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L.I.V.R.O.

Bilbo Bolseiro

Bread and butter
Ótimo texto, de autoria de Millôr Fernandes, creio eu =)

"Na deixa da virada do milênio, anuncia-se um revolucionário conceito de tecnologia de informação, chamado de Local de Informações Variadas, Reutilizáveis e Ordenadas - L.I.V.R.O.

L.I.V.R.O. representa um avanço fantástico na tecnologia. Não tem fios, circuitos elétricos, pilhas. Não necessita ser conectado a nada nem ligado. É tão fácil de usar que até uma criança pode operá-lo. Basta abri-lo!

Cada L.I.V.R.O. é formado por uma sequência de páginas numeradas, feitas de papel reciclavel e são capazes de conter milhares de informações. As páginas são unidas por um sistema chamado lombada, que as mantém automaticamente em sua sequência correta.

Através do uso intensivo do recurso TPA - Tecnologia do Papel Opaco - permite que os fabricantes usem as duas faces da folha de papel. Isso possibilita duplicar a quantidade de dados inseridos e reduzir os seus custos pela metade! Especialistas dividem-se quanto aos projetos de expansão da inserção de dados em cada unidade. E que, para se fazer L.I.V.R.O.s com mais informações, basta se usar mais páginas. Isso porém os torna mais grossos e mais difíceis de serem transportados, atraindo críticas dos adeptos da portabilidade do sistema.

Cada página do L.I.V.R.O. deve ser escaneada opticamente, e as informações transferidas diretamente para a CPU do usuário, em seu cérebro. Lembramos que quanto maior e mais complexa a informação a ser transmitida, maior deverá ser a capacidade de processamento do usuário. Outra vantagem do sistema é que, quando em uso, um simples movimento de dedo permite o acesso instantâneo a próxima página.

O L.I.V.R.O. pode ser rapidamente retomado a qualquer momento, bastando abri-lo. Ele nunca apresenta "ERRO GERAL DE PROTEÇÃO", nem precisa ser reinicializado, embora se torne inutilizável caso caia no mar, por exemplo. O comando "browse" permite acessar qualquer página instantaneamente e avançar ou retroceder com muita facilidade. A maioria dos modelos a venda já vêm com o equipamento "índice instalado, o qual indica a localização exata de grupos de dados selecionados.

Um acessório opcional, o marca-páginas, permite que você acesse o L.I.V.R.O. exatamente no local em que o deixou na última utilização mesmo que ele esteja fechado. A compatibilidade dos marcadores de página é total, permitindo que funcionem em qualquer modelo ou marca de L.I.V.R.O. sem necessidade de configuração. Além disso, qualquer L.I.V.R.O. suporta o uso simultâneo de vários marcadores de página, caso seu usuário deseje manter selecionados vários trechos ao mesmo tempo, a capacidade máxima para uso de marcadores coincide com o número de páginas.

Pode-se ainda personalizar o conteúdo do L.I.V.R.O., através de anotações em suas margens. Para isso, deve-se utilizar de um periférico de Linguagem Apagável Portátil de Intercomunicação Simplificada - L.A.P.I.S. Portátil, durável e barato, o L.I.V.R.O. vem sendo apontado como o instrumento de entretenimento e cultura do futuro.

Milhares de programadores desse sistema já disponibilizaram vários títulos e upgrades utilizando a plataforma L.I.V.R.O."
 
Esse é muito bacana mesmo. Lembra um ensaio que o Isaac Asimov escreveu, que vale muito a pena ler. O nome é "O Mais Antigo e o Mais Avançado":

Cerca de três semanas atrás, participei de um seminário no norte do estado de Nova York, que tratava sobre comunicação e sociedade. A parte que me cabia era pequena, mas passei ali quatro dias inteiros, de modo que tive oportunidade de ouvir tudo o que foi discutido. Na primeira noite,estive em uma palestra particularmente boa, apresentada por um cavalheiro de extraordinária perspicácia e carisma, do ramo dos videocassetes. Ele desenvolveu uma argumentação interessante - e, a meu ver, irrefutável - em favor dos cassetes, que seriam o grande recurso comunicativo do futuro, ou pelo menos um dos grandes recursos.

Ressaltou que os programas comerciais, destinado a manter estações de TV assustadoramente onerosas e a satisfazer a terrível avidez dos anunciantes, tinham absoluta necessidade de conquistar níveis de audiência da ordem de dezenas de milhões de espectadores.

Como todos sabemos, as únicas coisas capazes de agradar de 25 a 50 milhões de pessoas são aquelas que evitam, cautelosamente, a menor possibilidade de alguma ofensa. Qualquer acréscimo de tempero ou substância ofenderá a alguém e ocasionará perdas.

Resulta daí uma papa insossa, não porque ela agrade, mas porque não corre o risco de desagradar. (Bem, a algumas pessoas, como você e eu, ela desagrada, mas quando os magnatas da publicidade somam o número de pessoas como eu, você e outros como nós,o total deve lhes provocar gargalhadas de desprezo.)

Em contrapartida, os cassetes, que agradam aos gostos mais especializados, vendem apenas conteúdo, sem precisar mascarar isso com nenhum verniz espúrio e oneroso ou com a presença de alguma estrela do mundo do entretenimento. Apresente um cassete versando sobre estratégias do xadrez, contendo símbolos do enxadrismo a se movimentar sobre um tabuleiro, e nada mais será necessário para que se vendam n exemplares para n entusiastas do xadrez. Se cada cassete for vendido a um preço suficiente para cobrir os custos de produção da fita (acrescido de um lucro honesto) e se as vendas atingirem os níveis almejados, estará tudo bem. Poderão ocorrer desastres inesperados, mas poderão, igualmente, surgir inesperados campeões de vendas.

Em suma, o ramo dos cassetes para vídeo terá grande semelhança ao ramo editorial.

O palestrista deixou claro esse ponto. Quando afirmou que "o manuscrito do futuro não mais será um maço de papéis mal datilografados, mas uma seqüencia de imagens nitidamente fotografadas", não pude evitar minha inquietação. Talvez essa inquietação tenha chamado a atenção sobre mim, sentado ali na primeira fila, pois o palestrista em seguida acrescentou: "E homens como Isaac Asimov se verão ultrapassados e superados." Naturalmente dei um salto na poltrona – e todos riram com a idéia de eu terminar dessa forma.

Dois dias mais tarde, outro palestrista telefonou do lado de lá do Atlântico, informando estar irremediavelmente retido em Londres, e a encantadora senhora que organizava o seminário me procurou, perguntando gentilmente se eu poderia substituí-lo.

Naturalmente respondi que não havia preparado nada. Ela, naturalmente, respondeu que era de conhecimento público o fato de eu não precisa de preparo algum para dar uma palestra formidável. Naturalmente, me deixei levar pelo pimeiro sinal de lisonja, e naturalmente compareci naquela noite para dar uma palestra naturalmente formidável. Foi tudo muito natural.

É impossível reproduzir exatamente o que falei, pois, como sempre, usei do improviso. Buscando na memória, a essência era mais ou menos a seguinte: tendo o palestrista de dois dias antes falado sobre os videocassetes, traçando um quadro fascinante e muito engenhoso de um futuro no qual os cassetes e os satélites dominariam o campo das comunicações, eu faria uso, agora, da minha experiência na ficção científica para lançar os olhos mais adiante, procurando antever as formas como os cassetes poderiam ser mais aprimorados e aperfeiçoados, conquistando uma sofisticação ainda maior.

Em primeiro lugar, conforme demonstrara o palestrista, os cassetes precisavam de um aparato um tanto pesado e dispendioso para decodificar a fita, lançar imagens num tudo de imagens e enviar o som até um alto-falante. Obviamente, seria de se esperar que esse equipamento auxiliar fosse ficando cada vez menor, mais leve e portátil. Seria de se esperar que ele, por fim, desaparecesse por completo, tornando-se parte do próprio cassete.

Em segundo lugar, há uma demanda de energia para se converter a informação contida no cassete em imagens e sons, o que apresenta um ônus para o meio ambiente. (Todo uso de energia acarreta isso; não podemos evitá-lo, mas não devemos utilizar uma quantidade maior do que a que necessitamos.) Conseqüentemente, poderíamos esperar um descréscimo na energia necessária para decodificar o cassete. Seria de se esperar que ela, por fim, chegasse a zero, desaparecendo.

Dessa forma, podemos imaginar um cassete completamente portátil e auto-suficiente. Embora exigisse um dispêncio de energia para sua fabricação, ele não exigiria nenhuma energia e nenhum equipamento especial para seu uso posterior. Não precisaria ficar ligado numa tomada, não requereria troca de pilhas; poderia ser carregado conosco para o lugar onde fosse mais confortável manuseá-lo: na cama, no banheiro, numa árvore ou no sótão.

O cassete, tal como geralmente o conhecemos, produz sons, é óbvio, e emite luz. Evidentemente, é preciso que ele se apresente a você com nitidez de som e imagem. Mas o fato de importunar a atenção dos outros, que podem não estar interessados, constitui uma imperfeição. Do ponto de vista ideal, o cassete portátil auto-suficiente deveria ser visto e ouvido exclusivamente pelo usuário.

Por mais sofisticados que sejam os cassetes disponíveis no mercado, ou aqueles previstos para o futuro imediato, eles ainda requerem controles. Existe uma saliência, ou botão, liga-desliga, além de outros para a regulagem de cor, volume, brilho, contraste, e todas essas coisas. No meu modo de ver, o ideal seria que tais controles chegassem a ser operados, na medida do possível, pela simples vontade.

Antevejo um cassete no qual a fita se detém tão logo o usuário desvia os olhos da imagem; ela se mantém parada até que os olhos se voltem novamente para o espelho, quando, então, retoma prontamente o movimento. Um cassete cuja fita pode rodar em ritmo lento ou veloz, para a frente ou para trás, saltando ou repetindo trechos, obedecendo inteiramente à nossa determinação.

É preciso admitir que um cassete com tais características representaria um sonho futurista em sua perfeição: auto-suficiente, portátil, não consumidor de energia, absolutamente reservado e amplamente sujeito ao controle da vontade.

Ah, sonhar é fácil. Portanto sejamos práticos. Será possível existir um cassete com essas características? Minha resposta a esta pergunta: é evidente que sim.

A pergunta seguinte é: quantos anos esperaremos por um cassete tão delirantemente perfeito?

Também tenho essa resposta, e bastante precisa. Nós já o possuímos há, no mínimo, cinco mil anos – pois isso que acabo de descrever(como vocês possivelmente já adivinharam) é o livro!

Estarei mentindo? Você, Gentil Leitor, acha que o livro não é o cassete mais avançado, por apresentar somente palavras e não imagens, que palavras desprovidas de imagens são unidirecionais e divorciadas da realidade, que não podemos esperar obter, só através de palavras, informações referentes a um universo que existe sob a forma de imagens?

Bem, consideremos a questão. Será a imagem mais importante que a palavra?

Certamente, se considerarmos as atividades puramente físicas do homem, o sentido da visão é, de longe, a via mais importante pela qual reunimos informações sobre o Universo. Se eu tivesse de escolher entre correr por uma mata virgem de olhos fechados e a audição aguçada, ou com os olhos abertos e sem audição, certamente optaria por utilizar os olhos. Com os olhos fechados, na verdade, até o mais leve dos movimentos exigiria a maior das cautelas.

Contudo, em algum estágio primordial de seu desenvolvimento, o homem inventou a fala. Ele aprendeu a modular o ar que expelia e a utilizar diferentes modulações sonoras, como simbolos coletivamente aceitos de objetos materiais, ações e - muito mais importante – abstrações. Com o tempo, aprendeu a codificar os sons modulados, em sinais gráficos que podiam ser captados pelos olhos e traduzidos, no cérebro, para o som correspondente. Um livro, não é preciso que eu diga, é um recurso que contém algo que poderíamos denominar "fala armazenada".

É o elemento da fala que constitui a mais fundamental distinção entre o homem e os outros animais (com a possível excessão dos golfinhos, os quais podemos até conceber como possuidores de uma linguagem, mas jamais criaram um sistema para armazená-la).

A fala, e a capacidade potencial de armazená-la, não apenas diferencia o homem e todas as demais espécies existentes agora ou no passado, como também é uma característica comum a todos os homens. Todos os grupos humanos conhecidos, por mais "primitivos" que possam ser, contam com a capacidade de falar e falam; contam também com a capacidade de formar um linguagem e a formam. Determinados povos "primitivos" penso eu, possuem linguagens muito complexas e sofisticadas. Mais que isso, todo ser humano, ainda que de inteligência apenas razoavelmente normal, aprende a falar já na tenra idade.

Sendo a fala um atributo universal da humanidade, é legítimo considerar que mais informações chegue a nós – animais sociais – por meio dela do que de imagens. A comparação não é sequer proporcional. A fala e suas formas armazenadas (a palavra escrita ou impressa) representam uma fonte tão colossal de informações que ficaríamos perdidos sem tais recursos.

Para se ter uma idéia do que estou tentando dizer, considere um programa de televisão, que normalmente envolve fala e imagem, e indague a si mesmo o que ocorre se você abdicar de uma ou de outra. Suponha que você escureça totalmente a imagem, permitindo a permanência do som. Você conseguirá, ainda assim, ter uma noção bastante satisfatória do que está se passando? Poderá haver momentos ricos em ação e sonoramente pobres, que o deixarão frustrado pelo soturno silêncio, mas, caso já fosse sabido de antemão que você estaria privado da imagem, poderia ser acrescido algum tipo de locução, de modo a não haver perda alguma.

O rádio, a propósito, se valia exclusivamente do som. Empregavam-se, além da fala, os "efeitos sonoros". Isto significa que havia momentos em que o diálogo assumia certo tom de artificialidade, a fim de suprir a ausência de imagem: "Aí vem o Harry. Oh, ele não viu a banana! Oh, ele está pisando na banana! Lá se vai ele." Era amplamente possível, dessa forma, acompanhar tudo. Duvido que qualquer ouvinte de rádio sentisse realmente falta da imagem.

Voltemos à televisão. Apague o som e faça com que a imagem se mantenha com foco e cores perfeitos. O que você consegue captar? Muito pouco. Nem todo o jogo de expressões faciais, nem todos os gestos apaixonados, nem todos os truques de câmera, com seus focos aqui e acolá, conseguirão oferecer algo além da mais obscura noção do que está se passando.

Concorrendo com o rádio, que se valia apenas da fala e de uma profusão de sons, havia o cinema mudo, composto só de imagens. Na ausência do som e da fala, os atores dos filmes silenciosos precisavam ser "teatrais". Oh, o piscar de olhos; oh, as mãos na garganta, no ar, em direção às alturas; oh, os dedos apontando confiantes para o céu, firmes para o chão, decididos para a porta; oh, a câmara se aproximando para mostrar a casca de banana no chão, o trunfo na manda ou a mosca no nariz. E, apesar de todos esses extremos de inventividade visual em sua forma mais exagerada, o que acontecia a cada quinze segundos? Um corte brusco na ação, durante o qual apareciam, rapidamente, algumas palavras na tela.

Isso não quer dizer que seja impossível um tipo de comunicação estritamente visual, com a utilização de imagens pictóricas. Um mímico talentoso, do calibre de Marcel Marceau, de um Charlei Chaplin ou de um Red Skelton, pode fazer maravilhas, mas o próprio motivo pelo qual nós assistimos e os aplaudimos é a capacidade que têm de transmitir tanto através de um recurso tão limitado como a mímica.

Nós nos divertimos, inclusive, supondo charadas e procurando fazer com que alguém adivinhe alguma frase simples que estejamos "representando". A brincadeira não faria sentido caso não exigisse uma boa dose de talento e, ainda assim, seus praticantes criam uma série de sinais e artifícios (quer tenham consciência disso, quer não) que buscam tirar partido dos recursos da fala: dividem as palavras em sílabas, dão indicações de que a palavra é curta ou extensa,empregam sinônimos e sinais indicando que "é uma palavra parecida". Através de todos esses artifícios, eles se valem de imagens visuais com o intuito de falar.

Sem utilizar qualquer artifício envolvendo alguma propriedade da fala, mas simplesmente o gesto e a ação, seria possível chegar a uma frase tão simples como "ontem o entardecer estava lindo, vestido de rosa e verde"? Obviamente, uma câmara fotográfica poderia tirar a foto de um belo pôr-do-sol, bastando a você apontar para o mesmo. No entanto, isso envolve alto investimento tecnológico, e não estou seguro de que a imagem pudesse indicar que o entardecer estava daquele jeito ontem (a menos que você utilize algum recurso envolvendo calendários, o que já representa um tipo de fala).

Ou, então consideremos o seguinte: as peças de Shakespeare foram escritas para serem encenadas. A imagem era essencial. Para se apreciar ao máximo determinada obra, é preciso enxergar os atores e suas ações. Quanto não se perderá se formos assistir ao Hamlet e fecharmos os olhos, apenas escutando? Quanto não se perderá tapando os ouvidos e apenas olhando?

Tendo deixado clara a minha crença de que um livro perde muito pouco pela falta de imagens – podendo, portanto, ser considerado, com todo o direito, um exemplo extremamente sofisticado de cassete – permitam-me modificar meu pressuposto básico e apresentar uim argumento ainda melhor.

Longe de se ressentir da ausência de imagens, um livro contém imagens e, mais que isso, imagens muito melhores, pois pessoais, que qualquer uma que pudessem apresentar a você pela televisão. Ao ler um livro interessante, sua mente fica vazia de imagens? Acaso você não assiste a todos os acontecimentos com os olhos da mente?

Essas imagens são suas. Elas pertencem a você e apenas você, sendo infinitamente melhores, para você, do que aquelas que lhe são oferecidas por terceiros.

Assisti a Gene Kelly em Os três mosqueteiros (a única versão razoavelmente fiel ao livro que já tive a oportunidade de ver). O duelo de espadas entre D'Artagnan, Athos, Porthos e Aramis, de um lado, e os cinco homens da guarda cardeal, do outro, que acontece quase no início da fita, era absolutamente lindo. Obviamente era uma dança, e me diverti um bocado com ela... Mas Gene Kelly, por mais talentoso que seja como dançarino, não corresponde à imagem de D'Artagnan que trago na imaginação. Fiquei infeliz durante o filme inteiro, porque ele era uma violência contra os "meus" Três Mosqueteiros.

Isso não quer dizer que um ator não possa, ocasionalmente, corresponder à nossa visão pessoal. O Sherlock Holmes da minha imaginação é exatamente o de Basil Rathbone. Na mente de outro, porém, Sherlock Holmes poderia não ser Basil Rathbone; poderia ser Dustin Hoffman, pelo que me consta. Por que motivo nossos milhões de Sherlock Holmes deveriam corresponder a um único Basil Rathbone?

Podemos perceber, dessa forma, por que um programa de televisão, por excelente que seja, jamais poderá proporcionar tamanha satisfação, ser tão absorvente, ocupar um lugar tão preponderante na imaginação quanto o livro. Para um programa de televisão, necessitamos apenas esvaziar a mente e nos sentar inertes, enquanto a seqüencia de som e imagens nos inunda, sem nada exigir da nossa imaginação. Outros eventuais espectadores serão igualmente inundados, todos eles, precisamente com as mesmas imagens sonoras.

O livro, por outro lado, pede a cooperação do leitor. Insiste em que o leitor tome parte no processo. Ao fazer isso, oferece um inter-relacionamente – que se conjuga perfeitamente com nossas peculiaridades e idiossincrasias pessoais – a ser comandado pelo próprio leitos, para o próprio leitor.

Quando lê um livro, você cria suas próprias imagens, cria o som das diversas vozes, cria os gestos, as expressões e as emoções. Você cria tudo, exceteo as próprias palavras. E se você é capaz de obter prazer, mesmo que pequeno, com a criação, o livro lhe proporcionará algo inacessível a um programa de televisão.

Além diso, mesmo que dez mil pessoas leiam o mesmo livro ao mesmo tempo, cada qual criará suas próprias imagens, seus próprios tons de voz, seus próprios gestos, expressões e emocões. Não teremos mais um livros, mas dez mil livros. Que não serão produto exclusivamente do autor, mas de uma interação específica do autor com cada leitor.

Sendo assim, o que poderá suplantar um livro?

Admito que o livro possa sofrer algumas mudanças em determinados aspectos não essenciais. Antigamente ele era manuscrito, agora é impresso. A tecnologia de produção do livro impresso já avançou em uma centena de formas, e talvez o livro do futuro possa ser folheado eletronicamente num monitor de tevê em sua casa. Ao fim de tudo, porém, você estará sozinho diante da palavra escrita. O que poderá suplantar isso?

Será tudo isso apenas uma idéia baseada num desejo? Será que, simplesmente por eu ganhar a vida escrevendo livros, não quero aceitar o fato de que eles possam tornar-se obsoletos? Estarei inventando engenhosos argumentos com o intuito de me consolar?

De modo algum. Estou certo de que os livros não serão suplantados no futuro, porque não o foram no passado.

Por certo, o número de pessoas que assistem televisão é muito superior ao das que lêem livros, mas isto não é novidade. Aleitura foi sempre uma atividade minoritária. Poucos preferem o livro à televisão, ao rádio ou a qualquer outra coisa que possamos citar.

Conforme disse, os livros são exigentes e demandam uma atividade criativa por parte do leitor. Nem todas as pessoas – na verdade, apenas uma insignificante parcela – estão dispostas a oferecer o que é exigido, de sorte que a maioria não lê e não tem intenção alguma de ler. Estas pessoas estão perdidas não apenas por estarem colocadas à margem dos livros; estão perdidas por natureza.

Na verdade, permitam-me ressaltar que o ato da leitura em si é difícil, muito difícil. Não é como o falar, que toda criança, ainda que apenas razoavelmente normal, assimila sem nenhum programa de aprendizado consciente. A imitação, que começa no primeiro ano de vida, se encarrega da questão.

O problema é que acabamos confundidos por nossa própria definição de literatura. Somos capazes de ensinar praticamente qualquer um (se nos esforçarmos o bastante e por tempo suficiente) a ler sinais de trânsito, compreender instruções e avisos colocados em cartazes e decifrar manchetes de jornais. Contanto que a mensagem impressa seja curta e razoavelmente simples, e que a motivação para lê-la seja grande, praticamente qualquer um tem aptidão para a leitura.

E se a isso se der o nome de "letras", praticamente todo americano será um letrado. Contudo, se você começar a se indagar por que motivo tão poucos americanos lêem livros (o americano médio, que já deixou os bancos escolares, penso eu, não chega a ler um livro por ano), você estará sendo confundido por sua própria acepção do termo "letrado".

Poucos indivíduos ditos letrados, no sentido de serem aptos a ler uma placa de NÃO FUME, chegam a alcançar suficiente familiaridade com a palavra escrita e suficiente facilidade para decodificar com rapidez, por meio da visão, os pequenos e complicados sinais que representam os sons modulados, a ponto de se disporem a enfrentar o esforço de uma leitura de maior vulto – embrenhando-se, por exemplo, num emaranhado de dez mil palavras consecutivas.

Não creo, tampouco, que se trate apenas de uma falha do nosso sistema educacional (embora só Deus saiba o quanto este é falho). Ninguém esperará que, se todas as crianças forem ensinadas a jogar beisebol, todas serão talentosas jogadoras de beisebol, ou que cada criança que aprende a tocar piano deve ser exímia pianista. Em praticamente todos os campos da atividade humana, aceitamos a idéia de um talento capaz de ser encorajado e desenvolvido, mas que não pode ser criado do nada. No meu modo de vez,a leitura – uma atividade muito difícil – também é um talento. Permitam-me contar-lhes como cheguei a esta descoberta.

Quando adolescente, por vezes eu lia histórias em quadrinhos. Minha personagem predileta, se lhes interessa saber, era o Tio Patinhas. As revistas custavam dez cents, mas, é claro, eu as lia gratuitamente na banda de jornais do meu pai. Eu costumava perguntar, então, como alguém poderia ser tão bobo a ponto de gastar dez cents naquilo, quando era possível ler tudo em dois minutos, com um simples correr de olhos, na própria banca?

Até que um dia, viajando de metrô para a Universidade de Columbia, me flagrei dependurado na alça de um vagão lotado, sem ter nada à mão para ler. Por sorte, uma jovem adolescente, sentada à minha frente, estavalendo uma revistinha. Às vezes isso é melhor que nada, de forma que me ajeitei numa posição a partir da qual pudesse enxergar as páginas que estavam abaixo. (Felizmente, consigo ler as coisas que estão de cabeça para baixo com a mesma facilidade com que as leio de cabeça para cima.)

Passados alguns segundos, então, comecei a me perguntar: "por que ela não vira a página?" Por fim ela virou. Ela levava alguns minutos para terminar cada página dulpa aberta, Enquanto eu observava seus olhos passando de um quadrinho para outro, seus lábio murmurando cuidadosamente cadapalavra, tive uma súbita percepção: ela procedia da mesma forma que eu faria, caso estivessediante de palavras inglesas escritas no alfabeto hebraico, grego ou cirílico. Conhecendo vagamente os respectivos alfabetos, seria preciso que eu identificasse primeiro cada letra, depois pronunciasse seu som, depois as reunisse e, por fim, reconhecesse a palavra. Depois, eu teria de passar para a palavra seguinte, repetindo o processo. Quando, dessa, forma, tivesse percorrido várias palavras, eu teria que voltar para combiná-las. Podem apostar que, em tais circunstâncias, minhas leituras seriam muito escassas. A única razão por que leio é que, quando lanço os olhos sobre uma linha impressa, consigo enxergar todas as palavras de uma só vez.

A diferença entre o leitor e o não-leitor cresce inexoravelmente com o passar dos anos. Quanto mais um leitor lê, mais informações ele colhe, mais extenso se torna seu vocabulário e mais familiares se tornam as diversas alusões literárias. A leitura torna-se cada vez mais fácil e prazerosa para ele, ao passo que , para o não-leitor, ela se torna cada vez mais dificultosa e menos gratificante.

Em decorrência disso, existem e sempre existiram (seja qual for o nível de instrução de uma sociedade em particular) os leitores e os não-leitores, com os primeiros formando uma exígua minoria, inferior, eu imagino, a 1% da população.

Calculo que 400 mil americanos leram alguns dos meus livros (em uma população de 200 milhões), sendo que me consideram, e também eu me considero, um autor de sucesso. Um livro que consiga vender dois milhões de cópias em suas edições americanas será considerado um notável best-seller – e tudo o que isto significa é que 1% da população americana se deu ao incômodo de adquiri-lo. Desse total, ademais, posso adivinhar que metade, no mínimo, não consegue ir além de percorrer, aos tropeços, algumas páginas, procurando as partes pornográficas.

Essas pessoas, os não-leitores, esses passivos receptáculos do entretenimento, são terrivelmente volúveis. Passam de uma coisa para outra, numa eterna perseguição a qualquer artifício que lhes ofereça o máximo possível, com um mínimo de solicitação. Dos menestréis para os espetáculos teatrais, do teatro para o cinema, do cinema mudo para o cinema falado, do preto-e-branco para o colorido, do toca-disco para o rádio e, novamente, do cinema para a televisão, para a televisão a cores, para o cassete. Que importância tem isso?

Contudo, ao longo de todo esse processo, a fiel minoria, inferior a 1%, alimenta seu vínculo com os livros. Só a palavra escrita pode exigir tanto desse grupo minoritário, só ela pode forçar sua criatividade a vir à luz; só a palavra escrita pode moldar-se às necessidades e aos desejos desse grupo, e só ela pode proporcionar a ele aquilo que nenhuma outra coisa é capaz de proporcionar.

livro pode ser um instrumento antigo, mas é também o mais avançado, e os leitores jamais serão seduzidos a abandoná-lo. Eles permanecerão uma minoria, mas permanecerão.

Dessa forma, apesar das palavras do meu amigo em sua palestra sobre os cassetes, os escritores de livros jamais estarão ultrapassados ou superados. Escrever livros pode não ser um caminho para o enriquecimento (ora, o que é o dinheiro?), mas, como profissão, haverá sempre de existir
 
Asimov e Millôr, apesar dos gêneros diferentes pensam as mesmas coisas

Isso me lembra uma camisa que encontrei num site certa vez: A Book: The Ultimate Laptop :D

É ótimo ver que, com o passar dos tempos, o livro continua aqui, firme e forte, e sendo "ameaçado" pelas mesmas questões de sempre, mas sobrevivendo!
Péssimo é o fato de que o meio literário continua restrito a poucos, embora, pelo o que eu penso, não por falta de oportunidade e sim por falta de incentivo...
 
Anica,aonde você encontrou tão belas palavras do Asimov????
Se puder me ajudar...
Curto ele pacas...
Abraço
 
É uma antologia de ensaios dele que a Nova Fronteira lançou em 92, "Isaac Asimov Antologia, volume 1". =D
 

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