Primeiro relato: O Tradutor
Parte 1 – O tradutor
“Cabo Fillehan, seus serviços como soldado e poliglota são requisitados para o próximo passo na missão ‘Passchendaele’. Uma equipe de soldados do batalhão do General Plum está a caminho para buscar-lhe. Carregue seu rifle, muna-se com algumas granadas e espere no limite norte do Cume de Messines, e espere pela sua escola. Eles chegarão à meia-noite pontualmente. Se houver atraso de 10 minutos, recolha-se e avise seus homens para a batalha. Do contrário, venha com eles até a Mata Polygon, então você receberá outras ordens.
28 de Setembro de 1917, Gen. D. Haig.”
Isso era tudo o que continha numa carta que recebi. Eu me encontrava, na ocasião, no Cume de Messines, fui mandado para lá para sustentar a ocupação do local e coordenar a defesa externa. O Cume havia sido conquistado pelo General Plumer cerca de um ano antes, e de certo era de extrema importância estratégica para a ocupação da Bélgica por parte dos Aliados.
O lugar tornara-se um acampamento de soldados ingleses e franceses, muitos dos quais eram mandados para apoiar a empreitada comandada pelo General Doulgas Haig, o remetente da correspondência, porém algumas técnicas haviam sendo advogadas pelo General Plumer, com quem tive algum contato quando ele me requisitou para cumprir algumas ordens aqui. O mais estranho é que minha posição na hierarquia é extremamente baixa para as ordens as quais recebi, e até mesmo alguns cadetes deram risada de certos planos que tracei para a segurança, porém nada aconteceu até hoje. O local se tornou um sítio de planejamento militar para possíveis ataques que nunca viriam acontecer, em conjunto com o estado de acampamento. Iniciou-se, até mesmo, a construção de alguns chalés, porém eles acabaram tornando-se lenha para a fogueira das centenas de barracas que transitaram durante este ano que aqui estive.
Sou inglês, natural de Liverpool. Cresci numa família de artesãos: minha mãe alfaiate, meu pai marceneiro e minha avó (a única que conheci) costureira que, em conjunto com minha mãe, mantinha uma pequena loja no centro da cidade que fazia roupas por encomenda. Não tínhamos muito dinheiro, mas o bastante para viver bem na casa em que vivíamos, numa vizinhança tranqüila.
Apesar de minha antecedência, nunca tive talento para trabalhos manuais, mas era astuto em aprender línguas e manusear objetos cortantes. Por essas e outras, era muito companheiro de Yuri, um vizinho russo que tinha. Era um gordo contente, que vivia escondendo o medo misterioso que tinha, sendo também muito feliz e jovial com todos: sua casa pequena recebia pessoas todos os dias para o almoço, porém Yuri jantava apenas aos sábados, ocasião em que eu estava sempre presente. Ele fugiu da Rússia 10 anos antes do ano em que nasci, 1897. A data de sua fuga compartilhava também a data de quando meus pais se conheceram. Enfim, Yuri nunca revelou-me seu sobrenome ou o motivo pelo qual fugira da Rússia: temia até mesmo a sombra de seu inseparável felino, Lêniro.
Yuri era alguém muito inteligente, um poliglota, que falava com fluência alemão, inglês hebraico. Ensinara-me com maestria o alemão, e apenas me ensinava hebraico quando me ensinava sua religião, o judaísmo. Em família de pais protestantes, eu mantive em segredo minhas tendências para o judaísmo, porém tenho costumes fundidos das religiões, porém meu lado judeu pesa mais: me fascinei muito como tais crenças trouxeram-me grande paz em momentos turbulentos de minha vida. Hoje, em guerra, tenho decepcionado-me muito com o homem, porém os ensinamentos judeus me trazem muito conforto em épocas de dor. Apesar de discordar de certos costumes, obedeço alguns desses por respeito a D-us*, quem creio que há de me acudir em horas de desespero.
Foi Yuri também quem sugeriu-me o militarismo, ao conhecer meu fascínio e habilidades com facas. De fato eu tinha uma afinidade grande com objetos cortantes, tendo, aos dezesseis anos, impedido um estupro que sofreria minha irmã mais velha, Felicia, cortando a mão do inescrupuloso homem com uma pequena faca que sempre carregava comigo, estando aproximadamente dez metros longe deste. A faça atravessou a mão do animal, fazendo-o desmaiar, imagino eu por ser intolerante à visão de sangue.
No início meus pais eram contra a idéia de eu me alistar ao serviço militar, pois imaginavam que a guerra levaria minha vida embora logo no início, e que eu deveria ser repórter do jornal local, levando uma vida pacata e dando-lhes netos saudáveis e fortes. Eu relutava, dizendo que se eu ficasse em Liverpool, seria triste e nenhuma mulher haveria de me querer. Após severas brigas, eles aceitaram que, querendo ou não, eu prestaria serviço militar para o meu país. Yuri conseguira fazer minha cabeça de jeito para isso, motivo pelo o qual meus pais brigaram muito com ele após eu sair de casa.
Quando fui requisitado para ir ao Cume de Minesse, fiquei triste, pois havia começado um namoro às escondidas com Linda Brook, a enfermeira do meu pelotão de treinamento. No último encontro a sós entre eu e Linda, ele me entregou um pingente que usava no pescoço, para que eu trouxesse este de volta. Isso me deixou pesaroso ao extremo. Parti a navio.
Na viagem eu tive o desprazer de assistir a morte de um caro amigo meu, o Cadete Hërman. Morrera de febre amarela, agonizando em meus braços. A viagem e o início de minha estada na Bélgica fora muito infeliz para mim, até que, após dois meses de profunda depressão, recebi as cartas de minha família e amante. Essas reacenderam meu coração, pois apenas traziam notícias boas.
Passado sete meses após as primeiras cartas soube que Linda fora requisitada para ser enfermeira no mesmo lugar onde eu me encontrava, pois chegavam ali diversos soldados que precisavam de atenção especial. Um mês depois, vejo-me encolhido, embebido em lágrimas e, novamente, uma profunda depressão toma conta de mim: o navio em que Linda se encontrava fora bombardeado três dias após ter saído do cais. Após isso não ouvi mais nada e desatei-me a chorar em frente aos oficiais que me deram tal notícia. Saíram embaraçados de minha cabana, onde permaneci vivendo de água apenas por uma semana. Passei a odiar a guerra, a odiar aqueles que a inventaram e a odiar quem começou esta. Odiei também as palavras sedutoras de Yuri, que me trouxeram para o militarismo. Odiei, também, a mim mesmo por amar cegamente alguém, e por tentar dividir esse amor com o que tinha pelo meu País. Odiei o chão em que pisava, e o ar que respirava.
Após eu me recompor do estado em que estava, mas ainda triste, me tornei um homem amargo e ríspido. A partir do momento em que saí de minha bacana, eu quis terminar minha parte naquela guerra ou ser expulso dela, porém não me deixei ser relapso: já que estava ali, eu seria o melhor. Tornei-me severo para com todos os meus subordinados, e absolutamente obediente para com os meus superiores. Trabalhei para sair dali e voltar para minha casa, ao lado de meus pais.
Quando recebi a carta que já citei encontrei-me muito animado, pois imaginava que, finalmente, voltaria para casa. Quando a li, apesar de sentir-me repentinamente triste, não baixei a cabeça e, como requerido, esperei pelos soldados à meia-noite no local combinado. Comigo estavam apenas os guardas que ficavam naquela posição, no total, cinco pessoas. À meia-noite outros cinco soldados chegaram: a minha escolta. Após apenas quinze minutos de descanso e vistoria (eu podia levar apenas o que a escola tinha ordens para que deixasse comigo: todas as cartas ou fotos foram jogadas foram, com exceção de uma de meus pais; o documento que me dava direito a viagem de volta para a Inglaterra foi jogado fora, junto com meu passaporte), partimos.
Notas:
*Judeus ortodoxos não escrevem o nome de Deus de forma alguma, usando esse tipo de escrita como recurso para expressão do nome quando necessário.
Continua.