeito, parcialmente pelo fato de o sujeito falar muito baixo, parcialmente pelo fato de o garoto não estar prestando total atenção. Carregava na ocasião uma mala e seiscentos reais, tudo roubado instantes depois de chegar na terra da garoa. Não tendo maneira de viver em São Paulo e nem de voltar para sua terra natal, foi ao CEASA tentar arranjar carona de volta para a cidade maravilhosa num caminhão. Não conseguira. Passou a queixar-se então de que deveria ter ido a Santos. Algo ligado ao motivo de sua vinda à capital do estado.
Um desconfortável silêncio seguiu. Os minutos passaram como os ônibus: nenhum indo para o bendito Terminal Bandeira. CEASA, Parque Continental, Praça Ramos. O garoto olhava para o próprio fichário, pensativo. Abriu novamente o bolso menor de sua mochila, pegou o estojo e tirou dele uma lapiseira, que passou a segurar.
– Já devem ser umas doze e meia. – disse o sujeito.
– Doze e quarenta. – corrigiu o jovem.
O velho olhou para um relógio velho e ordinário no seu pulso. Meio dia e quarenta e quatro. Voltou a falar com a voz rouca e cansada:
– Já é hora de comer... vou ter que ver o que eu consigo.
Muito não deve ser, pensou o estudante.
Outro silêncio, desta vez mais curto que o anterior.
– Os motoristas reclamam que eu estou sujo. – disse ele enquanto mostrava as mãos – Mas se eu estou pagando – levantou levemente o passe doado pelo rapaz – eles não podem fazer nada.
– Ahn-han.
Tentava ouvir o velho, mas um sentimento de superioridade misturado com culpa e pena tentavam dispersá-lo, como se tentasse poupá-lo da consciência de sua existência passiva e prosaica. As mesmas características que costumava criticar nos colegas da escola de classe média-alta. Desejava, mesmo sem querer desejar, que o velho fosse embora. Já cumpri meu dever, fiz minha boa ação do dia. Nem um agradecimento recebi, aliás. Preciso também fazê-lo companhia? Os pensamentos escondiam-se no fundo, bem no fundo de sua mente, mas sem dúvida estavam presentes.
Como se adivinhasse os pensamentos do rapaz, o velho levantou-se do banco em que estava sentado e murmurou uma despedida. Caminhou pelas calçadas, afastando-se mais e mais do garoto, sem olhar para trás. Pouco depois o tão esperado 6262 – Terminal Bandeira aproximou-se do ponto. O jovem levantou-se e fez sinal para ele, ainda com a lapiseira na mão. Entrou no veículo e foi até a catraca. Entregou um passe, idêntico ao que dera ao velho, para o cobrador. Foi até um dos assentos cinzentos da viatura e sentou-se. Apoiou o fichário sobre as pernas e moveu a mochila com o ombro até que esta se acomodasse no assento ao lado. Mas desta vez não apoiou o livro no fichário, mas abriu a pasta e encontrou uma folha em branco no bloco de papel pautado que possuía, segurou firmemente a lapiseira azul entre os dedos, e pôs-se a escrever esta história.
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