[Inho][Para Dias Frios]
Parou a frase no meio, largou a caneta de lado, e, subitamente, retomou o aspecto lacônico que vinha sendo sua sombra nos últimos dias. O vazio na barriga e o frio na espi-nha voltaram, como dois viabilíssimos clichês. A cabeça buscou apoio nos braços, que aca-baram procurando a mesa. Suspiro. No meio disso tudo, uma pergunta-flecha atravessa-o: “Será que ela vai ligar?”
Engavetou o fracês e o inglês e procurou um violão. Achou-o, mas não a paz que julgava estar ali. Ficou a andar pela casa, perdido entre a flauta no quarto e uma xícara de café na cozinha. Vinha impaciente desde Sexta-Feira passada, quando, pela última vez, ouvira a voz dela ao telefone.
- Droga! Ela disse que ia ligar essa semana! E já é quarta-feira!
Estamos na cabeça de Danilo. Há pouco tempo, é verdade, mas a repetição dessa lamúria em tom de procissão nos tortura incansavelmente. Imaginemos, então, como deve torturá-lo.
Parecia mais uma tarde gasta entre livros, canetas, recortes e doses cavalares de pas-sado feliz. Sem falar das súbitas corridas ao telefone ao menos toque deste, disparando o coração daquele, que bombeia u emoção a níveis dolorosos, arregalando-lhe os olhos e ofe-gando-lhe a respiração.
Mas, na maior parte do tempo, era bem diferente disso. Cabeça baixa e um invariá-vel digníssimo mutismo. Toda força era canalizada na árdua tarefa de conter uma lágrima no canto de cada olho. Sorrisos cordiais para os vizinhos no elevador e cálculos. De todo tipo:
- Ela disse que ia me chamar para o ensaio da banda dela que se apresenta na sexta. Sendo assim, ela deve ligar até quarta, hoje, para dizer que o ensaio será na quinta. Afinal, ninguém deixa para ensaiar no dia da apresentação. E se ela não ligar hoje...seria amanhã, para me chamar para a apresentação.
Esse é só um exemplo da matéria de que tratam os cálculos de nosso irrequieto pro-tagonista. Não convém aqui estudar o limite que a matéria desse cálculos aceitava.
Algumas horas mais tarde, enquanto Danilo misturava a matemática dos livros com o rock’n’roll alto que vinha do seu som, ele pensou ter ouvido um toque de telefone no meio do solo de Kirk Hammet. Levantou a cabeça, intrigado. Parou, esperou, escutou. Ao segundo toque do telefone, Danilo decolou da cadeira e voou em direção à sala.
- Alo?!
- Alo! Danilo está? – não era a voz dela. Danilo suspira frustrado.
- Sim, é ele. Quem deseja?
- Eh...oi Danilo! É Daniela. Tudo bem?
- Ah! Oi Dani! Tudo bem comigo – mentiu como costumava mentir quando al-guém lhe perguntava isso – E com você? Tudo certo?
- Ta, ta tudo bem comigo.
Seguiram-se alguns instantes de incômodo silêncio que Danilo julgou que deveria quebrar.
- Eh...Dani, você me ligou para dizer algo além de “oi, tudo bem”?
- ...
- Hem?
- Sim.
- Então...porque você não diz?
- Antes, eu quero que você me diga uma coisa.
- Certo.
- Você ainda gosta de Miranda?
Pergunta-bomba. Preparar para implosão de Danilo: 10, 9, 8, 7, 6, 5, 4, 3, 2, 1...
- Gosta ou não gosta?
E lentamente o ar foi voltando aos seus pulmões. Daniela era uma amiga comum entre ele e Ela. Talvez ela tivesse alguma novidade para lhe dar. E ele não sentia nenhuma boa nova no ar. Só tensão.
- Sim!
- Sim?
- Sim! Claro! Como sempre! Talvez mais do que nunca!
- Ai...
- Porque? O que foi? Porque você perguntou isso?
- Nada, nada...
- Como assim “nada”? Você tem algo pra me dizer, não tem, Dani?
- Sim, Danilo. Tenho.
- E é sobre Miranda e...é má notícia. Ai, nem sei se quero ouvir... – já tremia bem mais do que antes de atender o telefone.
- É que...
- É que...?! Vai logo que eu to tremendo!
- É que ela tá namorando.
Ignição...bum!
Súbito tremor incontrolável nas mãos e pernas. Batimentos alterados do coração, piscadas rápidas de olhos. As explicações metralhadas por Daniela ao telefone foram fican-do distantes até desaparecerem no momento em que o fone cai no gancho. Sem despedidas. Sem perdões. Só uma idéia permeava todo o imaginário de Danilo: ela está namorando. E não é comigo.
Alguns dias depois. Dona Catarina, há alguns dias já, andava com a pulga atrás da orelha. A causa? O estranho comportamento de seu filho; a redução na alimentação, nas conversas, no tamanho e na graça dos sorrisos. O fato dele passar horas trancado no quarto a preocupava muito, pondo-a a conjecturar a mais mirabolantes explicações para o fato, várias vezes transcendendo a fronteiro do possível, invadindo o território árido do surreal.
Certa tarde, Dona Catarina estava na sala assistindo algum programa sensacionalista qualquer:
- Você é mãe? E você tem estado de olho em seu filho ultimamente? Sabe por onde e com quem ele anda? Sabe o que ele come? Mais importante ainda: sabe o que ele faz com o dinheiro da mesada? Se você disse não a alguma dessas perguntas, ou se hesitou antes de dizer sim, minha amiga, saiba que seu filho corre GRANDE PERIGO! – entra uma trilha sonora hitchcoquiana. D. Catarina engasga. – Você que lutou tanto para criá-lo no seio de uma família unida e estável, pode estar perdendo-o para o maior inimigo social de nossos tempos: as drogas! – D. Catarina se arruma no sofá. – Tem notado comportamentos estra-nhos em seu filho? Ele come e dorme mal? Fique atenta a esses primeiros sintomas pois, quão mais cedo eles forem detectados, maiores as chances de seu filho se salvar. Ou me-lhor, menores as chances dele afundar de vez nesse poço de malícia e vício que...CLICK!
Dona Catarina, chorando, geme um “aimeudeus” enquanto corre e se tranca no quarto. Foi uma revelação muito bombástica, há que se concordar. E por concordar, temos também que respeitar o sincero choro de uma mãe desesperada, pois é o que ela precisa agora. Amanhã pensaria no que fazer.
Quanto ao filho dela, que, como vocês devem saber, é o nosso broken-hearted Danilo, sua vidinha só foi piorando. Idéias antigas, que tinham sido postas de lado diante da imensa força com que Danilo amava Miranda voltaram à tona. Idéias como o gosto pela morte, preferência pelo isolamente físico, sentimento de insignificância, de incapacidade e, como não podia faltar, a dor. Sempre a dor. Sempre há dor.
Foi com essas idéias que Danilo passou a semana e, é com elas também que nesse momento ele percorre, de ônibus, o trajeto de volta à sua casa. Com a cabeça encostada na janela, procurava o rosto amado e perdido entre os rostos apressados que iam e vinham pe-las calçadas recifenses.
Para os que conseguem ver beleza numa sincera tristeza, esse é um momento subli-me. Vamos nos aproximar e examinar mais detalhadamente as feições do distraído Danilo.
Passeamos um pouco por uma boca bem fechada já há muito tempo. Descendo um pouco e ouvindo os batimentos cardíacos à altura do pescoço, sentimos um som seco e mu-do, o som do descompasso de um coração que bate à toa. Subamos agora até os olhos – a janela da alma – que inspirou tamanha beleza tantas vezes quanto tamanha dor afligiu o jovem aspirante de Romeu. A pálpebra trêmula, a iria castanha irrequieta, acompanhando cada rosto anônimo na rua, perscrutando suas intimidades, em vão buscando uma em um milhão. O olho ia assim, sem maiores problemas, até que o ônibus parasse numa determi-nada parada e o olho subitamente se arregalasse.
Danilo, então, se agitou por inteiro. Era Miranda que estava ali embaixo, e estava subindo no ônibus em que ele estava! Que tipo de coincidência era essa? Danilo rapidamen-te olha para o céu e vê Deus lá em cima, piscando-lhe e sorrindo. Suando, ele baixa a vista e seu olhar vai direto no de Miranda. Congela.
O rosto radiante de Miranda e o seu olhar hipnótico, profundo e castanho, estavam ali, a poucos metros de distância, no mesmo plano de existência. E o mundo ficou perfeito por alguns segundos, até a chegada da dúvida, que veio como uma cúmulus num domingo de praia. O que seria de agora em diante?
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Comentem, por favor.
Parou a frase no meio, largou a caneta de lado, e, subitamente, retomou o aspecto lacônico que vinha sendo sua sombra nos últimos dias. O vazio na barriga e o frio na espi-nha voltaram, como dois viabilíssimos clichês. A cabeça buscou apoio nos braços, que aca-baram procurando a mesa. Suspiro. No meio disso tudo, uma pergunta-flecha atravessa-o: “Será que ela vai ligar?”
Engavetou o fracês e o inglês e procurou um violão. Achou-o, mas não a paz que julgava estar ali. Ficou a andar pela casa, perdido entre a flauta no quarto e uma xícara de café na cozinha. Vinha impaciente desde Sexta-Feira passada, quando, pela última vez, ouvira a voz dela ao telefone.
- Droga! Ela disse que ia ligar essa semana! E já é quarta-feira!
Estamos na cabeça de Danilo. Há pouco tempo, é verdade, mas a repetição dessa lamúria em tom de procissão nos tortura incansavelmente. Imaginemos, então, como deve torturá-lo.
Parecia mais uma tarde gasta entre livros, canetas, recortes e doses cavalares de pas-sado feliz. Sem falar das súbitas corridas ao telefone ao menos toque deste, disparando o coração daquele, que bombeia u emoção a níveis dolorosos, arregalando-lhe os olhos e ofe-gando-lhe a respiração.
Mas, na maior parte do tempo, era bem diferente disso. Cabeça baixa e um invariá-vel digníssimo mutismo. Toda força era canalizada na árdua tarefa de conter uma lágrima no canto de cada olho. Sorrisos cordiais para os vizinhos no elevador e cálculos. De todo tipo:
- Ela disse que ia me chamar para o ensaio da banda dela que se apresenta na sexta. Sendo assim, ela deve ligar até quarta, hoje, para dizer que o ensaio será na quinta. Afinal, ninguém deixa para ensaiar no dia da apresentação. E se ela não ligar hoje...seria amanhã, para me chamar para a apresentação.
Esse é só um exemplo da matéria de que tratam os cálculos de nosso irrequieto pro-tagonista. Não convém aqui estudar o limite que a matéria desse cálculos aceitava.
Algumas horas mais tarde, enquanto Danilo misturava a matemática dos livros com o rock’n’roll alto que vinha do seu som, ele pensou ter ouvido um toque de telefone no meio do solo de Kirk Hammet. Levantou a cabeça, intrigado. Parou, esperou, escutou. Ao segundo toque do telefone, Danilo decolou da cadeira e voou em direção à sala.
- Alo?!
- Alo! Danilo está? – não era a voz dela. Danilo suspira frustrado.
- Sim, é ele. Quem deseja?
- Eh...oi Danilo! É Daniela. Tudo bem?
- Ah! Oi Dani! Tudo bem comigo – mentiu como costumava mentir quando al-guém lhe perguntava isso – E com você? Tudo certo?
- Ta, ta tudo bem comigo.
Seguiram-se alguns instantes de incômodo silêncio que Danilo julgou que deveria quebrar.
- Eh...Dani, você me ligou para dizer algo além de “oi, tudo bem”?
- ...
- Hem?
- Sim.
- Então...porque você não diz?
- Antes, eu quero que você me diga uma coisa.
- Certo.
- Você ainda gosta de Miranda?
Pergunta-bomba. Preparar para implosão de Danilo: 10, 9, 8, 7, 6, 5, 4, 3, 2, 1...
- Gosta ou não gosta?
E lentamente o ar foi voltando aos seus pulmões. Daniela era uma amiga comum entre ele e Ela. Talvez ela tivesse alguma novidade para lhe dar. E ele não sentia nenhuma boa nova no ar. Só tensão.
- Sim!
- Sim?
- Sim! Claro! Como sempre! Talvez mais do que nunca!
- Ai...
- Porque? O que foi? Porque você perguntou isso?
- Nada, nada...
- Como assim “nada”? Você tem algo pra me dizer, não tem, Dani?
- Sim, Danilo. Tenho.
- E é sobre Miranda e...é má notícia. Ai, nem sei se quero ouvir... – já tremia bem mais do que antes de atender o telefone.
- É que...
- É que...?! Vai logo que eu to tremendo!
- É que ela tá namorando.
Ignição...bum!
Súbito tremor incontrolável nas mãos e pernas. Batimentos alterados do coração, piscadas rápidas de olhos. As explicações metralhadas por Daniela ao telefone foram fican-do distantes até desaparecerem no momento em que o fone cai no gancho. Sem despedidas. Sem perdões. Só uma idéia permeava todo o imaginário de Danilo: ela está namorando. E não é comigo.
Alguns dias depois. Dona Catarina, há alguns dias já, andava com a pulga atrás da orelha. A causa? O estranho comportamento de seu filho; a redução na alimentação, nas conversas, no tamanho e na graça dos sorrisos. O fato dele passar horas trancado no quarto a preocupava muito, pondo-a a conjecturar a mais mirabolantes explicações para o fato, várias vezes transcendendo a fronteiro do possível, invadindo o território árido do surreal.
Certa tarde, Dona Catarina estava na sala assistindo algum programa sensacionalista qualquer:
- Você é mãe? E você tem estado de olho em seu filho ultimamente? Sabe por onde e com quem ele anda? Sabe o que ele come? Mais importante ainda: sabe o que ele faz com o dinheiro da mesada? Se você disse não a alguma dessas perguntas, ou se hesitou antes de dizer sim, minha amiga, saiba que seu filho corre GRANDE PERIGO! – entra uma trilha sonora hitchcoquiana. D. Catarina engasga. – Você que lutou tanto para criá-lo no seio de uma família unida e estável, pode estar perdendo-o para o maior inimigo social de nossos tempos: as drogas! – D. Catarina se arruma no sofá. – Tem notado comportamentos estra-nhos em seu filho? Ele come e dorme mal? Fique atenta a esses primeiros sintomas pois, quão mais cedo eles forem detectados, maiores as chances de seu filho se salvar. Ou me-lhor, menores as chances dele afundar de vez nesse poço de malícia e vício que...CLICK!
Dona Catarina, chorando, geme um “aimeudeus” enquanto corre e se tranca no quarto. Foi uma revelação muito bombástica, há que se concordar. E por concordar, temos também que respeitar o sincero choro de uma mãe desesperada, pois é o que ela precisa agora. Amanhã pensaria no que fazer.
Quanto ao filho dela, que, como vocês devem saber, é o nosso broken-hearted Danilo, sua vidinha só foi piorando. Idéias antigas, que tinham sido postas de lado diante da imensa força com que Danilo amava Miranda voltaram à tona. Idéias como o gosto pela morte, preferência pelo isolamente físico, sentimento de insignificância, de incapacidade e, como não podia faltar, a dor. Sempre a dor. Sempre há dor.
Foi com essas idéias que Danilo passou a semana e, é com elas também que nesse momento ele percorre, de ônibus, o trajeto de volta à sua casa. Com a cabeça encostada na janela, procurava o rosto amado e perdido entre os rostos apressados que iam e vinham pe-las calçadas recifenses.
Para os que conseguem ver beleza numa sincera tristeza, esse é um momento subli-me. Vamos nos aproximar e examinar mais detalhadamente as feições do distraído Danilo.
Passeamos um pouco por uma boca bem fechada já há muito tempo. Descendo um pouco e ouvindo os batimentos cardíacos à altura do pescoço, sentimos um som seco e mu-do, o som do descompasso de um coração que bate à toa. Subamos agora até os olhos – a janela da alma – que inspirou tamanha beleza tantas vezes quanto tamanha dor afligiu o jovem aspirante de Romeu. A pálpebra trêmula, a iria castanha irrequieta, acompanhando cada rosto anônimo na rua, perscrutando suas intimidades, em vão buscando uma em um milhão. O olho ia assim, sem maiores problemas, até que o ônibus parasse numa determi-nada parada e o olho subitamente se arregalasse.
Danilo, então, se agitou por inteiro. Era Miranda que estava ali embaixo, e estava subindo no ônibus em que ele estava! Que tipo de coincidência era essa? Danilo rapidamen-te olha para o céu e vê Deus lá em cima, piscando-lhe e sorrindo. Suando, ele baixa a vista e seu olhar vai direto no de Miranda. Congela.
O rosto radiante de Miranda e o seu olhar hipnótico, profundo e castanho, estavam ali, a poucos metros de distância, no mesmo plano de existência. E o mundo ficou perfeito por alguns segundos, até a chegada da dúvida, que veio como uma cúmulus num domingo de praia. O que seria de agora em diante?
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Comentem, por favor.