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Ian Mcewan

Sonífera

Usuário
Queria saber se o pessoal por aqui já ouviu falar de um dos meus escritores contemporâneos favoritos!?
 
Nossa, desse título eu não estava sabendo ainda... semana passada terminei Amsterdam, e estou esperando a chagada de Na Praia ansiosamente!
Com certeza vc já deve ter lido Reparação, mas e Serena?
 
Serena é meu segundo favorito :grinlove:

Gostei bastante de Amsterdam também, embora não tanto quanto de serena e reparação. Acho que o legal do McEwan é isso: mesmo que não seja um livro que você vá adorar como Reparação, ainda assim é ótimo, bem acima da média. sempre que estou em dúvida sobre o que ler, pego algo dele porque sei que não terá erro ^^
 
Traduzindo Ian McEwan
21 de Junho de 2018 às 12:25
por Jorio Dauster



O primeiro Ian McEwan a gente nunca esquece. Em 2008, eu já havia traduzido mais de uma dezena de livros para a Companhia das Letras, em particular várias obras notáveis de Vladimir Nabokov, entre as quais suas duas obras-primas – Lolita e Fogo pálido. Eis que me oferecem o primeiro romance, escrito trinta anos antes, de um escocês chamado Ian McEwan, àquela altura um autor consagrado mas do qual eu nada havia lido. E
O jardim de cimentofoi um caso realmente de amor à primeira vista, que só fez se fortalecer desde então à medida que eu trouxe para o vernáculo outros sete romances dele, correspondendo a mais da metade de sua produção nesse gênero. Quem sabe isso até me valesse uma menção no Guinness Book of Records...

O jardim de cimento pertence à primeira fase do autor que, por conta de duas coletâneas de contos e de alguns outros romances, lhe valeu o cognome de Ian Macabro. De fato, é a história horripilante de quatro crianças que, após a morte em rápida sucessão do pai e da mãe, envolvem esta última num precário sarcófago de cimento e a depositam no porão da casa, tudo isso a fim de não serem mandados para algum asilo de órfãos. A circunstância de que os dois irmãos mais velhos desenvolvem uma relação incestuosa e de que a situação se deteriora com a chegada de um novo personagem, namorado da irmã, garantem que McEwan não pretende brindar o leitor com um luminoso final feliz.

Em contraste e por acaso (já que verti livros novos e relançamentos), meu segundo McEwan, Solar, publicado em 2010, representou a maior incursão do autor na seara cômica. Conta a história de um ganhador do Prêmio Nobel de Física que tem uma vida amorosa complicadíssima e, já meia-idade, vê uma possibilidade de reafirmação como cientista apropriando-se das ideias de um colaborador que morre acidentalmente em sua casa. Os incidentes pessoais e profissionais vão se acumulando de modo frenético à medida que se aproxima a inauguração, no Novo México, da usina de energia solar que serviria para resolver os problemas ambientais da Humanidade – e o final é tipicamente lúgubre. O importante aqui é ver em pleno desenvolvimento a faceta de Ian McEwan como estudioso de questões científicas e o grau de preparação de seus romances, uma vez que Solar nasce de um encontro entre artistas e cientistas numa ilha próxima ao Polo Norte onde eles buscaram uma visão comum dos desafios do aquecimento global.

O terceiro, Amor sem fim, foi publicado no Brasil em 2011, embora lançado em 1997. Num primeiro capítulo arrebatador, um balão se desprende de suas amarras e começa a deslizar desgovernado pelo campo, levando na cesta um menino e seu avô. Vários homens acorrem para segurar as cordas, mas não impedem que o balão suba aos céus levando apenas o garoto. O indivíduo que por mais tempo tenta evitar o desastre cai e morre, enquanto um dos sobreviventes, Jed, se apaixona pelo protagonista principal, Joe, que estava fazendo um piquenique idílico com sua companheira de muitos anos, Clarissa. A partir daí, Jed passa a assediar Joe alucinadamente, comprometendo inclusive o relacionamento de Joe com Clarissa. Amor sem fim reflete muito bem o crescente racionalismo de McEwan, tal como exposto nos artigos de Joe, enquanto as crescentes ameaças do monomaníaco correspondem a outra característica marcante do estilo de McEwan: o suspense, digno dos melhores romances policiais, com os momentos cruciais da trama em geral prenunciados por alusões sutis ou até simples mudanças do tempo. No caso do Amor sem fim, embora haja derramamento de sangue, McEwan curiosamente fecha o livro com um happy ending quase satírico e, à guisa de apêndice, um relatório psiquiátrico em que Jed é diagnosticado como sofrendo da Síndrome de De Clérambault – a convicção delirante de que alguém o ama apesar de rejeitá-lo. Qualquer semelhança com a introdução de Lolita não terá sido coincidência, pois McEwan é confessadamente um grande admirador de Nabokov.

O quarto foi Amsterdam, aqui publicado em 2012, dezesseis anos depois de seu lançamento. Dois grandes amigos – um famoso compositor e o editor de um jornal sensacionalista – fazem um pacto de eutanásia caso um deles venha a ficar mentalmente incapacitado como a ex-amante de ambos, recentemente falecida. A partir desta proposição simples, como é comum nas obras de McEwan a trama se complica de forma extraordinária e transforma o livro num thriller psicológico com resultados não surpreendentemente letais. Em Amsterdam encontramos duas características notáveis em quase todas as obras de McEwan: a presença da música, pois o autor é um flautista amador, e sua extraordinária capacidade de criar personagens tridimensionais, cujas personalidades vão se revelando de tal modo que, ao final, o leitor sente que conhece intimamente os protagonistas.

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O quinto foi A balada de Adam Henry, lançado concomitantemente no exterior e no Brasil em 2014. Fiona, uma respeitada juíza da vara de família e pianista amadora, está vivendo um crise existencial, ao entrar na meia-idade, e também conjugal, pois seu marido pede que ela lhe permita manter relações sexuais com uma mulher bem mais moça. Enquanto recusa o insólito pedido e põe o marido para fora de casa, Fiona é chamada a decidir se um jovem de menos de dezoito anos com leucemia pode ser obrigado a receber uma transfusão de sangue que o salvará da morte quando ele próprio e seus pais recusam tal tratamento por serem Testemunhas de Jeová. Os dilemas morais, religiosos e jurídicos envolvidos se complicam quando o jovem Adam, agora com a saúde recuperada e livre das obsessões religiosas, revela o desejo de viver com Fiona. O final inevitavelmente trágico desse imbróglio é vintage McEwan, porém a intensidade emocional de cada acontecimento é tratada pelo autor com uma sutileza extraordinária. Interessante, neste caso, foi minha solicitação aos editores da Companhia das Letras para que McEwan propusesse outro título, pois eu não concebia que The Children Act fosse aqui vertido literalmente como Estatuto dos menores sem ir parar na seção jurídica das livrarias. E fomos todos os leitores brasileiros premiados com o belo título de A balada de Adam Henry.

O sexto foi Enclausurado, de 2016, também publicado ao mesmo tempo aqui e lá fora. Trata-se, pura e simplesmente, de uma releitura de Hamlet narrada por um feto, que acompanha angustiado as maquinações de sua mãe para matar o pai com a cumplicidade do amante (que é também seu tio). Poucos romancistas poderiam enfrentar tamanho desafio, porém McEwan, com uma riqueza de linguagem e atenção dos detalhes que aprendeu com Nabokov, produziu uma pequena obra-prima em que a essência da trama não está no “quê” (o assassinato já conhecido) nem no “porquê” (misto de cobiça material e lascívia), e sim no “como” e suas consequências. En passant, o livro também oferece as opiniões de McEwan sobre a evolução da poesia na Inglaterra, sendo ele um grande amante do gênero.

O sétimo foi A criança no tempo, na verdade o terceiro romance de McEwan, lançado em 1987. Numa Londres distópica, acompanhamos a ida de Stephen e sua filha Kate de quatro anos a um supermercado no sábado pela manhã e as reações sufocantes do pai quando a menina desaparece enquanto ele paga as compras. O sequestro, jamais esclarecido, devasta a vida dos pais e seu relacionamento, levando à separação dos dois e à reclusão da mãe numa pequena casa de campo. A participação do pai num comitê que estuda normas de educação para as crianças do Reino Unidos, bem como sua amizade com um político que sofre um estranho processo de infantilização, permitem um amplo debate sobre os princípios que deveriam governar a formação de menores e, mediante conversas com a cientista casada com o político, sobre o conceito de tempo. Contrariando a tendência revelada nas obras anteriores, o desfecho emocionante de A criança no tempo está carregado de esperança. O livro, que contém substanciais elementos autobiográficos, inclui um episódio de realismo fantástico dificilmente compatível com o pensamento atual de McEwan: a caminho da casa de campo da mulher, o protagonista tem a visão angustiante de um casal, com roupas e bicicletas antigas, que discute alguma coisa num pub vazio. Em conversas posteriores com seus pais idosos, ele depreende que, décadas atrás, de fato houve uma amarga discussão naquele local entre os dois sobre a conveniência ou não de abortá-lo. No mundo real, as coisas se complicam ao sabermos que recentemente McEwan tomou conhecimento de que tem um irmão mais velho, pedreiro de profissão, que foi entregue para adoção quando bebê por ter sido fruto de um relacionamento adúltero entre seus pais quando a mãe ainda era casada com um militar que depois morreu na guerra.

O oitavo é um lançamento mundial em homenagem aos setenta anos do autor, contendo um longo conto – Meu livro violeta – e o libreto da ópera Por você, com música de Michael Berkeley.

O conto é a história de um crime literário perfeito – e mais aqui não se dirá para não estragar o prazer do leitor em seguir passo a passo a diabólica urdidura que faz com que a vida de dois autores, amigos desde a juventude, sofra uma reviravolta espantosa. No entanto, todos os atributos do estilo de McEwan estão presentes de forma conspícua: a precisão da linguagem, a descrição detalhada dos ambientes, o desenvolvimento seguro dos personagens, a criação do suspense, a dose de crueldade, nesse caso combinada com uma estupenda falta de remorso. Mas é interessante notar que o conto foi escrito a pedido do curador de uma mostra em Milão, dedicada ao roubo de imagens em obras pictóricas, o qual desejava enriquecê-la com o relato de um roubo artístico sem culpa ou arrependimento. Ao se aproximar o prazo fatal para a entrega da encomenda, McEwan estava de cama, com febre, quando o conto lhe veio prontinho à cabeça, parágrafo por parágrafo, exigindo apenas que se arrastasse até o escritório para digitá-lo no computador. Outro dado interessante é que, no melhor estilo hitchcockiano, ele faz uma breve aparição na história como aquele “romancista escocês com jeito de inglês” cujo nome não é lembrado pelos protagonistas principais. Por fim, cabe recordar que McEwan já foi acusado de plágio com respeito ao tema de O jardim de cimento e algumas frases no romance Expiação, que ficou ainda mais famoso pela exitosa adaptação para o cinema.

A ópera Para você foi discutida com Michael Berkeley durante muito tempo, finalmente se concretizando um quarto de século depois que ambos colaboraram num oratório pacifista intitulado Ou morreremos?. Ela tem como tema um compositor e maestro famoso, mulherengo obsessivo, em meio aos últimos ensaios para a première de uma nova composição. A figura arrogantemente odiosa faz lembrar o compositor de Amsterdam, que também se considerava um gênio, e seu fim trágico exibe semelhança com o destino de Don Giovanni, il dissoluto punito, na ópera bufa de Mozart. Uma empregada polonesa do maestro, que possivelmente sofria da síndrome de De Clérambault que havíamos conhecido no livro Amor sem fim, mata a mulher dele e o incrimina como assassino a fim de tê-lo, mesmo preso, só para si. Num gênero em que os personagens costumam ir para o Além graças a sortilégios, punhais ou venenos, McEwan, com seu espírito científico, certamente terá sido o primeiro libretista a usar para tal fim o desligamento dos sistemas de suporte de uma UTI.

***
Jorio Dauster é um dos maiores tradutores do país. Nascido em 1937, entrou para o Serviço Diplomático em 1961. Foi embaixador junto à União Europeia de 1991 a 1999 e presidente da Vale do Rio Doce de 1999 a 2001. Foi membro do Conselho do Global Crop Diversity Trust (Roma), presidente do Conselho de Administração da Ferrous Resources do Brasil e compositor de sambas e marchinhas. Traduziu as principais obras de J.D. Salinger, Vladimir Nabokov, Ian McEwan e Philip Roth.

Fonte: http://www.blogdacompanhia.com.br/conteudos/visualizar/Traduzindo-Ian-McEwan
 
Esse do Jardim de Cimento me lembrou o tema do mangá "The God's Lie" lançado aqui no Brasil tocando um pouco sobre o império dos adultos sobre as crianças. A história do mangá é bem tocante é um volume só.

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(Spoiler)

Na história uma menina é abandonada pelos pais com o irmãozinho e um avô bem frágil em casa e quando o avô sofre um acidente ela o enterra no jardim para não que não os mandem para um orfanato nem atraiam o ódio da vizinhança.

“The Gods Lie.”: Os adultos ausentes dos mangás (e por que funcionam tão bem)

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Dia das mães. Não há ocasião melhor para relembrar os percalços e emoções de nossa vida familiar – ou das de nossas personagens favoritas.

Claro, os dramas que gostamos de ler ou assistir costumam ser bem diferentes dos que desejamos para nós mesmos. Como disse Tolstói, todas as famílias felizes são iguais, mas cada família infeliz é infeliz à sua própria maneira. E nada faz uma história mais interessante do que a variedade.


O autor de Anna Karenina não estava pensando em mangás e animes, mas seu comentário cairia como uma luva. No site TV Tropes, os exemplos de conflitos familiares em desenhos e quadrinhos japoneses são tão numerosos que merecem artigos à parte.

Talvez justamente por tocaram em dramas tão íntimos, que nos despertam tanta compaixão, famílias ausentes (ou problemáticas) são um truque tão usado para ganhar os corações do público.

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Fãs do estilo podem aproveitar o momento para conhecer (ou revisitar) uma de suas obras menos conhecidas. O curto mangá Kami-sama ga Uso o Tsuku. – em inglês, The Gods Lie., uma pequena joia dos últimos anos, acaba de ganhar uma nova edição anglófona.

Os deuses também mentem
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Com sua capa em cores pastel, O one-shot de Kaori Ozaki (autora de Immortal Rain) não é à primeira vista um título que chama a atenção. Basta virar as páginas, no entanto, para percebermos que estamos diante de algo excepcional – e incrivelmente sério.

A trama acompanha Natsuru, uma criança de 11 que sonha em ser jogador de futebol. Órfão, vive sozinho com a mãe. Seu treinador, que estima como um pai adotivo, é subitamente afastado e substituído por um outro, mais jovem e agressivo.

Ele ridiculariza Natsuru na frente de seus colegas e lhe diz que não tem talento para o esporte. Seus colegas de time, antes tão entusiasmados como ele, começam a fazer outros planos para o futuro. Seu sonho de se tornar um jogador profissional começa a se esfarelar.

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O destino o leva de encontro a Rio, uma colega de classe que vive sozinha com seu irmão. Tal como ele, Rio também é orfã (em seu caso, de mãe). Tal como ele, Rio se sente desamparada. Seu pai, pescador de caranguejos, passa meses a fio no litoral do Alaska.

Juntos, eles aprendem a se dar conforto em um mundo que não parece ter sido feito para eles, do qual os “deuses” – os adultos – parecem ter desistido.

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The Gods Lie. é impressionante – e às vezes chocante – porque nos mostra aquele lado da juventude que sabemos existir, mas que temos medo de encarar.

Em alguns aspectos, ele é uma versão PG-13 de Umibe no Onnanoko, do qual já falei aqui e aqui. Se no mangá de Inio Asano a negligência leva dois jovens a uma rotina auto-destrutiva de sexo, os protagonistas de The Gods Lie., mais jovens (e bem mais inocentes) encontram paz tornando-se uma “família” de mentira.

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Qualquer semelhança não é mera coincidência
Pais ausentes, filhos pródigos
O mangá de Kaori Ozaki desafia até o que entendemos por “sair do ninho” – e, consequentemente, o que define o gênero coming of age como um todo.

Existe uma ideia bastante arraigada de que a adolescência é a época da rebelião e da independência. Crescemos para sair da manada e nos tornarmos indivíduos, donos do nosso próprio nariz, responsáveis por nossa própria felicidade.

É a visão por trás de quase todas as histórias de formação, de O Despertar da Primavera e Um Retrato do Artista Quando Jovem até os mais recentes animes slice of life. A família, a escola, a sociedade e até nosso próprio corpo são “teias” nos impedindo de voar, obstáculos a serem superados na jornada pessoal por liberdade.

É, também, a visão por trás do escapismo, da ideia de que nossos anos de ouro podem ser uma porta para um mundo paralelo, longe dos perrengues da vida adulta. A adolescência vira a última barreira antes do terrível mundo real, a “calmaria antes da tempestade” em que podemos encarnar qualquer personagem, experimentar qualquer coisa e viajar para qualquer universo.

Há, porém, uma outra visão (bem menos glamurosa) do coming of age. É a ideia do crescer como “tomar a tocha” da velha geração, integrar-se ao sistema, fazer as pazes com o establishment.

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É saber que nenhuma pessoa é uma ilha, que por mais sedutor que pareça o sonho de fugir com o circo, ele será apenas um sonho. E que, por mais chato seja aceitar a autoridade daqueles que “querem nosso melhor”, eles muitas vezes têm a completa razão.

The Gods Lie. nos mostra exatamente esse ponto de vista. Os “deuses” – pais, mentores, professores – “mentem” porque se esquivam da sua obrigação de ajudar os jovens a achar seu lugar no mundo. E Natsuru e Rio sofrem porque são adolescentes e não sabem navegar sozinhos as ondas do universo adulto.

Quem prefere o cinema aos quadrinhos nem precisa ir tão longe. The Wolf Children, longa de Mamoru Hosoda e um dos animes mais explícitos sobre a importância da maternidade, nos traz o mesmíssimo conflito.

Na trama, uma mulher se envolve com um homem-lobo, com quem tem duas crianças. Quando seu marido morre, ela se vê obrigada a criar sozinha um casal de filhos divididos entre a natureza animal e a vida em sociedade.

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Para Ame e Yuki, as crianças-lobo do título, “crescer” é uma espécie de sacrifício. É mudar para se inserir em uma comunidade, seja ela a floresta, de seu pai, ou a civilização humana, de sua mãe.

Não é à toa que algumas pessoas interpretaram o filme como uma alegoria sobre os filhos de imigrantes, forçados a escolher entre abraçar a cultura de seus pais ou abandoná-la para se acomodar à “nova pátria”.

É interessante imaginar o que esses dois adolescentes falariam um para o outro. O que o sonhador, “rebelde sem causa”, desafeto do sistema teria a dizer para o jovem regrado, que só deseja um lugar para chamar de seu.

Felizmente, não precisamos imaginar. Este diálogo já foi escrito. E rendeu um dos mangás mais tocantes e pés-no-chão a abordar o tema.

Entre a bala e o kompeitou
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Satougashi no Dangan wa Uninukenai, também conhecido como Sugar Candy Bullets Can’t Pierce Anything ou A Lollipop and a Bullet, é justamente esse encontro.

Nagisa, nossa protagonista, é uma órfã em uma cidade minúscula do interior. Seu pai, pescador, morreu em uma tempestade. Seu irmão, antes um aluno brilhante, sofreu um trauma e se tornou um recluso. Sua mãe, única trabalhadora da família, tem de labutar dia e noite para sustentar os filhos.

O sonho de Nagisa não é virar uma idol, ser notada pelo senpai ou montar uma banda. É sair da escola e arrumar um emprego o mais rápido possível para contribuir àqueles que ama.

E não qualquer “emprego”, mas o mais caxias (com o perdão do trocadilho) de todos: as forças armadas. Vestir um uniforme, marchar em fileiras e abaixar a cabeça aos superiores em troca de um bom salário é, para ela, o futuro ideal. Escapismo e rebeldia são coisas de jovens ricos com problemas de menos e tempo demais.

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Eis que Nagisa conhece Mokuzu, a filha de um popular astro de pop. Ela vive seu período de chuunibyou, dizendo aos outros ser uma sereia e esbanjando os privilégios de uma vida milionária. Em suma, a combinação de tudo o que Nagisa mais odeia.

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Não se deixem enganar pelas aparências. A Lollipop and a Bullet não é um slice of life açucarado, nem (pasmem!) um shoujo ai. Ainda mais do que The Gods Lie., o mangá é um retrato penetrante de uma tragédia juvenil.

Nagisa descobre que Mokuzu usa a fantasia para se esconder de um cotidiano aterrorizante que sofre às escondidas. Na medida em que entra no mundo deturpado da amiga, ela percebe que têm mais em comum do que imaginava.

De uma forma ou de outra, ambas desejam fugir. De uma forma ou de outra, as duas compartilham um mesmo sonho. Nagisa quer uma “bala” (munição) para furar a prisão da adolescência e abrir um caminho para o mundo adulto. Mokuzu também quer uma “bala” (doce) para suportar os horrores de sua vida pessoal.

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Como bem lembra o Dissidência Pop, poucas imagens expressam melhor a dor da inocência perdida. “Doce” é o esperado que garotas dessa idade sejam. É a palavra que usamos para descrever personagens coloridas, que transbordam de imaginação. É, também, a propriedade do açúcar. E o açúcar, não podemos esquecer, mascara sabores.

O problema, como tudo no escapismo, é que “balas” de açúcar não perfuram nada.

Lendo The Gods Lie. e A Lollipop and a Bullet lado a lado, é impossível não notar o quão parecidos são ambos os mangás. Não apenas em temática ou em seu comentário agridoce sobre a adolescência, mas nos detalhes de seus enredos, nos mesmos twists improváveis e até na composição de cenas.

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Se pensarmos bem a respeito, a semelhança não é lá tão estranha. O escritor Alexandr Solzhenitsyn certa vez disse que a função da arte é dizer a verdade. A ciência é transitória; a política, mentirosa. Cabe à arte nos mostrar as verdades interiores, abstratas, que fazem tudo ter sentido.

Cada família infeliz é infeliz à sua própria maneira. Contudo, algumas dores são compartilhadas. E se as histórias de Natsuru e Nagisa são tão parecidas – e tão emocionantes – é porque tocam na mesma verdade.

Há algo mais forte do que isso? Eu acho que não. Afinal, como diz um velho ditado russo, uma palavra de verdade pesa mais do que todo o mundo.
 

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