Kaio
Por acaso você é surda, garota? Eu já disse que você não pode brincar com a gente! ninguém pediu para que nos acompanhasse. Você assusta todo mundo (menos eu, é claro); vá embora!
Kinemara
Impressionante; eu acabo de livrar vocês todos de uma grande enrascada e é assim que me agradecem?
Kaio
É por isso! É porque você é estranha! Uma pessoa normal não solta fogo pela mão!
Kinemara
Sobre isso, eu não sei o que dizer; não sei como fiz aquilo.
Kaio
Meu pai disse que o seu é da mesma raça daquele povo esquisito do deserto, que possuem olhos brilhantes dessa cor esquisita aí sua. É diferente dos nossos! Ouvi dizer que aqueles caras possuem sangue de dragão nas veias! Que horror!
Kinemara
É mesmo? Então vai ver que eu sou uma pequena menina dragão, destruidora e terrível, e vou devorar todos vocês!
Kaio
Você não me assusta! É apenas uma pirralha. Uma pirralha esquisita!
Kinemara
Exceto pela cor de meus olhos, sou igual a vocês.
Kaio
Nada disso! Você é diferente de nós e ponto final!
Kinemara
Não sabe falar outra coisa? Ou se esgotaram seus argumentos esfarrapados? A sua intolerância é fruto da sua ignorância, garotinho.
Kaio
Quem você está chamando de ignorante? Quem você está chamando de garotinho? Sou mais velho que você!!!
Kinemara
Certo, certo. . . então por que está falando alto comigo? Por que está tremendo? Está com medo por causa daquele jato de fogo que saiu do meu dedo quando aquela onça estava prestes a te devorar? Eu salvei a sua vida deplorável; o mínimo que você poderia fazer era demonstrar algum respeito.
Kaio
Eu não respeito monstros!
Kinemara
Então eu sou o monstro que salvou todos vocês, ratinhos assustados. E você é o pior de todos, pois é o mais velho da turma; obrigou os outros a se embrenharem na floresta das fadas só para provar que não tem medo de nada. Daí, provocou aquela onça, jogando pedras nela, e depois fugiu para se esconder, deixando seus amiguinhos para trás.
Kaio
Mentira! Eu fui proteger minhas irmãs!
Kinemara
Você não passa de um garotinho fanfarrão e covarde, um moleque irritante e patético que precisa provar para si mesmo e para os outros uma coragem que nunca teve. E nem nunca vai ter.
Kaio
CALA ESSA BOCA!!!!
NARRADOR
As crianças começam a rir e escarnear de Kaio. Furioso, o garoto avança, disposto a dar uma surra naquela menina metida; só que ela apenas o encara com uma expressão severa, e não se mexe. E logo em seguida, Kaio também não.
Pela primeira vez ele olhou de verdade nos olhos penetrantes e brilhantes de Kinemara, olhos que parecem brilhar em ressonância com o forte Sol dessas terras que no céu fulgura; e pela primeira vez em seus treze anos de vida, sentiu um medo real de uma menina mais nova e menor que ele.
Só que, naquele instante, lhe pareceu que não estivesse olhando para olhos de criança, e sim para os olhos terríveis de algum senhor dragão antigo, poderoso e cruel. E devorador de gente.
O garoto soltou um grito e caiu para trás, e se arrastou como um animal apavorado até onde estavam suas irmãs; tomou-as pelas mãos e correu para longe de Kinemara, em direção à Vila Z'lake, o mais rápido que conseguiu. E nunca mais desafiou a menina novamente.
Em segundos, Kinemara estava sozinha na clareira da floresta, pois as demais crianças, assustadas, fugiram junto com Kaio e suas irmãs. E quando ninguém mais estava olhando, desfez a expressão severa em seu belo rosto. E duas lágrimas gêmeas tristes e lentas por ali desceram.
No céu, brilha o Sol.
E cai a noite.
A Vila Z'lake, na verdade um povoado minúsculo (para os padrões das demais vilas malgárias) onde cerca de 100 viv'almas estabeleceram suas simples moradias. Cultivam e plantam seu sustento, mas evitam caçar em demasia. Pois acreditam que isso irritaria as fadas da floresta.
Suas casas são cabanas rústicas (mas caprichadas) de palha; uma família inteira se acomoda num único cômodo. Os trajes malgários são mínimos: saiotes, tangas e mantos abertos enrolados no corpo, todos coloridos (embora sejam verdes em sua maioria); cordões de ossos adornam seus pescoços e pulsos. E as mulheres andam com os seios à mostra.
Kinemara
...e foi isso que aconteceu, mamãe.
Sylvara
Está chorando, minha filha?
Kinemara
Lógico que não! Uns imbecis daqueles não são dignos de minhas lágrimas...
Sylvara
Hihihihi... eu sou sua mãe; jamais conseguirá mentir para mim.
NARRADOR
A menina agora estava em sua casa, auxiliando sua mãe no preparo do jantar. O cheiro adocicado das ervas fumegando no calderião de barro preenchem a cabana. Há utensílios de cozinha, duas camas de feno e vasos barro; mas também há rolos de folhas, penduricalhos, cordões e talismãs e outros apetrechos que evidenciem que uma bruxa mora neste local.
E uma belíssima bruxa era a mulher de nome Sylvara: curvilínea, de longos cabelos encaracolados, olhos castanhos escuros e pele numa tonalidade marrom claro.
Mãe e filha trajam apenas saias de corte aberto e colares de penas e ossos; mas Sylvara possui mais, e uma pintura colorida no rosto e nos seios.
Sylvara
Então, pela primeira vez, você manifestou os poderes; e pelo visto, herdou os poderes de seu pai, e não os meus. Estranho...
Kinemara
A senhora nunca me esclareceu porque papai possui poderes tão diferentes dos seus. E as pessoas dessa vila me irritam! Me olham feito bicho desde que nasci, no mínimo!
Sylvara
Calma, minha filha; não é sábio se enfurecer por tão pouco. Infelizmente, as pessoas são assim: temem aquilo que desconhecem. E os habitantes dessa vila são almas simples; mesmo para eles, meus poderes de bruxa, comuns entre aqueles da Tribo Malgária, causam certa estranheza para aqueles que não sabem como manipular o Poder.
Durante gerações, nasceram crianças com uma mesma aparência básica; e de repente me aparece seu pai, um dalressano, muito ferido e quase morto nas cercanias da Floresta do Esquecimento. Nos amamos, e então nasce você, que herda basicamente a aparência dele (embora tenha meus cabelos) e agora, os poderes dele. Se isso me deixou um tanto quanto apreensiva, imagina as pessoas dessa vila? Elas desconfiam imensamente dos dalressanos, porque eles canalizam o Poder através do sangue de seus ancestrais dragões; por isso, são os feiticeiros mais poderosos e temíveis de todo o Continente.
Kinemara
Ora; que as pessoas são estúpidas por não saberem lidar com o diferente, e que desconfiam de mim e de meu pai por nosso sangue estrangeiro, isso eu já sabia...
Sylvara
Não fale assim das pessoas, minha filha.
Kinemara
...ou eu não noto seus olhares de recriminação, receio e censura? As crianças, ao menos, são mais sinceras, ao me chamarem de monstro na minha cara.
Agora, a forma pela qual a senhora conheceu o papai nunca me foi revelada. E nem detalhes sobre os poderes dele, que tanto se fala.
Sylvara
Você tem razão. Então...
Kinemara
...será que tem algo a ver com aqueles sonhos fantásticos que comecei a ter durante a noite?
Sylvara
deixe sua mãe falar! Muito bem, os poderes do seu pai são...
continua..