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[L] [Alcarinollo] [A Noite do Demônio]

Alcarinollo

Usuário
I


Num salto silencioso, a gárgula negra iniciou sua queda do alto do grande hotel no centro da cidade. Misto de homem e monstro, ave e demônio, a cinco metros do chão a criatura de olhos vermelhos que fora Miguel, o escriturário, abriu as asas e ganhou altura até o interior das nuvens densas que cobriam a cidade naquela noite de sábado, no frio mês de junho. – Virgínia! Virgínia! O peito a cada segundo mais gelado gritava com todas as forças o nome da mulher que, naquele instante, casava-se na igreja central, alheia a sua dor e agonia. Um homem feito monstro pelo amor! O solitário Miguel, o pacato Miguel, o fraco Miguel transformado em poderosa gárgula vingadora. Renuncias a Deus? Renuncio! Reverenciarás a Satanás como teu mestre? Sim! Que graça tu queres, que presente, que poder? Quero Virgínia, que se casa hoje, quero tê-la para mim ou matá-la, para que ninguém a tenha! Assim será, Miguel, em ti viverá Murriadoc, o demônio, acólito do inferno!Voe agora, busque Virgínia e possua-a ou mate-a!
Amava-a mais que tudo, mais que a própria vida, porém nunca lhe dissera. Eram amigos de trabalho a mais de dez anos e ele não sabia que ela estava noiva, que iria se casar, até que ela lhe entregou o convite um mês atrás. Tarde, tarde demais para qualquer tentativa, para qualquer declaração, até que encontrou o homem caolho com o livro negro enquanto vagava bêbado, delirante, desesperado, pelas noites frias, pela chuva gelada, pela lama escura dos cantos ermos da cidadezinha em que vivera mediocremente os trinta anos de sua vida. Um pacto sinistro: a destra de um defunto arrancada à meia-noite, a orelha esquerda de um bode preto, uma hóstia pisada por um porco, o dente de um cão raivoso e o sangue arterial de seu pulso esquerdo aspergido por todo o pentagrama, desenhando a cruz invertida. Assim Miguel vendera sua alma invocando Satã, a única esperança de ter Virgínia para si, mesmo sabendo que na verdade não a teria jamais.
Estão saindo da igreja... a gárgula que já fora Miguel, pousada na torre do sino observa, olhos vermelhos, Virgínia e o esposo saírem em meio à tradicional chuva de arroz, rumo ao carro que os levará à festa. Virgínia, não, meu amor, eu te amo! Os olhos apertam-se num risco vermelho, numa meia-lua maligna, enquanto a voz do mal abafa o coração cada vez mais fraco. Vadia, porca traidora! Não, não, eu a amo, pare! Ela vai morrer, imbecil, vou cortar em pedaços aquela boca mentirosa! Não, não! Vou beber o sangue da cadela pelas tripas! Não, por favor, eu a amo, Vírgínia,não! Cala a boca, idiota, ela não te quis, vai foder com outro! Por favor, pare! Maldito frouxo, vou matar você também, mas agora não, não antes que veja aquela puta engolindo os bagos do maridinho... vou arrancar os peitos dela, lamber seu coração pelas costelas, rá, rá, rá! Não, nãoooooo! As garras fortes cravam-se na pedra sabão e a gárgula revira-se quase caindo no adro da matriz. Imbecil, se me matar também morre! Vá embora, suma, deixe-me, não quero mais! Rá, rá, agora é muito tarde, imbecil, você me pertence, me pertence! O buquê é jogado e o carro parte seguido por outros que promovem um buzinaço. Após a festa os pombinhos irão para um hotel fora da cidade... lá é que morrerão, quando estiverem prontos para foder eu é que irei fodê-los. Só para você, Miguel, só porque você pediu, rá rá, rá! Não, não! Virgínia, oh, Deus, piedade! Cala esta tua boca de merda, seu frouxo! Deus, rá, Deus te esqueceu!


II

A rodovia está deserta agora, duas da manhã de sábado. O homem dirige tranqüilo, sem pressa; uma mão no volante e a outra afagando os cabelos da esposa que dorme com a cabeça encostada em seu ombro. Não há estrelas. O céu encoberto torna a noite escura. O vento frio agita a copa dos eucaliptos plantados ao longo da estrada. A música no rádio é suave, uma balada inglesa “The King of Stone”, mas isto pouco importa. Se a felicidade é composta de momentos – pensa o homem – aquele é um dos momentos mais felizes de sua vida: a mulher que ama, o sucesso na loja, a futura família, todo um futuro maravilhoso desfila em sua mente enquanto o carro se afasta mais e mais das luzes da cidade rumo ao pequeno hotel escondido entre pinheiros e eucaliptos onde passarão a noite. Súbito, a noite torna-se mais escura e um calafrio percorre-lhe a espinha, fazendo seus pêlos eriçarem. Virgínia remexe-se em seu sono e parece querer acordar, o rosto até a pouco tranqüilo, agora marcado por uma expressão de sofrimento, como se tentasse em vão acordar de um pesadelo medonho. Por pura sorte, Augusto está em uma grande reta, e o movimento brusco que involuntariamente o faz guinar o carro não provoca um capotamento. Houve um barulho forte, Virgínia finalmente acordou, assustada, e ele, o coração aos pulos, com um esforço enorme conseguiu controlar-se, controlar o carro, e agora está parado no acostamento da rodovia deserta.
- Meu amor, o que ouve? A expressão de perplexidade da mulher encontra eco nos olhos de Augusto, que imagina que o carro possa ter sido atingido por uma pedra ou um galho de alguma das árvores que se espalham pelos dois lados da estrada.
-[FONT=&quot] [/FONT]Não sei ainda, querida, mas fique no carro, que vou sair para dar uma olhada... deve ter sido uma pedra...
Ao sair do carro, Augusto examina cuidadosamente cada roda, checa os pára-choques, o porta-malas e, finalmente, quando passeia a mão pelo teto, encontra dois sulcos profundos, que percorriam toda a extensão do teto, arrancando tinta e metal, por muito pouco não rasgando o teto até o interior do carro. Enquanto se demora analisando o estrago, a porta oposta se abre e Virgínia surge, uma expressão preocupada.
-[FONT=&quot] [/FONT]O que houve, Augusto? Jogaram pedras no carro?
-[FONT=&quot] [/FONT]Não, meu amor, parece que foi um grande galho – os olhos percorrendo até onde alcançam a extensão que ficou pra trás, sem divisar nenhum sinal de árvore ou galho sobre a estrada – tivemos uma grande sorte, poderíamos ter morrido se ele tivesse atingido o pára-brisa. (continua...)


E aí, galera, gostaram? Se quiserem mais, digam primeiro o que acharam deste início (podem apostar que o melhor ainda está por vir)

Abração do Alca!:cerva:
 
Pô, pra falar a verdade esse é o único texto que leio por completos aqui no CdE há muito tempo. Tá muito, mas muito bom. É uma história alternativa, cheia de conflitos e clímaxes. Parece, ao mesmo tempo, um texto narrativo e jornalístico. É um ótimo texto! Quero, sim, uma continuação =]

A única ressalva que faço é: tome cuidado com a inclusão dos personagens no texto. Quando você nos apresentou Augusto, fê-lo de modo brusco e tals. Mas no resto, é uma sequência que faço questão de acompanhar. Quero ver a relação Miguel-Inferno e Miguel-Deus, como também Miguel-Murriadoc (me lembrou pacas Meriadoc, o nome :mrgreen: ).
 
Pô, pra falar a verdade esse é o único texto que leio por completos aqui no CdE há muito tempo. Tá muito, mas muito bom. É uma história alternativa, cheia de conflitos e clímaxes. Parece, ao mesmo tempo, um texto narrativo e jornalístico. É um ótimo texto! Quero, sim, uma continuação =]

A única ressalva que faço é: tome cuidado com a inclusão dos personagens no texto. Quando você nos apresentou Augusto, fê-lo de modo brusco e tals. Mas no resto, é uma sequência que faço questão de acompanhar. Quero ver a relação Miguel-Inferno e Miguel-Deus, como também Miguel-Murriadoc (me lembrou pacas Meriadoc, o nome :mrgreen: ).

Assino aqui e acrescento...
Continua rapido...
Adorei...:yep:
Tou ansioso por conhecer o resto da historia...
E voçe dize que ainda nao era o melhor??8-O
Meus Deus...
Quero ler...
*yams*
 
Está aí a parte II

Virgínia instintivamente leva a mão ao pescoço, segurando entre os dedos finos o pequeno pingente de ouro – não é apenas sorte, meu amor, há alguém velando por nós, nos protegendo de todos os perigos... enquanto ela falava, o som de galhos se quebrando na escuridão da noite guiou o olhar de Augusto de volta para as árvores. Por um instante, pareceu-lhe que da escuridão à sua frente duas pequenas luzes vermelhas acenderam-se para, no instante seguinte, desaparecerem sem deixar vestígios. O vento frio e o som que ele produzia nas copas dos eucaliptos foi tudo o que ficou, enquanto o olhar do homem teimava em penetrar na escuridão além das árvores.
- Vamos embora, meu amor, aqui está tão frio... – a voz de Virgínia trouxe Augusto de volta á estrada – você tem razão, minha querida, vamos logo embora daqui.

Mas algo despertara um alarme na mente do homem, destruindo definitivamente a tranqüilidade que antes reinava em seu espírito. O carro retornou à estrada e seguiu veloz rumo ao hotel, que ficava mais alguns quilômetros à frente. Tão logo ele partiu, a sombra negra de onde faiscavam dois globos que eram como brasas vivas lançou-se outra vez contra o céu nublado, longe o suficiente para não ser notada, perto o bastante para não perder de vista a caça daquela noite.
- Seu idiota, o que estava tentando fazer? Quase me mandou de volta para o inferno! Liberte-a, demônio, não quero mais que Virgínia mora! Fique comigo, mate o marido, mas não toque nela... Não toca-la? Não mata-la? Pedes demais a Murriadoc, macaco com alma! Há dez mil anos não provo o sangue de uma virgem, a carne fresca, macia e doce de uma puta cristã ... Não fale assim dela, maldito, você não vai tocá-la! É verdade, macaco, não vou mesmo. Será você, a cada momento, cada gesto, será você sentindo a carne rasgar, o perfume do sangue quente jorrando... sentindo o gosto suave espalhar-se pela boca, descer pela garganta, aquecer teu estômago. Tu és mesmo um mal agradecido! Tudo isto o mestre te deu, e você agora quer por tudo a perder...

Enquanto discutiam, o demônio habilmente os conduzia ao encalço do casal, que agora já estacionava em frente ao hotel rústico. O chalé reservado para os noivos era o mais afastado, onde o silêncio da noite só era perturbado pelo som do vento e o pio das corujas que caçavam na noite. Sem ter onde pousar furtivamente na grande clareira que se estendia por toda a fachada da sede do hotel, onde agora os noivos brindavam com champanha, enquanto a pouca bagagem era levada ao chalé por um sonolento carregador, a gárgula agitou mais forte as grandes asas negras, ganhou altura e sumiu em meio as nuvens carregadas que começavam a baixar rumo a terra, prenunciando uma geada fria.
- Macaco, tenho fome! Que tal uma entrada antes do prato principal? Do que você está falando, demônio – e Murriadoc já baixava, voando num grande círculo descendente em direção ao chalé de onde saía um carregador contente com a gorjeta que ganhara na portaria. Um arrepio gelado, o eriçar dos pêlos, um frio que nascendo do estômago pouco a pouco foi tomando todo o seu peito o fizeram para por um segundo – uma sombra, sim, foi uma sombra ... o barulho das asas de uma coruja... só isso ... só isso ... não tem nada aí atrás, não tem porque correr .... meu Deus, meu Deus!...

Um grito teria escapado da garganta do jovem, se a grande e pesada garra não tivesse ali se alojado, esmagando carne e ossos, alçando o corpo já sem vida, olhos atônitos, violentamente ao ar, numa imagem que há milênios não se repetia sob a terra, um antigo terror despertado, enquanto Miguel gritava em desespero sentindo nas próprias mãos os últimos espasmos de um corpo já sem vida, a entrada do demônio, que ele teria que provar, pedaço a pedaço, num pesadelo de horror que ele mesmo desencadeara.
 

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