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[L] [Alcarinollo] [Encontro com o Elfo]

Alcarinollo

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Encontro com o Elfo


[FONT=&quot]E[/FONT]stou no centro, é o lusco-fusco de uma quarta-feira comum. Caminho anônimo pela multidão que me provoca, vez por outra, uma excitação fátua. Não tenho rumo certo. Acabo de sair da biblioteca pública. O ar da tarde que finda é quente e viciado, e o barulho do tráfego rouba toda a beleza da praça bem cuidada, Liberdade vigiada, delimitada, cansada e melancólica no centro de Beagá.
Ainda assim, caminho em direção a seus passeios, atraído pelo seu verde planejado, mas de qualquer forma verde, por suas palmeiras que dizem de um império há muito eclipsado; e vou me deixando ficar por entre os passeios. O velho coreto é o centro de um mundo outro, anacrônico e ao mesmo tempo profundamente vivo em minha alma de menino criado no mato da fazenda.
Foi assim, com a alma totalmente a descoberto, o corpo despreocupado, a mente vagando num ponto qualquer da estrada de ferro Oeste de Minas, que aquele olhar me captou, e senti-me imediatamente capturado. A presa, hoje bem sei, sabe antes do predador que logo a devora. Antes de vê-lo, sente-o nos ossos, fareja-o – seu cheiro entrando-lhe pelas narinas, misturando-se ao ar que respira, devorando-a por dentro, veias, órgãos, pele – pressentindo o cheiro de seu hálito morno antes mesmo da primeira mordida, que é tão somente a consumação de uma integração já realizada através do olhar faminto que devora, além da carne, a alma.
Eriçados os pêlos, desde a nuca até o dedo mínimo do pé, senti e acusei o bote mortal daquele olhar. Onde sua fonte, onde o corpo que, faminto, devorava-me antes mesmo do toque já pressentido e, de certa forma, ansiado? A procura, entretanto, que o instinto animal exigia ser por uma rota de fuga, por um caminho que afastasse da influência daquele olhar ferino; foi guiada por esse desejo outro, o desejo do outro, que a conduziu direto e sem dificuldade à fonte esmeralda do perigo mortal. E foi então que tive a certeza, absoluta, visceral, de que aqueles olhos verdes, que me cortavam carne e espírito, mirando sem disfarce e sem rodeios, pertenciam não a um homem, uma mulher ou qualquer outra criatura que eu já tivesse visto ou sabido caminhar por este real do nosso mundo. Aquele era o olhar profundo, intenso ... e vazio, de um elemental, um elfo (macho, fêmea, que importa?) antigo como o próprio mundo, emanando magia e o poder de incontáveis eras: predador faminto de mais que simplesmente minha carne e meu sangue.
Tantalizado por aquele olhar que se fizera poderoso em antigos e incontáveis combates através das eras, aguardei, imóvel, indefeso, sua aproximação e o contato óbvio, necessário (pensava eu, tolamente) à consumação da caçada. Pessoas passavam entre mim e ele, desviavam-se, vultos sem rosto, sem importância, que logo não passavam de meros espectros que se desvaneciam enquanto a luz daquele olhar iluminava-me o mundo de outra forma, na verdade revelando-me um outro mundo, enquanto os lábios mudos cantavam em minha mente um encantamento ancestral, sensual, selvagem e indescritivelmente belo – Galadhriel falando à Comitiva em Lothlórien – pude perceber, num canto ainda lúcido de minha mente cada vez mais dominada, seduzida e submissa. Iniciamos então uma caminhada silenciosa, lado a lado, pelas calçadas já sob a luz das luminárias antigas, que emanavam uma claridade leitosa, tingindo as folhas verdes de um tom prateado que lembrava uma luz primordial, gerada por uma árvore há muito tombada.
A cor de seus cabelos, o perfume e a maciez de sua pele, a delicadeza de seu toque, a suave melodia de sua voz eram sensações fortes, quase palpáveis, que inundavam meus sentidos, impregnando-me de tal forma com a sua presença que já não mais me reconhecia, a não ser pelo contraste, o antagonismo de sua suave presença frente ao meu ser toscamente primitivo – Felagund cantando (e encantando) os homens na noite quente de uma planície em Beleriand, que a memória já esqueceu e o tempo enterrou; atraído pela juventude, a inocência daqueles edain a quem acabou amando, e por quem foi intensamente amado: amor a primeira vista, primeiros homens, primeira caça... homens estes que, apaixonados pela luz do olhar, a beleza quase divina e o encanto da voz, entregaram vidas e destinos, fundindo-se em carne e espírito àqueles a quem já inexoravelmente amavam.
E foi assim aquele encontro. Horas, dias, semanas, meses. Como contar um tempo tão intenso, tão primordial, que caminha e se faz mais espesso que a própria matéria? – em Lothlórien, o tempo passa mais devagar... – outra magia dos elfos, para quem o tempo é nada mais que uma longa espera, uma longa e enfadonha espera pontuada por curtos e breves (não tão curtos para nós, nem mesmo tão breves), mas intensos momentos de êxtase, quando encontram a temporalidade na união, cada vez mais furtiva e improvável, com a raça dos filhos mais novos.
Quando acordei em meu quarto, numa tarde quente e insuportavelmente abafada de uma terça-feira outra – havia se passado todo um mês, tão rápido, tão intenso que eu sequer dele tomara ciência – a sensação de solidão, inda mais, de abandono, trouxe-me lenta e dolorosamente de volta ao mundo dos homens, este sim, feito de encontros e partidas, onde se perde no momento mesmo que se encontra, o rio de Heráclito arrastando as almas em sua correnteza irresistível. Os olhos se foram assim como um dia chegaram e eu, o peito esmagado numa agonia de corpo e alma, a garganta seca e dolorida – palavras nunca, jamais ditas, mortas sem nascer, perdidas no nada – caminhei até a janela por onde chegava o vento morno que momentos antes acariciava as folhas e os frutos maduros das mangueiras de uma chácara vizinha. Galho, folha, raiz e broto – a dor profunda de uma falta impossível de ser medida, impossível de ser vivida, mas que foi vivenciada em verde êxtase; o passar de cada minuto como o ir-se, folha a folha, do outono fecundo ao inverno de frio e solidão.
E a lembrança deste encontro, Elfo Verdefolha, é um mistério mágico guardado no fundo do peito, como uma Silmarill feita de bruma e sonho, brilhando nas mãos de um Fëanor que nada tem de noldo. Assim se foi, e é só.


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Alcarinollo Belo Horizonte, 20 de outubro de 2006.:cerva:
 

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