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Kappa e o levante imaginário (Ryunosuke Akutagawa)

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Please understand...
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Eu ia escrever uma resenha para esse livro, mas encontrei essa no google, da revista Época, que já diz tudo que eu gostaria de dizer.

O ficcionista japonês Ryunosuke Akutagawa (1892-1927) é conhecido no Ocidente por um conto apenas: “Rashomon”, de 1915. Ainda assim a pequena fama se deu menos pela importância literária do autor ou o conteúdo da história que pela versão cinematográfica de Akira Kurosawa. O filme, lançado em 1950, resulta na combinação de dois contos de Akutagawa. De “Rashomon”, ele retirou a ambientação no pórtico de Kyoto, conhecido como Rashomon, no final do período Heian (794-1185). A então capital do império se encontra na ruína – e seu antigo pórtico monumental passa a servir como ossário e valhacouto de criminosos e mendigos.

Como o enredo de “Rashomon” é básico demais para um longa-metragem – o insólito encontro de um mendigo com uma mulher que explora os cadáveres –, Kurosawa usou a trama mais complexa de “No matagal”, publicado em 1922: o assassinato de um samurai é relatado por três testemunhas, uma delas o fantasma da vítima.

As duas histórias dão a medida do talento fabuloso (de “fábula”) de Akutagawa. Faltava no Brasil, porém, um volume que trouxesse o conjunto da obra do autor. Kappa e o Levante Imaginário (Estação Liberdade, 352 páginas, R$ 47) preenche o vazio. Trata-se de uma antologia com 11 dos principais relatos breves do escritor, inclusive os que inspiraram Kurosawa, em tradução do japonês de Shintaro Hayashi, autor do prefácio da edição.

O volume revela um autor eclético, entusiasmado pelas crônicas medievais do Japão, pelos narradores russos, como Gógol e Dostoiévski, pelos relatos intimistas de Marcel Proust e até pela ficção científica de H.G.Wells. Todas essas inclinações e esses gêneros díspares se chocam sem se misturar na narrativa.

A novela Kappa e o levante imaginário, de 1927, começa como uma ficção científica em torno de um animal mítico, o kappa, uma espécie de anfíbio extraterrestre inteligente. À medida que o narrador discorre sobre os hábitos sociais dos kappas, a aventura se converte em alegoria política. Alguns críticos do tempo dizem que Akutagawa mascarou com ficção científica sua apologia do socialismo para evitar punições da polícia política da monarquia.

Sua vocação contestadora não se resume ao presente. Ela se estende à Idade Média. O autor recorre às fontes mais antigas da literatura japonesa – como as coletâneas de contos Ujishui Monogatari (1213-1219) e Kokonchomonju (1254) – para reinventá-las. “O nariz”, ao modo de Gógol, conta o drama de um burocrata que usa de todos os recursos para disfarçar o nariz grande – numa paródia à vaidade dos altos funcionários do império. Em “Inferno”, ele questiona os limites da arte com a história de um pintor que incendeia a filha a fim de pintar um quadro perfeito do sofrimento dos pecadores no mundo dos mortos.

O último texto do livro, “Rodas dentadas”, não é ficção, mas um diário íntimo in extremis. O tema recorrente é o medo de enlouquecer, como sua mãe quando ele era criança. Ele retrata as pessoas da família como seres mais alienígenas que os kappas. E se martiriza até as derradeiras linhas, em abril de 1927: Já não me restam forças para continuar escrevendo. Viver assim é uma tortura indescritível. Alguém poderia me estrangular em silêncio, enquanto durmo? Três meses depois, Akutagawa se suicidava, ingerindo cianeto de potássio. Tinha 34 anos.

A consagração de sua obra se consolidou em 1950, quando o maior prêmio literário do Japão foi batizado com o nome do atormentado e genial contador de histórias.

Fonte: Época

Trata-se de um escritor extraordinário. Seus contos são uma oportunidade rara de encontro com o imaginário da cultura japonesa, e representam uma espécie de transição entre o passado feudal do Japão e o início de sua mentalidade moderna, quando o país passou a permitir influências estrangeiras. Destaques para o primeiro conto, que satiriza os costumes de uma sociedade imaginária, e para o último, autobiográfico, em que o autor consegue fazer com que o leitor mergulhe para dentro de sua cabeça.
 
Dando um up no tópico, terminei de ler essa coletânea e outra, chamada Rashomon e outros contos, publicada pela Hedra e com traduções da Madalena Hashimoto Cordaro e da Junko Ota. Basicamente, nessa edição da Hedra você só tem, em comum com a edição da Liberdade, o Rashomon e o No matagal; os outros todos são contos distintos. É meio difícil dizer qual seleção é melhor, pois as duas são espetaculares. Akutagawa é fabuloso.

Dessa edição da Liberdade, gostei muito de Os Salteadores. O Rodas dentadas é também impressionante, mas gostei particularmente dOs Salteadores pela contraposição que ele faz de uma trama romântica e em muitos pontos altruísta, com uma descrição crua da realidade. Por exemplo, em duas partes do conto, o Taro e o Jiro, irmãos salteadores que gostam da Shiko, estão andando e pensando em várias coisas ao mesmo tempo, especificamente e respectivamente no amor da Shiko pelo outro irmão e no amor do irmão. Só que, enquanto eles estão andando, o Akutagawa vai descrevendo carcaças e corpos apodrecendo, de modo que você fica com esse choque entre duas realidades que é muito forte e que obriga tanto as personagens quanto o próprio leitor a constantemente pôr o pé no chão.

E a tal ponto que o final do conto, que é um final feliz, deixa o leitor com um pé atrás... Pois acho que os finais felizes são muito mais perigosos que os finais infelizes. Eles dão uma noção, pro leitor um pouquinho mais velhaco, de que algo está faltando, que algo deu errado, ainda mais quando estamos falando de uma realidade tão nua e crua como essa do conto. Mas, se você reler o conto do Akutagawa, vai perceber o quão habilidoso ele foi em tecer um final feliz numa história de todo infeliz -- ou seja, como ele fez com que as personagens vissem uma esperança no fim do túnel... e de como elas de fato encontraram a esperança no fim do túnel.

O Rodas dentadas é lindo também. Possui um final impactante... Uma das coisas mais poderosas que já li.

Particularmente, gostei mais da seleção de contos da Hedra. Terra morta é lindo: conta a morte do Matsuo Bashô, o grande haicaísta japonês. Só analisando o título é o suficiente pra você ver as nuances da narrativa do Akutagawa: o haicai é famoso por ser uma espécie de celebração objetiva da natureza, ele eleva a natureza para o que muitas vezes nos esquecemos que ela é: isto é, ela mesma, a natureza em tudo que de amplo ela possui. Assim, a morte do Bashô, ao ser associada com a terra morta, é a um só tempo uma ironia, uma homenagem, uma catástrofe... pois o Bashô não queria fazer com que a natureza dependesse de sua poesia. Ele, quando muito, queria que as pessoas passassem a ver a natureza de modo mais integrado e amplo a partir de seus poemas, o que é um aspecto fundamental do haicai: o despojamento, a humildade.

Enfim. O que pude perceber, lendo Akutagawa, é que sua literatura faz uma ponte de contato muito forte e sólida com a cultura ocidental. É algo que nomes como Yukio Mishima terminariam de solidificar. Mas, de todo modo, são narrativas com tudo o que as narrativas podem possuir de refinado e poderoso: análises profundas que não necessariamente recaem em abismos filosóficos; mas, antes, acontecem na superfície, deixam ao leitor a maior parte das dúvidas e, como diz o Yukio Mishima ao falar sobre o funcionamento da arte, deixa o leitor à beira do abismo, sozinho.

Pra quem quiser ter uma noção disso que estou dizendo, o conto Rashômon é um excelente exemplo. Sem dúvidas, é um dos melhores contos do Akutagawa -- mas só lembrando, a respeito do filme homônimo do Kurosawa, e como dito pela matéria da Época citada pelo Wilson, que existe pouco do conto do Akutagawa no filme do Kurosawa; o Kurosawa usou muito mais o conto No matagal que de fato o Rashômon. Basicamente, podemos dizer que, a partir de No matagal, o Kurosawa chegou às questões sutis que o Rashômon incute no leitor.
 
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