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I Concurso de Contos Meia Palavra

Na sua opinião, qual o melhor conto?

  • BICHO-PAPÃO

    Votos: 0 0,0%
  • A CIDADE DOS MALDITOS

    Votos: 0 0,0%
  • LADO NEGRO

    Votos: 0 0,0%
  • VENDETTA

    Votos: 0 0,0%
  • CONSTANTE

    Votos: 0 0,0%
  • A MUDANÇA

    Votos: 0 0,0%
  • CÚMPLICES

    Votos: 0 0,0%
  • SOBRE PÁSSAROS QUE NÃO SE VÊEM E CACHORROS QUE FEDEM

    Votos: 0 0,0%
  • O PRÓXIMO

    Votos: 0 0,0%
  • DO AMOR SE FEZ ESCAMAS

    Votos: 0 0,0%
  • TSARITSINA

    Votos: 0 0,0%
  • A VELHA DO CARVALHO

    Votos: 0 0,0%
  • (A)MAR

    Votos: 0 0,0%
  • DAS ESTRELAS À STELLA

    Votos: 0 0,0%
  • O INFERNO DAS BOAS INTENÇÕES

    Votos: 0 0,0%

  • Total de votantes
    0
  • Votação encerrada .

Anica

Usuário
Olá pessoal do Meia Palavra :tchauzim:

Começaremos hoje a nova fase do I Concurso de Contos Meia Palavra, a escolha do público. Nesse tópico serão apresentados os contos do concurso, lembrando que sem identificação do autor para não afetar o julgamento dos membros do Meia Palavra. A ordem dos contos foi definida através de sorteio.

Justamente por causa disso, pedimos para que os autores tentem, se possível, manter o anonimato sobre a autoria, pelo menos até o resultado (que será dia 8 de março).

Da premiação:

O três primeiros colocados terão seus contos publicados no blog Meia Palavra, além de ganharem cor de nick (a definir) e rank especial no Fórum Meia Palavra (Melhor Contista Meia Palavra).

O primeiro colocado também ganhará o livro Everything's Eventual, coletânea de contos de Stephen King.

Da enquete:

1. O participante que de alguma forma tentar relacionar o próprio nome de usuário no Fórum Meia Palavra com o conto a ser votado será desclassificado. Essa medida visa garantir que o conto vencedor será escolhido não por popularidade do autor no Fórum Meia Palavra, mas por ser o que de fato agradou a maioria dos usuários.

2. Se ficar evidente qualquer tentativa de manipulação do resultado através de contas fantasmas (criadas só para votar), os votos em questão serão anulados. Casos omissos serão resolvidos pela administração.

A enquete será aberta, assim como também será visível quem votou em qual conto. Essa medida busca não só a transparência por parte da organização, mas também inibir tentativas de manipulação (uma vez que não apenas eu, mas todos os usuários estarão acompanhando os votos).

E é isso. Que vença o melhor conto :winner:
 
[align=center]BICHO-PAPÃO[/align]

[align=justify]I - A CARTA

Andréa olhava o moço ir embora. Parada na porta de casa, ainda não acreditava na história que ele lhe contara. Teve receio de pedir para repeti-la pela terceira vez. Seria declarar descaradamente que não acreditava nele. Só quando o vulto dobrou a esquina é que ela voltou a si e percebeu que tinha em mãos um envelope velho, amarelado, mas lacrado. Garranchos de caneta e umidade deformavam um nome escrito em tinta azul: Andréa Ferreira dos Santos. O nome dela. Eram palavras que, mesmo silenciosas e antigas, apontavam o dedo para uma única pessoa. Andréa Ferreira dos Santos. Ela. Precisava pensar melhor. Resolveu entrar em casa.

Deixou o envelope sobre a mesa e foi tomar o cafezinho que o visitante recusou. O jovem de roupas brancas dissera que tinha pressa em retornar à terra natal. Já estava em viagem há muitos anos e findava a sua missão em Andréa. A cada gole de café, sorvia o líquido e as palavras que ecoavam em seus ouvidos. O moço viera de longe, de Minas Gerais, somente para lhe entregar a carta. Contou que era a última de sete cartas entregues em sete cidades diferentes. E que, apesar de ter recebido instruções específicas de onde e como encontrar os destinatários, levou anos para terminar a tarefa. Cinco anos, para ser mais exato.

As sete cartas eram de um famoso médium espírita, psicografadas um pouco antes da sua morte e entregues ao fiel discípulo. Como último desejo do mestre querido, deveria entregar pessoalmente cada carta. Elas mudariam o destino de pessoas, algumas vivas, outras não. O jovem discípulo percorreu o país, procurando os destinatários somente pelos nomes escritos em cada envelope e pelas orientações fornecidas pelo vidente. Nunca teve curiosidade em ler as cartas, admitiu, mas precisou ser extremamente rígido na ordem de entrega, pois foi-lhe revelado que encontraria os destinatários em lugares e épocas específicos. Aquela seria a derradeira demonstração da fé que tinha no mestre. Uma fé que Andréa, apesar de ir à igreja todo fim de semana, invejou.

Findou o café e voltou a atenção ao envelope. O marido estava fora. As crianças, na escola. Tinha um tempo livre antes de começar a fazer o almoço. O momento era propício, mas ela estava com medo. A verdade é que não costumava receber cartas. Quase nunca. Ainda mais de um morto, ou pior, de dois mortos. Tentou relacionar quem, do além, poderia querer entrar em contato com ela. Certamente alguém falecido a mais de cinco anos. O tio Manoel do seu esposo estava descartado, morrera ano passado. A filha da Dona Rita também. Não se lembrou de ninguém mais. Com o tempo, os mortos também costumam morrer na memória. Mas, também poderia ser alguém que ela não conhecera, como os avós paternos, falecidos antes de Andréa nascer.

Além do receio sobre o misterioso remetente, Andréa também temia o conteúdo da carta. Se era algo tão importante a ponto de ser psicografado por um médium famoso e este ter incumbido um fiel discípulo de entregá-la pessoalmente, e deste último persistir por anos a fio até completar a tarefa, deveria ser uma mensagem necessária e significativa. Mas para quem? Para o falecido, para o médium ou para ela? E se fossem maldições ou coisas do além que ela não gostaria de saber? Mas, por outro lado, e se falasse do futuro, de seu marido ou dos seus filhos? E se lhe contasse como melhorar de vida ou evitar uma tragédia?

Naquele momento, Andréa sentiu-se terrivelmente sozinha. Aquela carta começava a pesar sobre os seus ombros.

II - O PAI

Escuridão. Vazio. Silêncio.

Um cachorro late distante. Um carro passa na rua, mais próximo. O chão frio e duro ecoa o barulho do motor da geladeira. Chão?! O despertar, a consciência, o abrir os olhos, os móveis assumindo as suas formas, a escuridão indo-se embora lentamente, tudo causa certa vertigem. Andréa demorou a perceber que estava deitada no chão da cozinha. Sentou-se no piso. O mundo ainda rodava e ela buscou equilíbrio. Começou a refazer mentalmente os passos desde onde se lembrava. Havia bebido o café, sentado à mesa, aberto o envelope, oh Deus, lido a carta. Percebeu que desmaiara ao ler aquela estranha carta. Um desespero súbito a subjugara, arrancando as rédeas da sua consciência.

A primeira frase que lera atropelou qualquer raciocínio lógico que Andréa tivesse formulado antes. Oxalá nunca tivesse aberto aquele maldito envelope. É verdade que a idéia de jogá-lo fora lacrado lhe passou pela cabeça, mas a curiosidade feminina falou mais alto. É apenas uma carta, que mal pode fazer, justificou-se. Não fazia idéia do efeito que as palavras possuem. Se elas são capazes de levantar ou derrubar impérios, imagine o que fariam na simples alma de uma mulher do interior. E foram as palavras que a faziam se arrepender da ousadia. Tentou se recuperar do baque, mas os seus olhos ardiam e a cabeça doía. Ao seu lado, também entregue ao chão, a carta mostrava o trecho inicial que Andréa havia lido.

“Andréa, o seu pai foi assassinado.”

Estas poucas palavras afetaram Andréa pelo mais óbvio dos motivos: ela havia visto o pai ainda cedo pela manhã. Como poderia uma carta, enviada cinco anos atrás, prever o assassinato de seu querido pai naquele dia? Só poderia ser um engano, com certeza era um engano.

Seu paizinho Cairo não poderia estar morto. De forma alguma. Aquela sentença era um equívoco ou uma mentira. Apesar disso, Andréa admitiu que ficaria em dúvida até o meio-dia, quando o pai regressaria da construção onde era pedreiro. E se ele não voltasse? Oh, meu Deus! Cairo, apesar da idade, tinha mais vigor que muitos jovens, era o que as vizinhas comentavam. De modos rústicos, sempre foi forte, enérgico e explosivo, não só no físico, mas também no temperamento. Signo de escorpião. Até mesmo os vícios – o cigarro de palha, o rabo-de-galo diário, o forró dos fins de semana – pareciam não afetar em nada a sua saúde.

A rudeza de Cairo transformou Andréa, na infância, em uma menina tímida, carente, calada, de presença quase imperceptível. Preterida em prol dos dois irmãos mais velhos, aprendeu a contentar-se com as migalhas da atenção do pai. A mãe sempre ensinava o mesmo mantra particular: teu pai gosta mais de filho homem, mas se você obedecê-lo em tudo talvez ele te ame. A sementinha de esperança plantada fez Andréa esforçar-se para superar os irmãos em prontidão, dedicação e obediência para, quem sabe, chamar para si os carinhos do pai.

Voltando da digressão, refletiu que ao invés de ficar ansiosa pela volta do pai, a solução mais rápida era continuar a ler a carta. Talvez encontrasse algo nela que comprovaria o engano. Pegou a carta e, apoiando-se na cadeira, sentou. De maneira ritual, abriu-a novamente e leu.

“Mas não estou falando do Cairo. Ele não é o seu pai, eu sou. E fui assassinado por ele.”

III - A MÃE

“Quando eu namorava a sua mãe, Cairo era meu melhor amigo. Até o dia em que ambos me traíram. Magoado, mudei de cidade enquanto Cairo e Alessandra foram viver juntos. Mas isso foi antes de você nascer.”

Soava estranho para Andréa ler revelações do passado de sua mãe e de seu pai. Eles haviam traído o namorado e amigo, respectivamente, e nunca haviam comentado sobre o assunto. Pelo menos não próximo dela. Não que ela acreditasse naquelas palavras, pois a primeira reação quando se acusa um ente querido é a negação incondicional, a proteção fraternal, a confiança pela intimidade e proximidade. Mesmo se as acusações forem verdadeiras. Confiamos e protegemos basicamente porque precisamos de alguém para confiar e nos proteger quando preciso for. Mas Andréa sabia que todos tem segredos – pequenos ou não – inclusive os seus pais, inclusive ela. Principalmente ela.

Andréa sentia vergonha por sua mãe estar internada no manicômio municipal. Este foi o motivo que a fez mudar de bairro. Evitar as fofocas sobre o fatídico episódio que ela se esforçava tanto para esquecer. Envergonhava-se de ter sido atacada com uma faca num violento acesso de loucura da mãe. Carregaria pelo resto da vida a maldição de ter a própria mãe tentando matá-la. Assim como carregaria o fardo por ter assinado os papéis da internação, pois o seu pai resolveria a situação de outra maneira: daria uma coça na desmiolada até ela sarar ou piorar de vez. Os seus irmãos não ajudaram, há muito andavam perdidos pelo mundo. Ela era a única responsável pela mãe louca.

Tentara visitar a mãe algumas vezes, sem sucesso, pois era só Alessandra ver a filha para atacá-la com quaisquer objetos próximos, urrando e esbravejando ofensas. Por fim, desistiu e abandonou a mãe aos cuidados dos enfermeiros e de Santa Dinfna, protetora dos doidos varridos.
“Durante anos, descontei em outras mulheres o mal que Alessandra me fez. Virei um monstro, um bicho-papão, que comia vítimas pobres e indefesas e abandonava os restos na sarjeta. Não me orgulho do que me tornei. Inocentes sofreram sem merecer. Mas isso foi antes de você nascer.”

E se esta história trazer alguma verdade? Afinal, ninguém confessa os pecados a uma desconhecida a não ser para provocar uma atitude condescendente e misericordiosa. Mas quem escreveu a carta não busca absolvição, mesmo porque está morto e enterrado. Então qual é o seu propósito? Prejudicar a relação de Andréa com seu paizinho, o único que lhe restara após a mãe ter sido internada? Andréa não entendia em quê estas revelações lhe seriam úteis.

Por outro lado, abria-se diante de Andréa uma vitrine onde poderia escolher o pai que desejasse. Mas ela já conhecia Cairo. Ele habitava em sua memória como pai desde antes dela pensar por conta própria. Cairo estava vivo, morava com ela, brincava com os seus filhos todos os dias e ajudava nas despesas da casa. E quem era o outro? Ninguém. Apenas um nome em uma carta velha. E havia algo mais importante: Cairo era o único que compactuava com Andréa o segredo da loucura de Alessandra.

“Certa vez, voltei e Alessandra, ainda morando com Cairo, implorou por meu perdão. Disse que sempre me amou, se humilhou e sujeitou-se a todos os meus sadismos. Mas eu não sentia mais nada por ela. Eu não sentia mais nada por ninguém. Por isso, depois de satisfazer a minha vingança em Alessandra, fui embora, desconhecendo que você nasceria pouco tempo depois.”

Andréa se negava a acreditar que havia nascido como resultado de uma vingança por causa de uma traição. Era desprezível demais. Ninguém merece saber que é fruto do ódio ao invés do amor, carregar em seus genes o estigma da maldade dos pais. Desejaria mil vezes não saber se esta fosse a verdade. Não queria ter essa história na sua vida nem a sua vida nessa história. Preferia a alegre ignorância ao conhecimento que trouxesse como bônus o sofrimento. Decidiu terminar o parágrafo e jogar a maldita carta no lixo.

“Depois, visitando a cidade, vi sua mãe passeando com você. Uma linda menina de cachos dourados que só podia ser minha. Apaixonei-me pelos seus olhos azuis. O amor que senti pela filha superou o ódio pela mãe. Naquele momento, morreu o monstro, o bicho-papão, o coração sádico e endurecido. Desejei ser melhor, por você e para você. Foi quando resolvi te conhecer. E foi quando morri por sua causa. Agora, preciso te ajudar a se livrar do trauma de infância que, sem querer, deixei você sofrer.”

IV - O TRAUMA

Um riso irônico alternava com suspiros apressados. Andréa tentava disfarçar as mãos suadas na calça, apesar de estar só. Dissimulou ao pensar em voz alta que trauma era coisa de gente rica. Pobre não tem estas frescuras. Seria cômico alguém afirmar que ela, justo ela, tinha um trauma de infância por causa de um desconhecido. Hilário. Ensaiou uma gargalhada, mas esta acabou não saindo tão natural como queria. Procurou racionalizar o que se lembrava da infância: sonhos, decepções, sofrimentos, brigas, enfim, coisas que existem em toda família e nem por isso são traumáticas. Traumatizada era o adjetivo que não combinava com o substantivo Andréa.

A carta começava a soar infundada e sem cabimento. Mal sabia que o pior ainda estava por vir. Quando uma carta póstuma é enviada afirmando que o verdadeiro pai foi assassinado pelo homem considerado até então o seu progenitor, que outras afirmações inimagináveis também não poderia sugerir? As palavras não conhecem limites, a imaginação sim. Se a imaginação seguir a trilha deixada pelas palavras corre o risco de conhecer lugares que não gostaria nem de ouvir.

“Tentei me aproximar de você, mas Cairo não deixou. Então passei a te observar à distância na escola ou na pracinha. A minha rotina era te amar sozinho e em silêncio. Mas havia um pedófilo ameaçando a cidade. Três crianças estavam desaparecidas. Um dia, percebi um estranho te seguindo. Quando você se afastou das outras crianças, ele te atacou. E eu o ataquei. Defendi como uma fera a minha menininha daquele monstro. Rolamos pela rua. A multidão nos cercou assim que soube que se tratava do pedófilo. Mas quando nos separaram, não sabiam a quem culpar. Eu o acusava e ele a mim. A dúvida acabou quando um dentre a multidão apontou o dedo. A última cena que vi foi dedo de Cairo apontando para mim. Ali mesmo, fui linchado pela multidão ensandecida. Entre Cristo e Barrabás, venceu Barrabás, com uma pequena ajuda de Judas.”

A memória de Andréa esboçava uma vaga lembrança daquela cena. Ela era pequena, contudo lembrou de assistir a multidão dando socos e pontapés no homem caído à sua frente. Mas Andréa nunca encarou o episódio como traumatizante. Nem lembrava dele. Ela não conhecia nem sentia nada pelo homem que apanhou até a morte, quem quer que fosse. Ao contrário, ela lembrou que depois daquele dia Cairo passou a tratá-la melhor que aos irmãos: deu-lhe atenção, carinho e proteção especiais que jamais tivera antes. Aquele ato violento realizou o sonho de uma menininha em saborear o amor paterno.

“Mas não é esse o trauma a que me refiro, Andréa. Você sabe que é aquele que você esconde no íntimo, que sente vergonha ao lembrar, que te faz chorar quando está só. É o motivo da sua mãe ter tentado te matar. O trauma a que me refiro é você dormir desde os 12 anos de idade com Cairo, o homem que acredita ser seu pai. De criar dois filhos do pai-marido enquanto a sua mãe definha em um hospício. Cairo não se contentou em me matar, ele descontou em você todo o ódio que teve por mim e por sua mãe. E, desta vez, eu não pude salvar a minha menina do bicho-papão.”

V – FINAL

A carta atingiu o ponto fraco de Andréa. Não foi um tapa no rosto, foi como sangrar sem estar ferida. Andréa realmente tinha esse segredo sujo. Ela fazia sexo com o pai, Cairo, desde a adolescência. Nunca dormiu com outro homem. Cairo não a deixara namorar ninguém. Sentia um ciúme doentio por ela até com os irmãos. Andréa, tentando fugir do sentimento de culpa, plantou a ilusão em sua mente de que a sua vida, mesmo imperfeita, seguia os caminhos que Deus havia traçado para ela. Deus escreve certo por linhas tortas, não é? E mais torta que a vida de Andréa, impossível. Então, se era para ela ser feliz como a mulher do pai, faria como nos tempos bíblicos, obedeceria resignada e lhe daria filhos. Quem não aceitou esta relação foi Alessandra, a mãe de Andréa. No dia em que flagrou o marido e a filha nus na cama do casal, Alessandra pirou. Pegou uma faca e atacou Andréa. Melhor uma filha morta que uma vagabunda. Foi preciso chamar os vizinhos naquele dia para conter a fúria de Alessandra. Ou ela matava ou ela morria. O único jeito de calar Alessandra foi interná-la no hospício como doida.

Sempre que o silêncio aparecia, trazia para Andréa os gritos e as maldições da mãe. Ira de mãe é ira divina. A vergonha e a depressão só faziam aumentar. Pensou várias vezes em suicídio. A carta declarava uma sentença – bem maior que um trauma infantil – da pena capital que Andréa cumpria fazia tempos. Sem amigos, nem parentes, a única alegria era viver integralmente num faz-de-conta para o pai-marido e os filhos. Mas não apaziguava o desespero que ela sentia. Ela não vivia, definhava. Com o coração apertado, boca seca, pensamentos confusos, ela resolveu terminar a carta que a trouxe de volta à dura e cruel realidade.

“Filha, me perdoe por não te defender quando mais precisou de mim. Eu morreria mil vezes por você se pudesse, mas não pude. Se estivesse vivo eu mataria o desgraçado. Quero que saiba que todo problema tem solução, mesmo que tardia. Só depende de você. Não obedeça aquele que sempre te enganou e se aproveitou de você. Eu torço por você e aguardo o dia em que finalmente iremos nos abraçar como pai e filha. Com um amor mais profundo que a morte e um beijo, de teu pai, Jorge.”

Um lampejo de esperança brilhou nos olhos de Andréa. E se ela não fosse filha de Cairo? Ele abusara dela, se aproveitara de sua inocência infantil e a enganara, mas ela não era culpada. Os céus, através daquela carta, revelavam que ela não era pecadora e não havia porque se sentir suja. O seu verdadeiro pai se chamava Jorge e a amava como um pai deve amar. Releu o final da carta molhando o papel com algumas gotas que caíam.

Neste instante, o portão da frente rangeu. Ela olhou para o relógio: meio-dia. Perdera toda a manhã lendo a carta e esqueceu-se do almoço. Cairo ficaria muito bravo. Mas era hora de Andréa dar um basta. Foi até o quarto. A porta da cozinha se abriu. Subiu na cama e alcançou a caixa de sapatos em cima do guarda-roupa. Andréa, cadê o meu almoço, trem? - ouviu Cairo gritar na sala. Sentada na cama, Andréa colocou uma bala no tambor do revólver e engatilhou no exato momento em que Cairo entrava no quarto. Ambos se olharam sabendo o que iria acontecer.

Na rua, dois garotos com uniformes escolares apostavam corrida até o portão para ver quem chegaria primeiro, o último seria mulher do padre, quando ouviram o estampido seco dentro da casa.

VI - EPÍLOGO

O rapaz terminou de ler a carta em voz alta. A mulher olhava a chuva pela janela com os pensamentos longe. Demorou, mas disse:

- A carta vai cumprir o seu objetivo.

- Qual? – perguntou o rapaz todo de branco.

- Vingança. – respondeu – De um jeito que, se depender do meu santo protetor, vai acontecer.

- Existe alguma verdade na carta? O tal Jorge existiu mesmo? Ele era o pai de Andréa?

- Isso não importa. O essencial é você cumprir a sua parte no acordo. Lembra o que deve fazer?

- Sim... Entrego a carta para a moça, quando estiver sozinha... Minto sobre o tal vidente famoso falecido que psicografou para ela cinco anos atrás...

- Certo. Não se esqueça de dizer que você é de Minas Gerais e que é a última de sete cartas que está entregando. Se você cumprir esta pequena tarefa terá a sua recompensa te esperando na minha cama, quantas noites quiser ou agüentar. Farei coisas que você não imagina serem possíveis.

- Deixa comigo, Alessandra. Amanhã à noite cobrarei o meu prêmio. De manhã, irei até o endereço que me passou e faço o combinado.

Alessandra pegou a carta e lacrou-a no envelope que trazia o nome da filha escrito. Em seguida, entregou-o nas mãos do auxiliar de enfermagem. Deu um beijo sensual no futuro amante e retornou à janela. Enquanto ouvia o barulho da porta sendo trancada atrás de si, a sua mente insana revelava como tudo iria acontecer.[/align]
 
[align=center]A CIDADE DOS MALDITOS[/ALIGN]

[align=justify]Os gárgulas continuavam imponentes, mesmo depois de tanto tempo. Seus olhos inanimados pareciam observar uma realidade desconhecida pelos mortais: um mundo de almas negras andando a esmo, sem face ou direção. Talvez eu também fizesse parte daquela turba inusitada. Apenas um zumbi maldito, movido pela inércia.

Anoitecia em Barcelona e a Cidade dos Malditos começava a mostrar sua verdadeira face sombria e cruel. Pessoas se apinhavam em bondes, ao fim de mais um dia de trabalho, e eu permanecia imóvel, inerte, perdido em meus devaneios enquanto observava o espetáculo crepuscular que os céus me proporcionavam. Ao longe, a torre gótica se erguia, imponente, parecendo sem querer alcançar o infinito.

Não sei por quanto tempo permaneci ali, vendo o mundo passar à minha frente. Uma turba homogênea, apressada, silenciosa, como num cortejo fúnebre. Então as ruas se tornaram vazias, exceto por um passante ou outro que aparecia ocasionalmente. Apenas eu, solitário, continuava lá, sozinho, perdido no nada.

O sino da torre badalou doze vezes, anunciando a meia-noite. A lua cheia pareceu brilhar mais forte e em algum lugar um grito de horror foi ouvido. A cidade maldita despertou. Os gárgulas continuavam observando do alto da catedral, espectadores silenciosos que tudo podem ver.

Oh, memórias malditas que a Cidade dos Malditos não me permite esquecer! Tormentos e angústias sufocados pelo vento, sonhos despedaçados, corações partidos...! O tempo não cura nada, apenas acumula ilusões disfarçadas. Sinto que não poderei ter resquício algum de paz ou sanidade enquanto estiver acorrentado a Barcelona. Temo que minh'alma à ela pertença, por mais que tente revertar tal maldição.

Adeus, Barcelona! Sinto em dizê-lo. Quem conhece a Cidade dos Malditos a ela sempre pertencerá. De corpo, alma, mente e espírito, até que a morte os separe. Penso que talvez não exista nada depois que minha vida se esvair. Terra prometida, paraíso, inferno ou purgatório, apenas o frio vazio da (in) existência. É um risco a se correr.

A torre me observa, grandiosa, sugerindo silenciosamente o que fazer. É madrugada, a cidade dorme. Corro, como nunca o fiz antes, os passos ecoando na rua vazia e silenciosa, as pernas que não ousam mais tropeçar. A adrenalina corre em minhas veias, tornando-me corajoso quando antes era apenas um medíocre. Liberdade! Por quanto tempo almejei-a! Liberdade! Sou como um bobo, com esperanças vazias no último momento.

O cansaço não existe, as pernas não fraquejam. Sinto-me mais forte como nunca. Estou no alto da torre. Contemplo o céu estrelado, a lua brilhante, a cidade maldita. Mergulho no vazio, um sorriso bobo no rosto, o mundo desaparecendo ao meu redor. Liberdade! O elo que nos une agora será quebrado. Liberdade! Adeus, cidade maldita![/align]
 
[align=center]LADO NEGRO[/align]

[align=justify]Escuro, úmido e frio era o lugar onde ela estava. Sentada, desolada, agarrada a suas próprias pernas como se pudesse assim se proteger, tirá-la daquela realidade. Balança, para frente e para trás, como uma criança, dizendo que aquilo não é verdade. E não é. Sozinha ali, como que fora parar naquele lugar? É escuro, mas em certos lugares pequenos raios de luz entram como que sorrateiramente por frestas que seriam praticamente impossíveis de existir se aquele lugar fosse um porão. Suas mãos tremem e seus pensamentos só conseguem ser um: sair dali.

Mas como que ela havia parado naquele lugar? O que seria exatamente aquilo? Esses pequenos raios de luz entrando a ajudavam a enxergar, e o que ela conseguia ver eram paredes escuras de pedra com infiltrações como se aquele lugar, aquele canto em específico fosse um tipo de calabouço, cheirando fortemente a mofo. “Que crime cometi eu, com quem eu encontrei antes de chegar aqui? Eu não fiz nada, só fechei meus olhos e de repente me encontrei nesse lugar horripilante... Quero sair daqui. Mas como se pelo visto não há portas? Como que eu vim parar aqui, como???”

Sentada, ainda tremendo (sem saber se era de frio ou medo) ela pensou que ficar parada ali se lamuriando também não resolveria a situação. “Preciso encontrar um modo de sair deste lugar. Se eu entrei, tem que existir uma saída”. Ela resolve levantar vagarosamente, pois suas pernas ainda tremem e a sensação é de que ambas não sustentariam o resto do seu corpo. Tateando a parede com toques leves, ela começa a ensaiar passos. Suas mãos possuem agora o trabalho que seus olhos não podem fazer devido a má iluminação. De repente, ela sente uma corrente fraca de ar: “É por aqui, só pode ser por aqui. Se há alguma corrente de ar, então é para lá que eu devo seguir. Afinal, é o que dizem nos filmes, não? E o que estou vivendo aqui é tão surreal que parece filme! Vou seguir essa lógica” e continuou tateando a parede, mas parou abuptamente ao sentir com seus pés o chão pegajoso. “Deuses, o que será isso aqui, não quero nem imaginar.”

Forçou-se então a prosseguir “atrás da corrente de ar, foque-se na saída”. Foi então que em um daqueles pequenos feixes de luz ela viu algo branco brilhar. Parou ao sentir que seu coração poderia explodir por bater tão rápido. Não havia nada ali, mas ela viu o brilho, ela viu. Tinha certeza de que não estava fantasiando, ou tendo alucinações. Foi ai que viu de novo, junto com dois brilhos vermelhos no escuro, era só o que ela via, aquele reflexo branco e os dois brilhos vermelhos na escuridão. Deu passos para trás, sentindo um medo crescente, alucinante, caiu no chão e começou a se arrastar para trás, se foragindo na parede onde até então se encontrava encostada enquanto estava sentada. Os brilhos vinham em direção a ela, vivos, respiravam. Seria essa a corrente de ar que ela sentira anteriormente? O que seria aquilo? O medo começou a subir pelas suas pernas até atingir sua cabeça. Horrorizada, segurava-a com ambas as mãos, como se com isso sua sanidade não fosse se perder. O brilho andou em sua direção, e ela mal respirou ao ver o que um dos pequenos feixes de luz iluminava. Um cachorro, gigante, enorme. O brilho branco era de seus dentes, o vermelho de seus olhos. O pelo, preto como a escuridão daquele lugar, imundo, cheio de sarna, emanava um odor ocre quase insuportável. Da sua boca, escorria uma saliva grudenta, talvez aquilo que ela havai pisado enquanto buscava a saída. Seu hálito fedia mais do que seu próprio corpo.

“Ele vai me comer, estou morta”, pensou. E começou a chorar. O cachorrão, cada vez maior, se aproximava mais e mais, ela já sentia a respiração daquela monstruosidade queimando seus olhos. “Preciso fugir, preciso enfrentar, não posso me entregar, nunca fui de me entregar.” Pensou. E assim, ela soltou sua cabeça, que agora parecia leve como se estivesse flutuando. O coração, que ainda batia acelerado, agora se enchia de uma coragem abrupta, que ela não sabia de onde saia. A boca do cachorro se aproximou, ela sentia o bafo quente, sentia os dentes próximo de si. “O que faço, estou presa. Não quero virar comida” . E levantou. O cachorrão se aproximou mais então, mostrando sua boca escancarada pronta para mastigar o que via na frente. Ela tateou o lado esquerdo e sem pensar, correu para lá, tentando escapar da bocarra aberta. O animal foi mais rápido e a pegou pela perna. O grito de ambos, podia ser escutado de longe se houvesse alguma abertura naquele lugar insólito. AAAAAAAAAAHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHH gritava e gritava, enquanto sentia o dente do cachorro penetrando a carne da sua perna, o sanque escorrendo até seu pé. O cachorro uivava UUUUUUUUUUUUUUUUUUUHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHH mas não largava a perna. Ela caiu, tentava se segurar mas no chão só havia pedras soltas. Continuava gritando, era só o que ela conseguia fazer, sem ter coragem de puxar a perna com medo de perdê-la. Sentindo as pedras do chão nas mãos sem pensar, com os olhos cheios de lágrimas, agarrou uma e jogou em um dos olhos do cachorro. A distância entre sua mão e aqueles olhos vermelhos era pequena e por isso ela conseguiu acertar em cheio. O cão uivava mais alto e alto, era quase ensurdecedor! Ela tampava seus ouvidos, horrorizada com o som, e ele continuava lá, sem largar a perna mas sem tentar comê-la também. Pegando outra pedra então a usou para dar um murro na boca do monstro. O soco foi forte o suficiente para o gigante largar perna ferida, ele uivava mais alto ainda, ao mesmo tempo que ela também gritava AAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHH

Segurando sua perna machucada, esperando o contra-ataque daquela besta, ela começa a chorar copiosamente. Olhando sem piscar para o cachorro, ela percebe que o cão gigante também chorava. Também aquela monstruosidade sentia dor, seus olhos eram terror e dor. Sem perceber diminuiu o choro e percebeu que o animal fazia o mesmo. Agora ele não mostrava mais os dentes nem guinchava mais. Agora ele chorava, e a dor era vista através de todo seu corpo. Seu focinho se aproximava da perna machucada e a baba ecorria em cima dos machucados, fazendo-os arder. “Estou insana”, pensou ela “ou estou imaginando coisas, mas parece que esse monstro está com dó de mim. E eu estou com dó dele. Ele vai me comer, eu morrerei, e tenho dó desta criatura porque ela é só dor”. E ela sentia também que era só dor. E tentou encostar no focinho do cão, a ponta dos dedos ainda tremendo, achando que era loucura, que perderia seu braço mais rápido do que poderia ver, mas mesmo assim seus dedos buscavam tocar aquilo. Seu choro passou a ser de dor, mas não física, era uma dor de dentro, pior do que física, fazia doer toda a sua alma. Perto de tal dor, a sua perna havia sido esquecida. Perto de tal dor, a sua repulsa e seu medo haviam sido esquecidos. Nada era parecido com aquilo que ela sentia por dentro.

Seus dedos finalmente tocaram o focinho, e de repente ele não era mais monstro. De repente, ele era uma menina, assustada, acuada. Mas que diabos era aquilo! Só podia ser um sonho, tal coisa não poderia existir de verdade! Mas existia. A menina estava nua, sentada abraçando suas pernas como se ao se encolher assim pudesse se proteger. Ela se balançava para frente e para trás. Seu choro era baixinho, mas tão dolorido quanto o choro do cachorrão. Ela sentia mais ainda aquela dor em si,e sentia mais ainda pena de uma menina tão pequena, de aparencia suja mas ao mesmo tempo tão bonita, estar sentindo tudo aquilo. Sentia pena e perdão, mesmo estando ainda tão assustada quanto a menina. Colocando a mão no ombro nu da criança, ela passa a mão nos cabelos macios, soltos pelas costas. Sua mão força a pequena assustada a levantar o rosto, e tão surpresa quanto apavorada ela fica ao ver o rosto da menina: era o seu! Aquela menina era ela, como pode? Qual o sentido disso tudo?

A menina ainda chorava, assustada, e ela compreendeu que tudo o que aquela criança queria era o mesmo que ela queria: segurança, confiança. Emocionada, ela abraça o corpinho nu, que a abraça de volta. “Todos temos um lado que não gostamos, um lado negro personificado de alguma forma, uma dor ou algo que talvez nos mate por dentro, aos poucos. Eu acredito ter encontrado esse meu lado. Você, eu pequena, faz o quê perdida aqui? Esperando eu te encontrar? Então o cachorro, e aquela dor, tudo isso era e existe em você. E tudo isso é e existe em mim.” O abraço agora era mais forte. As duas ficam assim, chorando, até ela dizer: “Eu entendi. Você sou eu”.

Com o abraço a dor some, ela se sente perdoada por algo que não sabe bem o quê que cometeu consigo mesma, e logo se sentindo livre daquela dor enlouquecedora, as frestas por onde a luz passava começam a aumentar, até vir um clarão enorme. Antes do clarão dominar o lugar, os olhos da menina brilham, vermelhos, e o sorriso sarcástico e vitorioso amedronta a mulher que tenta se desvencilhar, mas já é tarde demais. Uma já foi aceita e faz parte da outra. Não há volta.

Porque o clarão são seus olhos abrindo.[/align]
 
[align=center]VENDETTA [/align]

[align=justify] Othon sentiu uma forte onda de desejo palpitar sobre cada centímetro de seu corpo, enquanto as mãos frias e úmidas de Nanda roçavam sobre seu peito. A moça estava de joelhos sobre o banco do carona, o corpo moreno estirado por cima do seu. As janelas do Siena estacionado em frente à pousada ficavam cada vez mais embaçadas... Nanda deu-lhe um beijo longo e apaixonado, suas mãos desabotoavam freneticamente a camisa dele. Repentinamente, Othon sentiu algo vibrar sob seu jeans.

- Droga! – exclamou.

Nanda afastou-se, frustrada, enquanto Othon tirava o celular do bolso da calça. O nome VITÓRIA piscava na mini-tela do aparelho. Só um momento, gata, deve ser importante. Com um muxoxo, ele abriu o flip do aparelho para atender.

-Alô... querido, por que demorou tanto a atender? – murmurou a voz rouca do outro lado da linha.

Othon pigarreou, enquanto olhava fixamente para Nanda, que estava visivelmente irritada.

- Ah... Desculpe, amor, é que ando tão ocupado aqui no escritório que nem percebi o celular vibrando. Estou atolado em papéis aqui, acho que não terminarei o serviço antes da meia-noite...

-Afe, Othon, você está se tornando um workaholic dos piores. Nem mais te reconheço, sabia? Você passa a maior parte do dia no trabalho, esquece que tem esposa e filhos também.

- Perdão, querida, é que esses dias vêm surgindo muitos casos e processos mesmo. Tenho uma infinidade de coisas para ler e analisar... Mas logo esse furacão passa e nossa rotina volta ao normal...

- Entendo... – disse Vitória. – Bom trabalho pra você, então. Vou ficar te esperando.

- Está bem. Dá um beijo nas crianças.

- Pode deixar... Te amo. – Othon escutou a esposa dizer, em um tom doce e calmo... Fez uma careta. Nanda caiu no riso.

- Também te amo... – disse ele, por fim, desligando o telefone. – Trouxa.

- Você mente muito bem, sabia? – disse Nanda, sorrindo. - Adoraria que não estivesse mentindo quando me disse que largaria essa idiota pra ficar comigo.

- Dê tempo ao tempo, gata. – disse Othon à amante, enquanto acariciava seu rosto. – Não vou deixar de cumprir tudo que lhe prometi.

- Você também me prometeu que esta seria uma noite inesquecível, lembra?

Othon mordeu o lábio.

- Vamos subir para o nosso quarto. Pedi para o serviço da pousada preparar algo especial para nós dois hoje.

- Hummm... – disse Nanda, vestindo a blusa que havia sido largada, minutos antes, no banco de trás. - Algo como espelho no teto e banheira de espuma?

- Você vai ver... – respondeu Othon, piscando.

Saíram do carro e entraram de mãos dadas na pousada. Ainda não anoitecera, mas a recepcionista já estava dormindo, os braços em torno da cabeça apoiada sobre o balcão. O jovem casal subiu silenciosamente as escadas que levavam ao quarto 208, o homem sussurrando obscenidades no ouvido da moça.

Othon abriu a porta. Entraram na suíte, braços entrelaçados e os lábios colados em um beijo ardente e repleto de desejo. O quarto estava escuro. Ainda grudado à amante, Othon tateou pela parede e apertou o interruptor.

Nunca imaginei que seria tão fácil, pensou Vitória, desligando o celular e olhando para o equipamento elétrico, que lhe fora tão útil naquela tarde, dentro de uma caixa largada no sofá ao lado. E não é que aqueles anos cursando Eletrotécnica no CEFET serviram pra alguma coisa, no final das contas? Tomar o lugar de uma camareira e mexer no circuito elétrico de uma pousada suburbana foi mais fácil do que ela pensara.

Podia imaginar os jornais do dia seguinte anunciando a morte de um casal eletrocutado. Não, isso não vai merecer mais que uma nota minúscula na página de óbitos. Arquitetara tudo perfeitamente, para que parecesse que os falecimentos haviam decorrido de um curto-circuito normal, uma falha qualquer no sistema elétrico. Pensou nos seus filhos. Os gêmeos são muito pequenos, não se lembrarão do pai. E também não precisarão dele. Ninguém gostaria de ser criado por um mau-caráter.

Evitou pensamentos pessimistas e deu uma gargalhada, satisfeita. Como os homens são burros em subestimar a inteligência feminina! Sentia-se plena, feliz. Nada podia descrever a sensação de ter um plano de vingança posto em prática.[/align]
 
[align=center]CONSTANTE[/align]

[align=justify]Passava, naquela manhã parada de domingo, de cômodo em cômodo para ver se não havia deixado nada para trás. Estava se mudando para um pequeno apartamento no centro e deixar a casa onde crescera não era fácil. Era um casarão antigo de um bairro nobre, crivado de lembranças. Se aguçasse a audição, talvez fosse capaz de ouvir seu primeiro choro ainda ecoando pelo corredor que ligava a saleta onde foi realizado o parto ao quarto dos pais. Era ali, naquele corredor, onde as assombrações o esperavam adormecer. Furtivo, teria de atravessá-lo pé ante pé, nem tão rápido para não ranger a madeira do chão e nem tão lento pra não cair nas mãos do monstro. Aí sim poderia enfiar-se nas cobertas da mãe. O pai, é verdade, nunca gostou. Dizia que o garoto tinha que aprender a enfrentar seus medos sozinho, provavelmente por nunca ter tido uma mãe que o acolhesse. No jardim ainda permanecia intacta a casinha do seu velho amigo Sombra, um vira-lata destruidor de flores que, por não contentar-se somente com as tulipas do seu jardim, havia sido envenenado por algum vizinho que já não morava mais ali. Na mureta azul, ainda se via a silhueta de Isabela, tímida, resistente ao primeiro beijo, recusando o buquê de tulipas amassadas. Em seu quarto, um papel de parede o transportava para o espaço. Na sala vasta, um grande piano de cauda onde passava as tardes de sexta-feira tomando lições com a Dona Otilha. Não havia aposento que não lhe remetesse nostalgia.

A buzina do carro despertou-lhe à realidade. Estavam com pressa. Caminhou o olhar pela estante de livros, tentando reconhecer os seus. Precisava empacotá-los no papelão porque agora iriam enfeitar uma nova sala, seriam folheados por novas crianças – um filho que estava por vir -, talvez um servisse de apoio para uma nova mesa bamba, pertenceriam a uma nova família que estava sendo constituída, assim como fez seu irmão. Precisava desprender-se do abrigo materno. Impossível retirar um livro da estante e depositá-lo na caixa sem antes tirar-lhe o pó, mirar suas páginas, ver as anotações no rodapé, tentar lembrar onde e quando fora lido, e a cada exemplar que tocava, mais uma lembrança o envolvia. Passaria ali o resto do dia, preso ao passado, não fosse mais uma buzinada. Rapidamente encheu suas caixas sem remorso, pois sabia que também era inevitável esse processo na hora de colocá-los nas novas estantes, e ao fechar a última caixa notou que as prateleiras estavam praticamente vazias. Quase nada era de sua mãe e menos ainda herdara de seu pai. Com dificuldade, empilhou as quatro caixas no braço e desceu as escadas. Como não tinha fita nem barbante, as caixas não puderam ser devidamente fechadas. Já na rua, depositou-as empilhadas na camionete e, olhando assim de frente o casarão, entrou no carro. Mal bateu a porta e sua esposa arrancou, indagando o porquê de ter demorado tanto sabendo que estava com pressa. Não respondeu. Seguiram para a avenida, e numa curva estreita, em função da velocidade, as caixas despencaram. Não mais alinhadas em pilha, os livros se espalharam pela caçamba, e um deles, por ocupar o topo, caiu para fora. Rodopiou três vezes e foi pousar na calçada. Ele quis parar para ver se estavam todos os livros ali, mas foi censurado pela esposa, e assim a camionete sumiu no horizonte. Caiu a noite e o livro permaneceu ali, perto de uns sacos de lixo amontoados na esquina.

No meio de tanto negro, uma capa cor de mostarda destacava-se, um pouco suja e úmida pelo sereno. O mendigo, com pressa, despontou na outra esquina correndo em direção ao lixo: precisava ver se algo lhe servia antes que o caminhão da prefeitura passasse recolhendo a sujeira. Seu cão vinha atrás, manco, na velocidade que podia. Provavelmente havia brigado com outros cães de rua, pois sua perna inferior esquerda estava manchada de sangue seco e algumas moscas deliciavam-se na ferida exposta. O mendigo debruçou-se sobre o lixo apoiando-se na placa da esquina, e com a mão que lhe restara abria os sacos com violência. Restos de comida para o cão, um caixote de maçãs argentinas que lhe serviria de apoio, uma luminária quebrada e um brinquedo roto que poderia barganhar com os homens do mercado, uma escova de dentes totalmente gasta e, para seu completo espanto, um livro. Em todos os seus anos de esmiuçador de lixo nunca havia visto um livro assim, jogado ao relento. Que tipo de alma abandonaria um livro desse modo? Resolveu não questionar e depositou-o na sacola. De madrugada, com a parca luminosidade de um poste, deu uma olhada na disposição das letras, na formação das frases, tocou o título do livro em relevo, desfez algumas orelhas e cheirou-o enfim. Talvez não fosse o cheiro de carne podre que esperava sentir. Fechou o livro com força e, no dia seguinte, trocou-o no mercado da cidade, junto com o brinquedo e a luminária, por um litro de cachaça.

O livro, posto na banca do mercado, tardou a vender. Era uma boa edição de um bom romance, mas talvez os possíveis clientes não gostassem do cheiro de lixo que exalava. Uma senhora resolveu comprá-lo. Deixou alguns dias no sol, para que o cheiro saísse, e então pôde ter o prazer de ler o romance com calma, em seu ritmo. E em um mês inteiro a velhinha ocupou-se com ele, não que fosse grosso. E por mais dois meses ele ficou parado, entre outros volumes, num móvel colonial, até que a velha sofresse um ataque cardíaco e os filhos doassem suas leituras. Em outra caixa, similar à primeira, o livro furta-cor agora era transportado para uma creche, onde nenhuma criança tinha maturidade suficiente para entendê-lo, exceto um jovem de dezenove anos, que já sem esperança para ser adotado, resolveu fugir. E levou consigo o livro, debaixo do braço, enrolado em um cobertor e algumas latas. Passou aquela noite pensando se essa suposta liberdade realmente valia a pena, enquanto cochilava debaixo do viaduto, com outros foragidos. No dia seguinte, sem motivos, foi levado à delegacia e seus pertences foram confiscados. Um guarda desonesto resolveu ficar com o livro e com a lata de cerveja, passando o resto à seção de achados e perdidos. Em sua casa, não teve paciência para ler devido à falta de conforto - o máximo que tinha era uma poltrona rasgada. Da casa do guarda, o livro passou para outras mãos que prometeram devolver, e essas mãos passaram-no adiante para outras mãos furtivas, que também faziam promessas falsas, e o livro rodou por anos a fio, até que, por descuido ou por poesia, um menino de seis anos agarrou-o no ar para nunca mais soltar. Leu e releu a obra inúmeras vezes, o suficiente para que o odor de suas pequenas mãos se misturasse ao de outras mãos que já o seguraram previamente, e é por isso que o sujeito quando entra na livraria, antes de comprar qualquer livro ele antes o cheira, sente a essência que ele o transmite, para mais tarde, quando reencontrá-lo numa esquina qualquer entre sacos de lixo, possa distinguir quantas mãos o tocaram, saber quantas pessoas foram influenciadas por um punhado de palavras sobrepostas e dizer que o livro jamais lhe pertenceu, mas carrega consigo um pouco de cada leitor e deixa para os mesmos um pouco de si.[/align]
 
[align=center]A MUDANÇA[/align]

[align=justify] Alvo de quase todas as piadas feitas em sala de aula Ricardo não era o que se podia chamar de um garoto popular. Magro, de estatura mediana, branco feito leite de vaca, cabelos negros e lisos cortados ao melhor estilo capacete. Com inteligência acima da média, saía-se muito bem nas provas, e era o primeiro a levantar o braço sempre que a professora fazia perguntas à turma, o que não o deixava escapar de mais brincadeiras.

A vida de Ricardo não era nada simples, como se não bastassem os problemas na escola, sua vida familiar era muito instável, devido às brigas de seus pais, que eram muitas, qualquer fagulha servia para detonar uma nova confusão, e quando isso acontecia, o jovem recorria ao seu costumeiro ritual: subir no telhado de casa e observar a única pessoa no mundo que o fazia esquecer de tudo, Caroline, sua vizinha da frente, loira de olhos verdes, dona de um sorriso encantador, a menina estudava na mesma escola do rapaz.

Quando o silêncio voltava a imperar na casa, Ricardo descia do telhado e ia direto para mesa da cozinha fazer o seu dever de casa, de vez em quando tropeçava nos pés do pai, que estirado no sofá assistia a um jogo qualquer de futebol, afogando as mágoas entre um gole e outro de Wiskhey barato por seu filho não ter nascido com aptidão aos esportes e pelas constantes brigas com a mulher.

As expectativas de um novo dia não melhoravam nada, à caminho da escola já se punha a imaginar que tipo de problemas teria pela frente, mentalizava-se andando pelo corredor da escola que leva até sua sala, de cabeça baixa, espiando de rabo de olho os grupinhos que se formavam para debochar dele enquanto caminhava. As horas passaram voando naquela manhã, e por mais incomum que fosse, durante a aula não foi alvo de nenhuma perseguição, o dia fora "perfeito”. Mas quando estava quase no portão do colégio, parou de repente, seu coração começou a bater de forma acelerada, com seu estômago embrulhado devido ao nervosismo, Caroline estava bem ali, parada conversando com suas amigas e alguns garotos que sempre a bajulavam, e a seguiam feito moscas de padaria. Depois de alguns minutos, tentou se acalmar, e se propôs a andar de cabeça erguida até o portão, tentando não parecer mais esquisito do que era considerado. O mundo parecia girar lentamente ao seu redor, seus passos se arrastavam, em sua mente, imaginava que nunca tinha demorado tanto para andar cerca de 30 passos, mas tudo estava saindo perfeito. Ao sentir alguém se aproximar, Caroline desviou o olhar, que se encontrou diretamente com o de Ricardo, e, devido a isso, ficando mais nervoso perdeu o controle de seus movimentos e tropeçou na ranhura da calçada, caindo de quatro bem em frente de onde estava o grupinho da menina. Risadas altas e dedos apontados, logo uma multidão se formou ao seu redor, caçoando, jogando sua mochila de mão em mão, apenas Caroline parecia comovida. Tomado por um impulso Ricardo se levantou, tornou a abaixar a cabeça e correu o mais rápido que pode em direção a sua casa, ao chegar, nem reparou que seus pais estavam novamente brigando, subiu as escadas e trancou-se no quarto, arrasado, pois embora fosse sempre alvo de piadas, nunca tinha passado tamanha vergonha na frente de quem tanto amava.

Jamais havia chorado tão amargamente, suas lágrimas pareciam arrancar um pedaço de sua alma, tinha chegado ao limite de tudo que poderia agüentar, foram anos servindo de chacota na escola, vivenciando quase diariamente as brigas dentro de casa, a falta de amigos, de repente nada mais fazia sentido àquela criatura. Um turbilhão de pensamentos invadia sua cabeça, “não posso continuar vivendo desse jeito, seria melhor se tudo terminasse aqui”. Decidido a acabar com a própria vida, esperaria todos adormecerem, para ir até o quarto do pai e pegar seu 38 que ficava escondido em uma velha caixa de sapatos na prateleira de cima de seu guarda-roupa. Deitou em sua cama, imaginando que dentro de algumas horas tudo estaria acabado. Já passava das nove, e seus pais permaneciam acordados, dava para ouvi-los no andar de baixo trocando palavras de amor:

? Você podia ser mais útil ao invés de ficar o dia todo enchendo a cara com essa porcaria que bebe.

? Se não está satisfeita vá procurar outro macho. Duvido que alguém agüente você.

Após tanto tempo chorando, e remoendo os últimos acontecimentos o cansaço foi tomando conta de seu corpo, seus olhos foram ficando pesados e em pouco tempo estaria dormindo profundamente. Como depois de toda tempestade vem a calmaria, no dia seguinte Ricardo acordou confuso, embora triste e magoado, a coragem de tirar sua vida havia escapado enquanto dormia. Durante uma semana se ausentou da escola, disse a sua mãe que estava doente, e ficou a maior parte desse tempo trancafiado em seu quarto.

Com o fim do ano se aproximando, Ricardo resolveu que era hora de reunir as forças e voltar à escola, uma semana depois do acontecido ninguém mais deveria se lembrar daquilo, pensava consigo mesmo. E de fato, ao chegar ao corredor de sua sala, tudo parecia ter voltado ao normal, grupinhos cochichando, olhares indiretos, o mesmo de sempre. Em sua direção caminhavam duas das amigas de Caroline, passou por elas de cabeça baixa, e quando já estava um pouco distante ele escutou umas das garotas dizendo:

? Ainda não consigo acreditar que a Caroline acha esse cara esquisito bonitinho!

Atônito, Ricardo diminuiu a velocidade dos passos, seus olhos ficaram ligeiramente humedecidos, não dava para acreditar que aquilo estava acontecendo, à uma semana tinha resolvido acabar com sua vida, mas não tivera coragem. A partir deste momento prometeu que nunca mais sentiria pena de si mesmo. Levantou a cabeça e continuou em direção a sala de aula. Era um dia qualquer de Novembro, mas se lembraria para o resto de sua vida desta data, quando aprendeu que tudo na vida por mais improvável que pareça pode mudar, basta apenas não desistir. [/align]
 
[align=center] CÚMPLICES[/align]

[align=justify] Olhava uma pequena embalagem, não sei se de sardinha ou de quitute, ela balançava de um lado para o outro demonstrando a cada movimento um equilíbrio, um vazio, e ainda um som que eu não cansava de escutar, só mantinha minha esperança, e ainda vazia. Assim também era como eu me sentia naquela noite, e nada de conotações, eu realmente estava vazio. Eu a encarava como se nunca estivesse estado frente a frente com uma lata. Eu desejava que ela estivesse cheia, que contivesse pelo menos um sulco, uma caldo ralo, e que assim eu pudesse ter a chance de contornar meu dedo pelo interior do objeto e então poder desfrutar o mínimo que fosse daquele meu harém particular. Lembrei que minha mão, e, portanto, meus dedos não estavam em boa situação, afinal eu estava sentado no chão. Olhei a imensidão de água, o rio estava cheio, e tempos de chuva ele avançava ate o ponto mais alto do cais. Esse não era o caso, mas seria com mais duas chuvas. Eu me via ameaçado, gostava de ficar ali observando as coisas, era o que eu poderia fazer. E aquele era o melhor lugar para pensar. Levantei até a beira do rio e lavei minhas mãos, para aproveitar a ida, e assim não gastar tanta energia, não poderia vacilar, então acabei me lavando mais, as partes mais expostas na verdade. Guardava comigo um pequeno pano que às vezes me dava o que fazer durante o dia, uma pequena flanela encarnada, que deixava que os bacanas me confundissem com os lavadores de carros experientes. Eu não sabia lavar carros com perfeição, lavar carros requer técnica, eu descobri isso por causa dos bacanas.

Quando terminei de passar o pano em meu corpo, voltei aos meus pensamentos, à latinha ainda estava no chão talvez já estivesse delirando há uns vinte minutos. Não que eu tenha certeza disso, o tempo é incerto, já que eu também imaginei o rio a minha frente como um grande caldeirão de sopa, que fervia sem parar e que exalava uma corrente invisível de tempero que daria diretamente a minhas narinas e emanava um prazer, uma sensação de saciação em mim. Eu não conseguia parar de pensar nas tantas possibilidades de utilizar uma latinha de sardinha ou de quitute (que seja), uma dose de criatividade cuidaria disso rapidinho. Minha mãe sempre dizia que não havia um armário sem alimento, mas provavelmente uma mente sem imaginação. Quando agente não tinha o que comer, ela sempre dava um jeito. Eu sai desse estado de privação, tentando encontrar uma resposta para o que eu estava vendo naquele momento. Perto dali, havia uma praça onde nos costumávamos dormir, entre os inúmeros trintões e quarentões do pedaço, também morava conosco um garoto, pelo qual todos tinham um admirável apreço. Talvez seja por que ele era muito encantador e muito convincente quando contava a história para quem quer que fosse que a mãe o abandonou em um abrigo e casou com um ricaço aí não sei de que. Como pode ser uma criatura encantadora vivendo nas condições que vivia? Isso eu achava que fosse da condição humana mesmo, um homem poderia ter várias facetas na vida, a dele era aquela. Ele não a conhecia, mas tinha uma esperança incrédula que ela iria o encontrar um dia e o levaria para casa. Ao ouvir isso mais uma vez aquela noite, foi aí que eu dei meu jantar para ele comer. Eu não me arrependi. Ele era apenas uma criança, não sabia ainda o que era melhor para ele, deveria estar pensando que a mãe realmente iria buscá-lo, não estranhava ele pensar assim, afinal todos os dias eu pedia a Deus uma cama e um lençol limpinho. E ele não tinha os macetes necessários para viver na rua, iguais aos meninos lá de baixo, aqueles ali eram verdadeiros meninos da rua.

Não fiz nada. Apenas observei a cena. Eles estavam conversando. O garoto estava envolto por um molambo qualquer e o homem estava vestido como se fosse dia de São Pedro. Não era grande coisa, bem que o santo merecia mais mesmo. Sentado próximo ao garoto ele carregava consigo uma pequena bolsa, onde deveria estar seus pertences, eu logo percebi que ele também queria uma morada. O garoto não. Eu peguei meus jornais e pus próximo aos dois queria escutar a conversa, já durava um bom tempo, ele já deveria ter contado da mãe para o estranho. Já falava em como seria uma vida fora de uma casa que não era sua e fora da rua que é de todos. Me aconcheguei do jeito que deu, coloquei a mãos atrás da cabeça e fiquei olhando.

- O que você faz? O menino estava curioso, já que ele tinha compartilhado algo da sua vida com o moço, ele queria algo em troca.

Achei a pergunta muito inocente. Pela expressão do moço, ele não parecia está acomodado com o questionamento do garoto. Então conclui que aquele não seria um assunto para criança.

-Eu sou marceneiro. Ele disse depois de relutar um pouco. E eu logo percebi que ele mentiu para o menino. Eu também mentiria se realmente fosse algo que deveria esconder.

-Você ganha muito dinheiro com isso? Aquela também não era uma boa, pois se ele estava ali querendo disputar um lugar para dormir com ele, como poderia ganhar dinheiro? Ele respondeu, queria se mostrar cortes, digno de alguma coisa, ele agüentava bem.

-Quando uma pessoa trabalho muito ela ganha dinheiro sim.

- Ah. O garoto achou admirável a resposta, o homem realmente causou a impressão que queria causar. Mas ele não contava com a falta de sono do menino aquela noite, ele queria bater papo ate adormecer.

- E você não ganha mais? Os olhos deles estavam fixos no homem, assim como seu corpo estava fixo no molambo quadriculado. Já da meia noite, o relógio da igreja poderia estar velho, mas estava certinho, eu já estava ficando velho também, com fome e com sono agora. Eu tentava não mais pensar em comida, pelo menos queria dormir sossegado, se fosse possível. Mesmo com a tempestade que se fazia em meu estômago.

-Deixa o moço dormir Zé. Eu murmurei pra ele, era assim que todos os chamavam. Não fez muito efeito, ele não disse nada, nem ao menos se moveu.

Ele queria saber o que ele fazia, o que ele gostava de fazer, o que ele estava fazendo ali, o que ele tinha feito. Eu senti seu corpo estremecer com o bombardeamento de perguntas.

-Eu gostaria de voar até minha mãe e dizer pra ela que eu nunca esqueci dela. Eu não sei de onde ele tirou aquilo e muito menos de como ele poderia ter alguma lembrança da mãe. Eu também não saberia dizer se aquele desabafo repentino tinha alguma coisa a ver com a conversa que se desenrola entre os dois, eu desviei minha audição por m instante e perdi o curso. Talvez ele já estivesse adormecido aquele momento e suscitava essas palavras que mesmo só passavam de um sonho. Dali em diante, eu cheguei a achar que eu havia cochilado. A conversa havia chegado a um ponto que eles estavam falando sobre liberdade. Não que eu achasse que aquele fosse um tema adequado para a situação, como uma criança poderia ter qualquer noção sobre liberdade. Eu sempre achei quando era criança que esse negócio de liberdade só era aplicado quando agente ficava preso, privado de alguma coisa. No mais agente não pensava nisso, a vida alem de ser uma brincadeira, parecia bem uma porteira bem aberta. Outra vez eu pensei que a liberdade só era dada aqueles que tinham uma espécie de passaporte, carimbo ou marca, alguma coisa que o fizesse especial. E finalmente, cai na real e vi que esse assunto de liberdade não passa de uma desculpa poética de que o mundo e lindo e maravilho. Ainda não cheguei à outra conclusão. A palavra deve ter me chamado atenção em meio a tantas que eles diziam por eu já ter pensado tanto sobre ela, e por, de algum modo, ela implicar importância para mim. Eu ainda teria que pensar muito sobre aquilo, nada seria resolvido em uma noite.

-E como você fazia na cadeia? Fiquei espantado e ao mesmo tempo decepcionado comigo por ter perdido a melhor parte da conversa. Qual crime aquele homem poderia ter cometido? Eu não o imaginaria matando alguém ou talvez assaltando um banco. Não o imaginaria ele vestido para a procissão colocando sua mão em uma arma para matar alguém ou para assaltar um banco. Fiquei impressionado com a minha falta de imaginação. Ele talvez tivesse falsificado dinheiro, deve ter sido a origem da roupa dele ou formado quadrilha, estava na moda esse negócio, eu sempre via na televisão do bar do Loro que o bandido praticava crime de morte e formação de quadrilha, assalto e formação de quadrilha, trezentos crimes e formação de quadrilha. Hilário. Mais um para o cara responder, como se o individuo não necessitasse viver em grupo. Eu já estava mais esperto para o rumo dos dois. Deixei de leseira. O assunto era sério, coisa de polícia é sempre sério. E meu estômago já começava a roncar novamente. Era só começar a pensar demais. Os dois já não demonstravam tanto entusiasmo para a conversa. O moço já se aconchegava no local de sua escolha, parecia que depois do teste já se sentia bem vindo a nossa morada. Eles ainda balbuciavam alguma coisa. Eu não me contive, eu começava a me interessar pela historia.

- Me desculpe eu me intrometer na conversar dos dois, mas do que vocês estavam falando? O moço nem ao menos olhou para mim para responder, e disse:

-De nós dois.

Eu poderia voar no pescoço do sujeito por não ter saciado a minha curiosidade. Ele poderia também achar que eu estava tirando alguma com a cara deles, eu estava ali, de olhos abertos, deveria ter escutado tudo, assim seria pelo curso natural das coisas. O garoto foi mais compreensível e incompreensível.

-Enquanto eu quero me prender a um lar, ele quer desfrutar da liberdade se prendendo a vida.

Esse garoto estava me saindo muito sagaz. Foi isso que ele disse e depois bocejou encostando a cabeça sobre as mãos espalmadas. O moço havia feito o mesmo. Os dois ficaram ali parados, dormindo, as bocas travadas, como dois laços que não de desfariam, cúmplices do que cada um havia anulado do outro. Eu fiz o mesmo. Deixei pra lá aquela história, voltei a pensar na latinha de sardinha (ou quitute) abandona na beira do rio. E com vontade de ir até dá mais uma observadinha.[/align]
 
[align=center]SOBRE PÁSSAROS QUE NÃO SE VÊEM E CACHORROS QUE FEDEM[/align]

[align=justify]Deitavam-se na grama e contavam sapos voadores.

“Eu contei cinco”, dizia a menina.

“Aquele não conta”, respondia o menino. “Asas de morcego.”

“Mas ele voa.”

“Mas não é um pássaro.” Passou-se o silêncio, ele continuou: “é um roedor”.

As asas de penas multicoloridas brilhavam vividamente sob a luz do sol. Como vários arco-íris em espiral, brincando com a luz do sol em espectros improváveis e alucinantes. O menino e a menina, deitados na grama, a contarem sapos voadores.

O problema era que sapo não cantava como pássaro. O canto dos sapos voadores causava náusea e ânsia de vômito se escutado por muito tempo, a visão caleidoscópica de suas asas em constante movimento fazia seus olhos arderem. Não havia tempo para fazer uma recontagem. Era preciso tampar os ouvidos e sair correndo dali depois de algum tempo.

Os pais sempre acharam que os dois tinham um estômago fraco. Ao menos três vezes na semana, não era raro o casal Whitflower, ou Brimwitz, encontrar sua filha, ou filho, a vomitar o almoço recém ingerido. Cada uma das crianças ia ao médico pelo menos uma vez ao mês para exames. Nunca ninguém diagnosticou nada; receitavam qualquer coisa que acreditassem ser inofensiva para disfarçar a incapacidade de descobrir o que havia de errado com aquelas crianças. No começo os dois sentiam muita dor de cabeça por causa dos comprimidos. Com o passar do tempo, nem percebiam mais. Para fingir o efeito do remédio, com medo de serem pegos na mentira, diminuíam a freqüência do seu jogo em algumas épocas. Fingiam surtos em outras. Começaram com um comprimido por dia. Com o passar do tempo, eram de 4 a 6.

Por que eles não diziam a verdade? Provavelmente ninguém acreditaria, já que só eles conseguiam enxergar os sapos voadores (e outras coisas mais). Em pouco tempo eles descobriram isso. Ninguém mais via as coisas que eles viam. Depois de umas poucas tentativas fracassadas, resolveram que seria mais fácil manter o segredo. Desistiram das explicações ignoradas e aceitaram guardar aquilo só para eles. Contar sapos voadores era divertido demais para deixar um pouco de vômito atrapalhar.

E não apenas contavam sapos voadores. Só eles viam também os gatos flamejantes, tanto os azuis quanto os verdes. Apareciam no alto de algumas das pequenas colinas que rodeavam a cidade. Apareciam no instante exato em que a tarde dava lugar à noite. Eles sempre apareciam, um em cada colina, de pêlos arrepiados em chamas. Labaredas azuis (ou verdes) que brilhavam como fantasmas na penumbra. Eles miavam bem alto, arreganhavam os dentes, os encaravam de modo amedrontador por alguns instantes, e depois sumiam. E então, só no outro dia os veriam novamente. Eles gostavam da sensação, do susto provocado quando os gatos apareciam, e, principalmente, dos breves momentos de puro terror que experimentavam. E gostavam depois de comentar um com o outro.

Havia ainda uma terceira coisa. A favorita. A única que só acontecia nos fins-de-semana. Aos sábados e domingos, eles viam os pássaros invisíveis, o que pode parecer um paradoxo, mas na verdade fazia sentido.

"É como um pássaro, tem a forma de um pássaro, mas não é feito de nada."

"Tem que ser feito de alguma coisa", o menino se remoia.

"Eu acho que é a alma de um pássaro", dizia a menina, apertando os olhos contra o sol.

"Mas tem que ter alguma coisa para colocar a alma dentro, se não ela, ela...", aqui o menino parou e pensou em qual seria sua próxima palavra, "espalha", continuou, abrindo os braços no ar para enfatizar.

"Hummm”, ela fez, coçando o queixo e franzindo a testa.

Os pássaros não podiam ser vistos. Mas podiam ser ouvidos, e o seu canto era quente e doce. E se você prestasse atenção em seu som e tentasse segui-los, por puro instinto e intuição, em algum momento um deles passaria na posição correta entre você e o sol, e a luz iria incidir no ângulo preciso em sua penugem invisível, e você veria um grande e belo pássaro de luz.

Caso tivesse sorte e conseguisse passar a mão por algum deles (sim, podiam ser atravessados), ou até fazer com que um deles passasse por você, nos dias quentes era como uma brisa gelada de final de primavera, nos dias frios, era como um abraço quente de mãe.

Horas passavam admirando e brincando com esses estranhos e deslumbrantes seres fantásticos que apenas eles viam.

Tinham certeza de que eram reais. Nunca duvidaram disso. Aquele mundo existia e era só para eles. Todas as outras pessoas o desconheciam e continuavam a viver em seus mundos normais, sem jamais descobrir essas maravilhas. Primeiro eles não souberam o que fazer com isso. Com o passar do tempo, era só o que lhes interessava.

No outro mundo os gatos não pegavam fogo, os sapos não voavam, e era impossível de se avistar os pássaros invisíveis. Não havia nada que se comparasse em beleza e vida àquilo que eles experimentavam. E continuaram suas vidas fechadas nas miragens. Tudo o mais era uma tarefa enfadonha. O menino já não se importava com o resto do mundo. Amigos, pais, escola, nada era real. Não tão real quanto o mosaico alucinógeno dos sapos voadores, ou o deslumbre terrível dos gatos em chama, ou o canto intangível dos pássaros de luz. O menino tornou-se obcecado. Mais que visões, ele acreditava que aqueles seres estranhos guardavam algum tipo de verdade maior sobre o mundo, as pessoas e sobre si mesmo. Era só o que ele fazia: os estudava, os admirava, tinha longos debates com a menina, e, mais tarde, consigo mesmo. Os enjôos tornaram-se mais freqüentes. Seus pais aumentaram a dosagem das pílulas. O menino continuava esquivando-se das refeições para contar os sapos voadores. Ninguém mais o via nos fins-de-semana: estava caçando pássaros invisíveis.

Ele nem percebeu a primeira vez que a menina bocejou.

"Eu, honestamente, não sei se devemos manter a regra da asa de morcego", resmungou o menino sentado na grama. "Ele voa do mesmo jeito."

Deitada ao seu lado, a menina abriu a boca largamente e a tampou com a mão.

Os dias passaram.

"A gente tem que ver os gatos de novo?", ela indagou. "A gente podia tomar sorvete, tá calor."

"Eu acredito sinceramente que os miados não são apenas miados", ele retrucou sem nem ter dado atenção à pergunta. "Eles estão querendo dizer alguma coisa."

Mais dias se passaram. A menina não brincava mais com ele.

Por muito tempo ele não ligou. Continuava mais interessado em seus animais proféticos. Até aquela fatídica tarde de outono. Dispensou o almoço e foi deitar-se no gramado. Passaram-se horas e nenhum sapo apareceu. Foi atrás dos pássaros invisíveis no bosque, mas eles não estavam lá. À noite, nenhum gato flamejante subiu nas colinas. Voltou no dia seguinte, e nada. E no outro dia, e mais nada. E assim, ele nunca mais viu nenhum deles. Com o tempo, entristeceu. Depois, adoeceu.

Passava os dias em casa sem vontade de fazer nada. Ignorava a escola, os amigos, os pais. Sentia-se deprimido. Não via mais graça em nada, não ria, não falava. A alegria dos pais pela interrupção dos enjôos constantes foi logo substituída pela preocupação com a febre que o assolava. Nesse ínterim, o menino descobriu do que realmente sentia falta: da menina. Sentia falta de suas conversas, de suas piadas, sentia falta de quando ela segurava sua mão toda vez que viam um gato, flamejante ou não. O menino passava dias inteiros em sua cama, sem forças para fazer qualquer coisa que não fosse ficar deitado, perguntando-se para onde foram os pássaros de luz, por que a menina não o visitava mais.

Os comprimidos deixaram de ser brancos e tornaram-se azuis, vermelhos, verdes... Um pequeno arco-íris em seu criado-mudo. Lembravam pequenas balas, mas eram amargas, e lhe faziam mal. Agora ficava enjoado o tempo todo, tinha diarréias e parecia um pequeno esqueleto de oito anos de idade. Não conseguia comer nem dormir. Seus olhos deram lugar a duas cavidades profundas e escuras. Sua mãe chorava constantemente. Seus dedos se tornaram tão frágeis quanto gravetos. Seu pai não entrava mais no quarto. Pensavam em interná-lo, mas não tinham coragem. O menino, quando acordado, miava o tempo inteiro.

A menina soube. Curiosa com a ausência do menino na escola, resolveu investigar. Foi correndo à sua casa. Quando o viu na cama, não conteve o susto. Custava a acreditar que aquele corpo quase cadavérico era o mesmo que corria com ela pelos bosques e praças, o mesmo que, quando abraçava, parecia ser uma extensão do seu. Com os pés juntos, a passos curtos, aproximou-se da cama, mirando o amigo com os olhos esbugalhados e úmidos.

"Sua mãe disse que você não pode ir mais para a escola."

O garoto não respondeu, continuava encarando o teto e nem parecia perceber a presença da menina.

"Eu queria falar com você mas não te achei."

Silêncio.

"Eu vi um cachorro amarelo ontem, tinha cabeça de duende e falava que nem peixe."

O menino suspirou e disse finalmente: "eu não vejo mais nada”.
"Eu posso te mostrar."

"Eu não quero ver o cachorro amarelo."

A menina parou, e continuou: "ele é bem feio na verdade, e fede."

O menino riu, e ela riu também, e logo os dois riam juntos. Uma risada infantil e sem razão, da que se ri apenas por rir.

Não demorou muito para que o menino melhorasse. Aos poucos foi ganhando cor e sustância. Aos poucos recuperou o brilho dos olhos. A menina o visitava todos os dias. Conversavam e brincavam de adivinhação. Depois que o médico deu sua permissão, ela passou a levar sorvete para ele. Aqueles foram os dias mais felizes de suas vidas.

Não demorou muito para que o menino morresse.

A menina nunca mais viu os sapos voadores, ou os gatos flamejantes, ou os pássaros invisíveis, mas, durante o resto de sua vida, foi seguida pelo cachorro amarelo, que tinha cabeça de duende, falava que nem peixe, e fedia.[/align]
 
[align=center]O PRÓXIMO[/align]


[align=justify] Em meio ao sol que se punha na tarde cinzenta em Kallim, um jovem, sentado nos prédios baixos da cidade abandonada fazia sobra sobre o que um dia foi o chão do salão principal da grande biblioteca. Uma imagem negra prostrada bem no meio da armação de ferro do que um dia já havia sido os vitrais do templo de sabedoria da uma cidade agora decadente. Uma visão triste para quem um dia passeou pelos corredores tomados de livros e manuscritos. Os centros velhos sempre morrem e levam consigo todo o poder das coisas, nada mais passa de simples poeira branca e sem vida que vai grudando nas superfícies já castigadas pelo tempo. O que existe de mais velho numa cidade que sua biblioteca?

O jovem vulto negro se levanta e salta de seu poleiro metálico alcançando o chão poucos segundos depois e levantando assim uma pequena nuvem de poeira literária constituída do papel de velhos livros. O crepúsculo já havia chegado e ficar e ficar a visão dos inimigos não era uma decisão muito sábia a se tomar, mesmo em dias de paz como aquele, onde os Últimos não eram mais caçados pelos demônios invejosos. Caminhar pelos corredores escuros da sessão de livros proibidos também não era muito esperto, mas pelo menos seria menos perigoso do que esperar que os céus fossem tomados pelos alados que espalham seus gritos infligindo medo a quem ainda insistia em viver em meio as ruínas.

Com passos curtos e sem vontade o vulto negro chega a uma pequena porta, o ultimo canto iluminado pelo resto de raio solar que entra tímido pela fresta na parede. Mais uma decisão nada inteligente em meio a uma série de acontecimentos que comprovavam seu prazer em desafiar o limite da coragem.

Uma sala mais escura se revela timidamente a seus olhos acostumados a falta de luz. Não é um breu total, tochas e velhas de tons esverdeados tornam tudo sombrio e emanam uma luz fria como a morte em corpo antigo. No final de sua extensão, o único que o senso de profundidade poderia alcançar aquela iluminação, um homem, um ser, uma coisa, se mantinha de pé com muita dificuldade enfrente a um espelho redondo e grande o suficiente para refletir um elefante ou a verdade pro trás da mascara de uma mulher com mais de oitenta anos naquele mundo sujo. O silencio mortal coroado pelas lufadas de ar que faziam o cheio podre se mover davam a toda essa cena uma veracidade mais do que necessária.

“Não precisa se acanhar criança. Sei quem você é e porque está aqui. Não deves me temer e nem a qualquer outro que está presente nessa sala, pois somos os guardiões da entrada para a cidade profunda e mais mal do que fizemos não podemos infligir.” Disse a voz que ele julgou ser do velho de cabelos grisalhos e logos que estava a frente do espelho. Não era uma voz agradável e também tão pouco condizente com a idade de seu portador. O ancião havia falado em outros, mas o jovem não conseguia ver ninguém além deles. Quem sabe eles não estavam nas trevas ao redor? Achou melhor empunhar sua espada de lâmina fina e esperar um ataque surpresa. Mas a verdade é que nunca tomamos boas atitudes quando nos sentimos acuados, e retirar a lâmina de sua bainha só fez com que velhas feridas viessem a tona naquele lugar onde parecia se morar uma entidade mais belicosa do que os homens de Moridiam.

- Recolha a sua lâmina garoto tolo – um trovão tomou conta de tudo. – O velho já não disse que não precisa temer os guardiões? O que pensa que somos?

Sangue gelado correu nas veias do jovem e ele percebeu que não deveria temer quem se mostra tão grandioso mesmo quando aprece sofrer. Sua lâmina voltou a bainha e as luzes brilharam mais forte revelando aos seus olhos toda a extensão da sala a sua volta. Um mar de espectros cercando a pequena ilha onde ele e o velho se encontravam. Não pode contar quantas entidades estavam a sua volta porque nem seus olhos de meio demônio puderam ver até onde ia aquele salão. A porta que deveria estar atrás de si, já não existia mais e o chão nada mais era que um amontoado de entulhos e corpos apodrecidos onde os rostos de crianças se confundiam a expressões nada humanas. Aqui e ali o chão era salpicado de homens peixe, serias, sátiros e tantos outros seres dos quais só conhecia por meio e lendas passadas de boca em boca. Sua atenção voltou para o ancião que agora estava a menos de cinco passos a sua frente e mostrava pela primeira vez sua face branca.

Um misto de agonia, medo, desespero e horror se embolaram na garganta e não deixou que nada subisse ou descesse. Não era o rosto mais horrível que ele havia visto, já havia lutado com demônios e seres das trevas mil vezes mais próximos do próprio anjo caído. Porém aquele rosto era tão humano, tanto quanto jamais foi se visto desde que os últimos dias tomaram conta de tudo. O que o perturbava era a essência humana e inocente daquela face, pensou que não poderia ser ele o portador das instruções que procurou por todo esse tempo.

- Não se impressione criança. Essa face que vês nada mais é do uma casca que escolhemos para habitar. Tu mesmo sabes bem quem somos. Sabes o quanto somos e o nosso nome. Sim! Nos chamamos Legião, pois somos muitos e muito mais seremos quando o ultimo punhal for ferino. Um monte que compõem um só. Não me fite nos olhos mais uma vez ou será obrigado a contemplar todas as faces verdadeiras de uma só vez, por isso se ajoelhe e contemple o que tenho a lhe dizer. – os joelhos jovens se dobram mesmo sem vontade. Não existe contra o que lutar, pois ali não existe só um ser, Legião é uma das entidades mais velhas do mundo humano e por isso deve ser respeitada.

Agora que seus olhos não podiam ver mais o ser a sua frente, sua mente era capaz de desenhar com calma cada uma das faces que compunham aquele amontoado. Sabedoria sinistra se irradiava de dentro daquela casca como uma energia poderia estar contida em um só avatar é a grande questão para o ajoelhado.

- A calma te coração negro. Não tens sabedoria o suficiente para entender o que somos, porém eu sei bem que tu és. Um filho do mal com o bem, um andrógeno encarnado, nem homem, nem santo, nem pecador, nem anjo, nem demônio. Até mesmo para nós és uma aberração que nos inspira medo. Também sei o porquê de sua vinda até o meu local de descanso e previno que nem todas as respostas que deseja encontrar estarão em nossa posse. Venha até meu espelho e eu lhe mostrarei a primeira resposta já que perguntas não são necessárias.

O trajeto até o grande espelho redondo emoldurado por ossos, crânios e uma massa negra sem nome, é para o jovem como aquele trajado pelo nazareno entre o Vale da Morte. Entre o primeiro passo e chão é possível sentir o passar dos anos. Estar ali o fez lembrar de toda a jornada que fez para chegar até o ponto mais distante. Lembrou de sua infância entre os últimos humanos que a terra permitiu em sua face vermelha viver sem serem caçados pelos grandes demônios rubros, roxos e pardos que haviam se libertado depois da quebra do sétimo selo. Nem tudo havia sido como no livro dos homens, pois os homens não viram o todo, só a parte que os interessava. Nunca houve quatro cavaleiros, a morte cavalgou sozinha ceifando qualquer coisa viva em seu caminho e foi uma longa estrada até que ela se cansasse e percebesse ser apenas um pião num tabuleiro mais velho do que ela mesma. Ele não viu muitos morrendo, foi criado com aqueles que herdariam a terra depois que o mal tomasse conta e esses foram poupados por uma barganha feita a muito tempo ainda na cidade de prata.

Segundo as lendas entre o povo do novo mundo, o próprio Lúcifer prevendo uma derrota, faz um trato com a morte. Nesse dia de tempo incontável, a Morte o anjo caído negociaram um plano sujo onde os termos eram claros: independente de quem vencesse a guerra, ela, a morte, deveria poupar os que fossem mais fieis a seus credos. Quando choveu sangue pelo mundo, somente aqueles que tinham a Estrela da Manhã em seus corações foram evitados pelo anjo ceifeiro, pois eles levantaram suas cabeças e beberam do sangue em nome de seu mestre. Ele se lembrou do dia, do ultimo dia e de quanto sangue seus pais o fizeram tomar até que seu corpo começasse a expelir o liquido vermelho pelos olhos e pelos poros. Havia sido salvo por uma crença que nem mesmo podia entender, ninguém entende nada aos seis anos de idade, mesmo o escolhido.

O pé tocou o chão de mortos e seu devaneio cessou. Já estava de frente a superfície refletora da verdade e nem ao menos se recordava de ter dado mais do que o primeiro passo. Mas isso já não importava mais, pois seus olhos haviam encontrado outra visão assustadora: seu reflexo verdadeiro.

Muitos não gostariam de ver seu reflexo naquele espelho, ele mostra muito mais do que um simples reflexo, mostra a verdade de cada um. Se suas verdades forem muitas, muitos reflexos lhe serão apresentados. Anjo, demônio, humano, bicho todas essas visões se revezavam numa confusão organizada para mostrar ao jovem sua real verdade. Nenhuma delas agradava, nenhuma delas desagradava.

- O que? Espanta-se? Achou mesmo que por algum minuto tu foste do o salvador do mundo? – uma risada de satisfação saiu dos lábios de Legião – Aquilo que vez no espelho de Numara Rumani é exatamente o que és! Bem e mal, santo e demônio, Cristo e anti-cristo, Começo e fim. Não se assuste criança e muito menos se regozije de ser o que é. Vieste até aqui para respostas e essa é a primeira que tenho a lhe dar: te não és a salvação do mundo!

A imagem refletida parou de se mover e se fixou num borrão vermelho sangue com chifres enormes e um par de azas. Aos poucos foi ficando mais nítido para os olhos, até ser como um murro a ferir as esperanças do jovem.

- Então o que sou eu? – pela primeira vez sua voz se fez ecoar pelo salão de tamanho infinito e ele pode perceber que todos aqueles a sua volta respondiam ao mesmo tempo.

- Você é o inicio após o final! Você é o próximo Deus!

A imagem refletida parou de se mover e se fixou num borrão vermelho sangue com chifres enormes e um par de azas. Aos poucos foi ficando mais nítido para os olhos, até ser como um murro a ferir as esperanças do jovem.

- Então o que sou eu? – pela primeira vez sua voz se fez ecoar pelo salão de tamanho infinito e ele pode perceber que todos aquele a sua volta respondiam ao mesmo tempo.

- Você é o inicio após o final! Você é o próximo Deus![/align]
 
[align=center]DO AMOR SE FEZ ESCAMAS[/align]

[align=justify] Estava, de fato, apaixonado. Loucura. Total insanidade. Enfim, ele pôde sentir aquele sentimento que nunca lhe aflorou. Era incomumente indescritível. Deixou aquela sensação percorrer-lhe por inteiro. E então se acalmou.

Foi a primeira vez que a vira. Ela aproximou-se dele e abriu os braços alongando as pontas dos dedos. Tocando o nada, a moça sentiu o vento percorrer-lhe o rosto esmero e encheu os pulmões do ar límpido e fresco que divagava. Os olhos fecharam-se a fim de aguçar a audição, de ouvir o som que ele fazia para impressioná-la. A boca abriu-se com um sorriso singelo e doce ouvindo-o falar. Os cabelos da cor do mais maduro caju dançavam com o vento, flutuando para o lado. Os pés descalços permitiam ver as pequenas veias de tons azulados carregadas de sangue nobre.

Ele estava nervoso, irrequieto. Fez então com que o vento à volta dela sibilasse abruptamente, com o intuito de afagar-lhe. Ela estava encantada por ele. E ele, apaixonado por ela.

Bilhões de pessoas já haviam ido de encontro a ele. Já haviam sentido sua essência. Ele estava em todo lugar; em qualquer lugar. Recobria tudo, encharcava o planeta. Mas nunca antes houvera criatura que o tocasse, olhasse e sentisse daquela forma. Seria ela assim tão encantadora, ou ele demasiado encantado por tal beleza?

Pela primeira vez suas ondas iam de encontro a alguém não com o intuito de continuar sua monótona e cíclica rotina de ir e vir, de tombar pessoas, raptar taturanas, encalhar medusas ou molhar os finos grãos de areia debaixo dos pés de qualquer um; agora suas ondas queriam alcançar-lhe o mais depressa possível, queriam tocar os pés da moça para sentir a leveza que possuíam.

Exalou o cheiro de sal, água e areia que, mesclados, só arremetiam aquele lugar. Descobriria a cor do esmalte que seus dedos carregavam.

Chegar a seu tornozelo seria pura fantasia. Delírio axiomático, tangível apenas em pensamento.

Mas não era.

Ela descolou as pálpebras umas das outras, estava inerte em pensamentos puros. Olhou-o intensamente, séria e com o desígnio de adentrar-lhe, de enfim senti-lo pela primeira vez em sua vida. Levou os braços à nuca, acariciou-se e decidiu então ir de encontro a ele. Inocente e cândida, ela aproximou-se com o evidente objetivo de banhar-se em suas enormes ondas acolhedoras, de flutuar em seu transparente líquido e fazer seu primeiro nado em águas salgadas. Ela admirava-o, mas o fazia como qualquer outro ser que olhasse sua imensidão o faria. Mas não era dessa forma que ele imaginava os sentimentos da pura moça.

Para ele, aquele brilho que o sol transmitia por seus olhos femininos era inigualavelmente de alguém que estava apaixonada. Ele tinha certeza de que aquele olhar não estava carregado somente com admiração de um ser humano que só pretendia molhar-se, secar-se no sol e dar as costas àquela imensidão molhada.

Ao tocar seus pés, ele pôde misturar-se a sua pele, tocá-la, perpassá-la. Queria falar-lhe de seus sentimentos, compartilhar de seu encanto. Mas seus esforços só faziam produzir ondas, e aliadas a elas bolhas. Grandes bolhas inundadas do mais puro abjeto oxigênio, que adentravam os pulmões da moça e que de nada serviam para expressar sua paixão por ela, Clara. Enormes e indignas moléculas de oxigênio chegavam a ela causando grande desconforto aquele, que, se enchesse seus pulmões com seu líquido acabaria por lhe afogar, fazendo-o cair em desilusão e nostalgia, e fazendo-a cair abismada em asfixia. Usurpadoras e pretensiosas bolhas de oxigênio causavam-lhe o mais repulsivo ciúme.

Ela aproveitou o deserto mar e ficou horas e horas a boiar. Deitada por sobre ele, sentia-o de leve, só com a parte posterior de seu corpo. Abria os braços e os olhos azuis mostrando a ele inofensivamente sua beleza eterna, angelical e vívida. Suas feições, com traços de anjo moderno refletiam-se nele como conseqüência dos fortes raios de sol. Desse modo ele sentia-a duas vezes: tinha-a em pele e em imagem refletida. Delírio abusivo, personificando-o em humano embebido de afeição.

Gracejou-se querendo mostrar de tudo à moça. Queria agradá-la a qualquer custo. Trouxe-lhe peixes dos mais diversos e coloridos. Surgiram Garoupas, Dourados, Salmões e Anchovas. Chamou golfinhos e arraias para um espetáculo que traria brilho aos olhos daquela que o contemplava. Levou botos e estrelas-do-mar para apreciarem sua beleza ímpar. Mostrou-lhe ondas gigantescas. As gaivotas, no céu, sobrevoavam em vôo baixo alegrando-a. Ele assoviou em seu ouvido cantando canções suaves. Encheu-a de encanto e de prazer.

O sol escondeu-se abruptamente por detrás das nuvens, avisando-a de que não estaria mais rodeada por um verde transparente, e sim de um azul escuro e intenso. A menina esperou o espetáculo iniciar-se.

O crepúsculo trouxe consigo uma imensidão de cores e imagens surreais aos olhos de Clara. O azul intenso, o vermelho alaranjado. O amarelo foi do intenso radiante ao opaco amarelo-canário.

Ela deitou-se novamente, flutuando, mirando o céu com um sorriso sublime. As nuvens contrastavam com o céu várias tonalidades de azul, rosa e de alaranjado que irradiavam puro regozijo aos olhos de Clara. O sol desaparecia lentamente. Agora, rasas ondas expressavam ciúmes molhados. Queria Clara de volta, junto com sua atenção. Não bastava mais ela estar ali com ele, contemplando-o. Ele queria ser sentido, amado, correspondido pela menina dos olhos cor de céu.

Foi então que a outra chegou.

Calma e Cheia, ela pôs-se imponentemente defronte às nuvens. Trouxe consigo as trevas. Amenizou tamanha escuridão com um branco espectralmente lúcido, que ela mesma exalava. A noite havia chegado de mansinho, serena e dominadora. Cintilantes pontos reluziram no céu com a saída do sol. Clara reconheceu as Três Marias, formando um rastro de um trio brilhante que pintava aquele espaço astral. Começou então a fazer o que todos já fizeram um dia: contou-as. Concluindo que contara algumas repetidas vezes, desistiu.

O satélite terrestre chegou causando confusão, pois refletiu tamanho sorriso nos lábios de Clara que o outro se indignou. Enfureceu-se como nunca antes. Mas nada fez, pois a única maneira de expressar-se seria provocando gigantescas e profundas ondas, que acabariam por afogar sua amada.

Estava enraivecido e tomado por um ciúme aterrador, mas nada poderia fazer a não ser criar novas e repetidas ondas inúteis. Era a única maneira que ele possuía para manifestar-se.

Ficou, então, calmo. A serenidade dominou o lugar inteiro, e a moça aproveitou e decidiu também pela serenidade. Fechou os olhos e acalmou-se. Acolheu-se nos braços imensos que ele abria desesperadamente.

Para ele, ela havia ficado ali por um longo tempo, só assim: deitada. Nos pensamentos dele a moça tinha ficado ali por dias, horas e horas a admirar-lhe. Ele havia encontrado nela uma humana com instintos oceânicos. Sentia isso.

Mas Clara decidiu que era hora de partir. Voltaria ao mundo real, desistiria da água salgada que lhe trazia conforto, poria suas roupas e sairia satisfeita e infinitamente agradecida por aqueles momentos sublimes. Jurou a si mesma que voltaria. Talvez amanhã, talvez outro dia. Mas voltaria. Por hora, Clara retornaria ao seu mundo. Olhou a imensidão negra que agora só era iluminada pelos raios estritamente claros e não pensou em mais nada.

A moça pôs-se de pé ligeiramente, escorreu a água excessiva dos cabelos e nadou em direção à areia.

Ele percebeu que Clara havia se levantado, que estava prestes a abandoná-lo. Talvez nunca mais a sentisse, tocasse, ou cantasse para ela. Seria o fim de uma paixão de um dia, mas que trouxe a ele o mais profundo sentimento, o único sentimento humano que ele jamais havia experimentado. Ela escaparia.

Não poderia pôr em risco a vida da mais cândida criatura que já havia conhecido, mas ele não poderia deixar que um amor tão intenso e enérgico se transformasse em simples devaneio. Precisava agir. Necessitava fazer algo para impedir que o resto de seus dias se transformasse em pura esperança de um dia voltar a vê-la.

Pôs, então, em ação o ato impensável.

Em um ato ímpeto e imortalizado, puxou-lhe os cabelos, levou-a ao fundo do mar e transformou-a eternamente em escamas e em sereia. Não houve sangue nem estigmas. Clara nadou ao lado de Iara pelo resto de sua vida, cantando pela eternidade as mais sedutoras canções àqueles que por ali passaram.[/align]
 
[align=center]TSARITSINA[/align]

[align=justify]Os trejeitos latinos me entregam: cabelo comprido com a franja presa, dois botões, de uma camisa branca, desabotoados exibindo um escapulário bem pequeno (Nossa Senhora à frente a guiar), uma jaqueta para segurar o vento frio, a barba seguindo o desenho do rosto, aparada há uma semana mais ou menos. Ando por esse cemitério, lembrando de quando ela me acompanhava nesse passeio peculiar, lá em nossa cidade, onde conversávamos sobre a vida num lugar onde ela não está mais, ou está em excesso. Olhando túmulo por túmulo, lembro: eu era feliz, mas a recordação não traz saudades; mata a lembrança como se nunca deveria ter existido ou era apenas minha imaginação pregando peças. Todavia, é mais fácil caminhar sozinho: seguir meus próprios passos em meu próprio ritmo, pensar em coisas aleatórias e olhar de epitáfio em epitáfio algum que fosse minimamente interessante. Nenhum conhecido, parente ou amigo. Enterrados ou vivos. Moscou suga as cores de suas ruas e as deposita nesse cemitério. Os raios de Sol que penetram insistentes iluminam as lápides por mais um dia sem visitas. Dias passei por aqui tentando entender cada mensagem, cada momento, cada fim e a que se deu esse fim. A vida em si, e os sentimentos, são simples e as pessoas os complicam. Complexos e imperfeitos somos completos. Com síndromes e cóleras. Indeterminados e interditados por nós mesmos.

Outra noite mesmo, depois de tanto lutar contra a insônia, meu sonho se tornou pesadelo e a vi dizendo "Fui abortada três vezes: na primeira minha mãe me matou, na segunda foi natural e na terceira quando nasci.". Em seguida despertei, não ouvia direito era tudo abafado, o coração afobado, como uma grande sala à prova de som, evitando incomodar os vizinhos. Peguei o relógio e olhei as horas, madrugada aqui, dia do outro lado, queria ligar de tanta saudade e por um sonho tão aterrorizador, um fundo branco e ela sentada em uma cadeira alta, dessas de bar, falando tudo aquilo. Parei e pensei, não queria ligar; "Saudade? Acho que não.", evasivo.

Para evitar mais pensamentos: vesti as calças, calcei botas, coloquei duas blusas e fui até o bar do hotel Ukraine, na Rua Kutuzovskii Prospekt, à margem do rio Moscou. A cidade nunca é branca, não existem noites brancas em Moscou, existe uma cidade colorida pincelada pela brancura da neve. A única certeza que tinha era que Ivan estaria naquele bar, na primeira ou segunda dose de vodka desde às nove da noite.

Descrevi fielmente o sonho: um quadro único, uma fala contínua e sem pausas. Uma personagem de pele branca, olhos castanhos - cansados e amendoados -, um sorriso pálido de canto de boca que mostrava pequenos relevos nas extremidades e a nudez mais bela e suja que criaria aversão ao mais assíduo vouyer. Ele apontou para mim, "Talvez você seja a mãe", "Ou o segundo aborto", completei. Todavia, a discussão não sairia do lugar, ainda mais porque provavelmente Ivan apontaria a minha saudade como parte dos meus sonhos.

Um pedaço dela ainda está em mim, ou eu ainda deixei um pedaço meu com ela. O aborto era meu coração, tomado por uma tesoura enquanto eu corria pelos corredores atrás dela. E a quem eu quero enganar? Entreguei a ela quando nos conhecemos, confessei: "É seu, pode ficar!", ela me beijou, eu beijei suas mãos e foi isso; um pacto silencioso, uma troca de juras, uma troca de farpas. O que realmente nos faz sentir bem é sempre aquilo que fazemos sem pensar em fazer, em sentir sem pensar em sentir e para nunca mais esquecermos; fiz com ela tudo sem pensar. Eu sou o aborto, eu sou a mãe, eu sou o coração que não bate mais. Ivan é tão bom que sabe disso e não me diz, ele olha por cima dos óculos, não comenta; hesita em levar a vodka para a boca, solta uma onomatopéia, e outra, e bebe em um gole.

Agora, porém, achei um significado maior em cinco lápides, em um túmulo gigante, feito todo de pedra trabalhada, o tipo não sei ao certo qual é. A primeira lápide diz: "Para minha querida avó, descanse em paz. Alex". A segunda diz: "Mamãe, para sempre guardo você no coração. Alex". A terceira diz: "Para a mulher que mais amei, minha metade e mãe do meu filho. Alex". A quarta diz: "Para o filho que qualquer pai poderia querer, te amo. Papai Alex". A quinta era uma cruz de madeira feita à mão para quem quisesse ver: "Alex". Não havia ninguém para cuidar do Alex. Será que ele caiu de joelhos ao pé da cova tentando recuperar com as lágrimas os últimos momentos com esses entes queridos? Ou simplesmente se entregou numa velhice amena? Gostaria de acreditar que num lugar como Moscou, onde esperamos a morte chegar, sentados em nossos apartamentos datados, em nossos móveis tombados, em nossas visitas anti-sociais; Alex permaneceu vivendo e rindo ao tomar café repassando uma a uma das suas lembranças.

Todavia, não sou o único a simpatizar e sentir sua falta. Logo a minha esquerda, uns três ou quatro passos para trás, está uma garota de cabelos vermelhos, vestimentas pretas, talvez de couro ou imitação, uma calça também preta, uma blusa branca por baixo da jaqueta preta. Portando uma câmera fotográfica, provavelmente com diversas lentes guardadas junto à bolsa de couro, ou imitação. E outra bolsa onde possivelmente guardava as luvas que tirara para bater as fotos, o batom vermelho que está impregnado nos lábios, a caixinha dos óculos de grau com um lenço dentro, pronto para limpar a menor digital e uma documentação com seu nome e data de nascimento.

Para evitar a revista pergunto seu nome, "Daria", ela responde e emenda, "Argentino ou brasileiro?". Poucas pessoas sabem diferenciar, geralmente chutam que fazemos parte do mesmo país e fica por isso mesmo, "Argentino", respondo. Daria sorri, "Os trejeitos latinos te entregam", ela levanta a câmera quebrando o pulso, como se oferecesse uma foto por conta da casa, um registro do momento em que venho visitar Alex. O sol enaltece as falhas da minha barba, me faz franzir a testa e comprimir os olhos. "Não vale fazer careta", eu solto uma risada e ouço diversos cliques.

"Quando posso ver essas fotos?", pergunto querendo pegá-las e rasgá-las ou guardar como reminiscência da fotografa. Ela revira a bolsa, "Não posso dar uma foto sua". Fiquei espantado em não ser dono da minha própria imagem. "Não posso mesmo. Nunca o momento que fotografo pertence a quem está nele, se eu te der será como matar essa imagem. Nela, você, argentino, será e estará nas nuances oníricas da sua alma". Em qualquer outro momento aquilo poderia parecer uma poesia fajuta numa desculpa fajuta, mas soou como correto, como singular, como se Moscou, como se o sol derretendo a neve, dissessem que aquele momento não me pertencia. Era de Daria, de seus dedos rápidos e de seu olhar. Alex era testemunha.

Daria tirou um envelope pardo de uma de suas bolsas, entregou na minha mão e me abraçou, "Vou sentir sua falta, você é uma boa lembrança". Ela sorriu, porque talvez amanhã não o pudesse fazer e de longe não pude mais distinguir se saiu do cemitério ou se a ventania de neve a fez desmanchar no ar.

Sentei ao lado do túmulo de Alex, esperando que ele tocasse meu ombro com seu jeito de resolver os impasses, de seguir em frente, e me dar força para sair do cemitério e superar minhas saudades, matando-as ou enterrando-as. Quem é Daria senão minha melhor lembrança? Esse momento existiu? Ou foi uma foto tirada e guardada dentro de uma gaveta de momentos esquecidos no inesquecível? Sempre. Meu momento de renascimento. Ouço os batimentos leves. Na foto consta o parto.[/align]
 
[align=center]A VELHA DO CARVALHO[/align]

[align=justify]Amanda estava lavando louça. Ela morava numa pequena fazenda e tinha doze anos. A casa de madeira em que morava era bastante grande. A madeira fora retirada dali mesmo, do Bosque dos Carvalhos, o que dava um cheiro todo especial à casa.

O pai quase nunca saía da pequena, mas próspera, fazenda. Entretanto neste dia em especial teve mesmo de sair. A época da colheita se aproximava e ele tinha coisas a resolver na cidade.

Amanda não lembrava da mãe. O pai não gostava de falar dela, ficava bravo. Bateu muito nela na ultima vez que perguntou pela mãe: “- Não quero você falando dela nunca mais, ouviu?”

A imagem das lágrimas escorrendo pelo rosto quente e vermelho, como um pimentão, do pai enquanto ele girava sua cinta no ar ainda era viva em sua lembrança. Também era viva a lembrança da dor que lhe ardeu em finas marcas vermelhas na pele das costas durante vários dias.

O pouco que Amanda soube da mãe ouviu por detrás das portas ou atrás dos muros. Como naquele dia antes de ela completar dez anos, numa ocasião em que Tia Clara, irmã mais velha de seu pai, os visitava:

- ...ela já está para fazer anos de novo, Ben, vai fazer doze. Como florescem rápido nossos filhos, não é? Se for verdade a história que contam por ai Benjamim, já deve ser hora de resguardar Amanda. Mande-a para viver comigo.

- Não acredito que tenha verdade nestas histórias de maldição, Amanda está fora disso.

- Você quer esperar até que aconteça também a Amanda o que houve com a mãe dela? Ouvi falar que ela encontrou a Voz antes da idade de Clara. Dizem que isso aconteceu com toda a família dela. Isso é verdade?

- Você sabe que é invenção da família de Eleanor, aquele bando de simplórios supersticiosos. Não me aborreça e não fale disso novamente. Se alguém do Bispo a ouve falar Eleanor e no que ela se tornou, será punida. Você sabe qual é o castigo que os contadores de histórias receberam, não sabe?

Eleanor, assim conheceu o nome da sua mãe. Foi a primeira vez que ouvira e também a ultima. Nunca soube nada dela nem tampouco encontrou nenhum parente do lado materno para perguntar algo.

Amanda freqüentava a escola de ofícios de manhã, onde aprendia a tecer, esta seria sua profissão para o resto da vida. Ela não sentia entusiasmo nisso.

Lavou a louça e começou a fazer comida para que houvesse algo quente para o pai quando chegasse.

Ela pôs a cabeça na janela quando ouviu uma voz chamando de fora e viu que uma senhora, bem idosa e maltrapilha que chamava. Lembrou-se de que seu pai a proibira de abrir a porta para estranhos e de falar com algum quando estivesse sozinha. Ela pensou que a velhinha era inofensiva e parecia ter fome e sede. Não haveria mal algum em ajudá-la. Separou um pouco de comida e um pouco do leite que sobrara do café da manhã.

Quando estendeu o embrulho à velhinha sentiu um calafrio desagradável ao ver na sua boca os restos enegrecidos dos dentes e outros tantos espaços vazio.

Mas ainda assim o sorriso da mulher era caloroso e sincero.

- Obrigado criança - disse a anciã- que o grande Deus de sua casa abençoe a bondade que me fazes e que nunca venha a precisar de favor igual.

Amanda apenas sorriu e voltou para dentro da casa alegre, mas rapidamente.

Não contaria ao pai o que fizera, não por ser algo ruim, sabia que não era, mas por que ele com certeza brigaria por ela ter falado com a senhora estranha na ausência dele.

Amanda ia para a escola caminhando pelo Bosque dos Carvalhos. Ela saía logo de manhã e gostava de observar como, conforme o sol ia subindo no céu, as sombras das árvores, diminuíam no chão. Gostava de ver como a luz do sol desenhava cortinas bordadas das mais finas e leves quando vazava pelas folhas das árvores e irradiava na tênue neblina. Um dia Amanda encontrou a senhora a quem dera comida sentada ao pé de um carvalho enorme no bosque. Nos primeiros dias não falou com a mulher, a observava de longe.

A velha usava um vestido que parecia mais um enorme trapo de várias cores, seu cabelo era tão branco que parecia jamais ter tido outra cor. Sua pele era tão enrugada que parecia terra seca trincada pelo sol.

Ela não tinha muitas coisas. Tudo que tinha cabia numa pequena carroça que seu burrinho que pastava ao longe puxava talvez sem grande esforço. Havia também um gato preto de olhos dourados e um pequeno baú.

Às vezes a velha cozinhava num pequeno caldeirão enegrecido pela fuligem numa fogueira que ficava num circulo de pedras, noutras ocasiões ficava parada, aninhada numa das grossas raízes do carvalho olhando fixamente o nada.

Amanda habituara-se a naquelas semanas sempre observar por algum tempo a anciã moradora do Bosque dos Carvalhos. Num dia, porém, surpreendera-se quando, ao espreitar, não encontrou a onde costumava estar.

Com todas as coisas dela ali, a velha apenas deveria ter ido dar uma volta. E apesar de saber que ela não tardaria Amanda resolveu olhar de perto o refugio montado aos pés do carvalho.

O pequeno caldeirão cozinhava um ensopado de legumes e carne de coelho. Da fresta da tampa subia uma fumaça suave com cheiro de ervas, alecrim e manjericão. Amanda cheirou o vapor e imaginou como era possível cozinhar algo tão bom em tão precárias condições. Ela pegou um pouco de manjericão que estava numa mesinha improvisada perto do fogo e colocou um pouco no caldeirão.

A maneira como a colcha de retalhos que a mulher usava para dormir estava estendida no chão era curiosa. Sobre uma grossa camada de folhas secas e entre duas fortes e grossas raízes e com a enorme árvore na cabeceira a cama da velha parecia um leito digno dos mais nobres.

Nas duas ramificações da raiz que passava ao largo da cama improvisada, a velha equilibrou pequenos objetos, que Amanda observou cuidadosamente, tomando o máximo cuidado para deixá-los na posição em que os encontrou.

Havia um pequeno e ornamentado baú e viu que dentro havia vários embrulhos. Achou que eram caixinhas, mas não eram. Pegou um deles, abriu e viu que tinha uma capa de couro e folhas de papel. Havia figuras em algumas das folhas e nas outras coisas que pareciam números, mas não eram.

- Parece que gostaste do meu livro - disse a velha que apareceu como por encanto ao lado de Amanda.

- Desculpe, por favor... Eu não ia pegar nada das suas coisas, juro! - disse gaguejando e assustada.

- Oh, não tem nada, menina.

- Me perdoe, eu sei que não devia estar aqui nem xeretando suas coisas.

- E ontem? E antes de ontem? E durante a semana passada inteira? Também não deverias estar aqui nestes dias? - disse a senhora rindo - Venho te observando a observar-me e tenho aguardado com ansiedade a ocasião em que viria falar comigo.

- É que meu pai não gosta que fale com estranhos.

- Há muito tempo me observas e me acompanhas de longe. Lembro-me igualmente da ocasião em que me destes, com gesto de grande generosidade em tempos tão difíceis, aquele prato de comida e o leite. Como podes considerar-se ainda uma estranha a mim ou eu uma estranha a você? Tomará do guisado de coelho que ajudou a temperar?

- Não obrigado. Tenho pressa em voltar para casa, meu pai me espera.

- Como disse, vejo que gostaste do meu livro - disse a velha estendendo-lhe um prato fumegante - Sabes ler?

- O que é isso?

- Vejo que não sabes e isso é um livro, criança. Um bem antigo, mas que nunca canso de ler por que sempre tem histórias novas que eu mesma faço.

- E pra que serve?

A velha pensou alguns instantes e riu, mostrando seus dentes ausentes e outros tantos podres:

- Me pegaste agora. É algo tão simples, mas tão difícil de explicar. Deve ser porque me é tão natural.

Amanda olhou a velha de uma maneira que não precisou falar a pergunta.

Sentes o cheiro do ar que respira? Decerto que não. Mas já sentiste, quando o ar lhe era novidade sentiras seu sabor. Assim acontece-me agora, como falar de maneira simples de algo que me é tão comum como respirar? Disse a velha oferecendo um prato.

A aparência da mulher alertara a prudência de Amanda a não comer daquele guisado, mas o cheiro era bom e doce e ela viu que não precisava recusar.

- Mas o que são essas coisas esquisitas? Que tipo de números são estes? Nunca os vi.

- Isto são letras. É diferente dos números que lhe ensinam na escola. Tenho pena de vocês crianças que não aprendem mais a ler palavras.

- Como podem ser estas coisas palavras?

- Sim palavras, juntas formam frases e quando houver mais ainda, pensamentos.

Amanda não conseguia entender, aquilo era impossível. Na escola de ofícios lhe ensinavam os números e sua profissão de tecelã. Disseram que isso era tudo que havia de importante. Como poderia haver sons e palavras ali naquelas folhas, além, é claro, dos sons dos números?

Amanda virou o livro em várias posições, mas não conseguiu uma forma de decifrá-lo. A velha achou graça e disse.

- Querida, ler é uns dos maiores dons que podes conseguir em sua existência. Podes ter várias vidas no espaço de tempo de sua vida, eu, por exemplo, sou muito, mas muito mais velha do que o muito que já aparento, pois já vi, vivi e acompanhei muitas vidas diferentes da minha própria. E foram muitas.

A mulher colocou mais algumas ervas no caldeirão e vendo o interesse da menina, continuou:

- Poderás também, criança, viajar para lugares distantes e fantásticos mesmo estando aqui, no Bosque dos Carvalhos. Podes ainda amar louca e apaixonadamente e provar do beijo e provar dos abraços mesmo ainda pura e casta como és; virgem.

Ficaram em silêncio a menina e a velha durante muito tempo. A velha cozinhava. Depois de mais tempo ainda Amanda perguntou.

- Senhora, como aprendo isso a que chama de “ler”?

- Terás coragem?

- Sim.

- Então proponho algo, se me quiseres ouvir- disse olhando se soslaio, obliquamente como uma velha gata dissimulada, para a menina que mantinha o livro aberto na mão.

Amanda ainda estava tentando compreender o que a mulher dissera. Como seria possível conter tudo aquilo naquele livro? Seria ela era uma bruxa ou simplesmente uma louca?

-Te ensino a ler - continuou a velha- que implica te ensinar a escrever necessariamente, se tu trouxeres para mim comida, pois já não tenho forças ou saúde, como podes ver, para conseguir sozinha tudo do que preciso.

A velha tirou a tampa do pequeno caldeirão de onde subiu uma coluna rodopiante de vapor, pegou uma colher e provou, com muito barulho, como uma criança tomando sopa.

- Ler, é isso te ofereço - falava a velha rápido enquanto andava de um lado para o outro _ Darei não só a visão desta terra que vegeta com força, mas também a de outras em que o frio cobre de branco toda a terra e a mata e o mar com a neve branca e macia como a clara do ovo que você bate até espumar.

Enquanto falava olhava com o canto dos olhos para ver a reação da criança. A fitava nos olhos bem fundo, e soube que podia continuar a tentá-la.

Pegou mais algumas folhas, picou-as com os dedos calejados e jogou na panela a erva. Provou do aroma que este emprestara a comida. Seus olhos se fixaram num ponto vago e seguiram a coluna de vapor que subia pela copa do carvalho para depois escorrer para cima por entre as folhas e galhos. Depois, pelas brechas da ramagem, a velha, com seus olhos opacos, contemplou o céu angustiosamente azul e continuou a falar.

- Esse mundo e muitos outros mais. As estrelas e o sol, verás não só o momento em que nascem, mas presenciará suas mortes.

- Desculpe, Senhora, não entendo o que oferece. Algo assim não existe, se existisse decerto já saberia ou teria ouvido falar, pois já tenho idade para saber das coisas. Ou ainda qualquer outra pessoa das que conheço saberia.

- Dê esse livro, vou mostrar do que falo e entenderás o que digo- e a velha começou a fazer aquilo que ela chamava de “ler” para Amanda.

Amanda, que ainda se sentia insegura ali, na mata com aquela mulher velha e feia, parecendo uma bruxa; que olhava ao redor explorando os objetos exóticos e estranhos da velha; que achava que a mulher louca agora falava sozinha; foi aos poucos perdendo a noção das coisas ao redor.

Não havia mais nada, o vento nos carvalhos do Bosque dos Carvalhos cessou, também os ruídos dos animais e o crepitar do fogo, tudo cessou quando a velha falou numa voz que parecia não ser dela. De repente nem a velha estava ali, nem Amanda. Apenas a voz permanecia.

A voz que desenhava imagens e lugares e sons e bichos e pessoas na mente de Amanda. A voz que falava sobre heróis e dragões, sobre amor e espadas, sobre lágrimas e sede, sobre vida e morte.

Amanda passou a visitar o refugio todos os dias. Ela levava muita coisa que seu pai produzia na pequena fazenda, na maioria das vezes legumes e verduras e ovos. Os levava de manhã, e na volta da escola sentava numa das raízes da árvore enquanto a velha os preparava para depois pacientemente, lhe ensinar a ler e escrever. Uma letra por vez, um som por vez.

Um dia Amanda percebeu que chamava a velha apenas assim, de velha.

- Qual é o seu nome, senhora?

- Meu nome? Faz tempo que não o digo a ninguém. Se houvesse perguntado como me chamam ou como me chamo, diria: “Me chamam de velha simplesmente, pois já sou velha há muito tempo, mas há aqueles que me chamam de Voz”. Mas como perguntou pelo meu nome digo que descobri infelizmente que o esqueci há muito tempo. Por tanto tempo que passei a escondê-lo, e escondi tão bem, que também o acabei perdendo.

- A chamam de Voz?

- Sim, tem algo a ver com ser uma contadora de histórias.

- Você conheceu a minha mãe? Eleanor?

- Eleanor? Ah sim. Conheci realmente, e neste mesmo Bosque dos Carvalhos a ensinei a ler, como fiz contigo. Mas depois, nunca mais a vi.

- Então não sabe o que houve com ela?

- Ela como você, aprendeu a ler, mas se tornou como eu. Ser uma contadora de histórias é uma benção que se recebe, mas pode ser uma maldição quando não há ninguém para ouvir o que temos para contar. Mas não foi isso que ocorreu_ continuou a mulher. _ Um dia, depois que já lhe havia ensinado tudo que sabia, ela apareceu aqui, neste mesmo carvalho e me pediu para ir embora imediatamente, fugir, pois viriam atrás de mim. É só o que sei.

Os dias foram se seguindo, Amanda era inteligente e aprendia rápido. O pai não notava sua ausência naquelas tardes, a fazenda estava em época de colheita do milho e da tosa das ovelhas preparando-as para o verão.

De letra em letra em poucas semanas Amanda construiu palavras e delas frases curtas e gaguejadas. Ela usava para escrever os blocos de contas matemáticas que usava nas aulas de oficio, a coisa mais parecida com um caderno que pôde conseguir.

Depois de algum tempo a velha emprestou-lhe livros para que levasse para casa, mas com a condição de não mostra-los a ninguém.

Amanda levou um livro para casa, depois outro e mais outros, sempre mantendo o maior cuidado para que o pai não os visse. Lia durante as madrugadas, no celeiro à luz de uma lamparina, no sótão só quando a vontade era muita e o pai não estava perto.

Certo dia a velha estava quieta, sentada na raiz do carvalho, rabiscando no chão com uma varinha quando disse:

- Não há mais nada a te ensinar. Já lês bastante bem, quase tão bem quanto eu. Em breve não precisarás mais de mim.

- A senhora é bondosa comigo, e malvada consigo dizendo essas coisas.

- Mas é verdade. De qualquer forma, o clima aqui já não me é tão propicio. As pessoas do vilarejo estão desconfiadas de minha presença e de minhas motivações e deixaram de ser amistosas.

- Você quer dizer que vai embora?

- Sim, amanhã. Novamente para algum lugar em que não me conheçam. Mas tenho um presente para você antes de ir. Aqui tem um livro especial.

- Obrigado- disse Amanda - mas tem algo errado, as paginas dele estão em branco.

- É porque elas têm de ser assim, brancas. Você já leu todos os livros que tenho comigo. Não há mais nada aqui para você ler. Terás o poder, e o prazer, de escrever seus próprios livros.

- Volte um dia para que eu leia em voz alta para você.

- Não há como prometer. Mas, criança tenha cuidado - continuou a velha. - Você sabe o que aconteceu aos livros e escritores e todos os contadores de histórias não sabe?

- Sim, agora sei. Ouvi meu pai conversando outro dia. Os livros foram queimados e seus escritores executados por ordem da Igreja, assim como os contadores de histórias. Diziam que escrever é um vicio que não cessa, e se é escritor nunca se poderá ser outra coisa. Mas só não sei o porquê aconteceu e nem papai pareceu saber.

- Já faz muito tempo e todos esqueceram o que provocou essa desgraça. Ninguém mais sabe, mas ainda sobrou a perseguição e o silêncio. Só tome cuidado. Criança... Vou sentir sua falta.

- Eu também sentirei a sua, minha velha senhora - disse não podendo evitar que descessem lagrimas e virou para o bosque para que a velha não a olhasse no rosto.

Nesse dia Amanda chegou mais tarde do que de costume em casa. Seu pai estava esperando bastante preocupado. Ela se desculpou, subiu para o quarto onde tirou o livro de dentro da blusa e o guardou embaixo do colchão. Em seguida correu ao galinheiro para pegar ovos para a ceia.

Quando voltou, ainda na porta da cozinha, com a cesta de ovos nos braços levou tamanho susto que a deixou cair e quebraram todos os ovos no chão. O pai estava parado no meio da cozinha, o livro aberto em cima da mesa enquanto ele o olhava à distância, aparentemente sem coragem de chegar perto.

- Amanda. O que é isso?

- Pai eu..

- Ingrata! - gritou o pai sem esperar resposta desferindo um tapa no rosto da filha - Você puxou a família da sua mãe, aqueles malditos. Como pude ser tão idiota?

- Pai..

- Deixei que acontecesse com você exatamente o que aconteceu com sua mãe- o homem chorava compulsivamente, andava em círculos. A menina mantinha a cabeça baixa.

- Você pode imaginar como foi difícil para mim, Amanda? Pode? Tive que entregar sua mãe à Inquisição dos livros para garantir que nos deixassem em paz, a mim e a você. E agora isso!!

- O que pai? O que você fez?- Amanda esqueceu do medo e segurou o pai pela manga da camisa- O que você fez à minha mãe?- disse entre os dentes pausadamente.

- Não me olha assim - empurrando a filha para longe. - A haviam descoberto. Se eu não tivesse feito isso nossa casa teria sido incendiada com a gente dentro. Oh Deus! Agora vou ter que entregar você também!

- Pai você não precisa fazer isso, não precisa- disse a menina, chorando.

- Onde foi que você encontrou a Voz? Como ela é?- chacoalhou a menina pelos braços, mas vendo que ela não iria dizer jogou-a ao chão_ Suba para seu quarto e fique lá até que te mande descer. A menina pegou o livro da mesa e correu.

Amanda da janela do quarto pode ver a chegada do bispo. Viu também os grupos de caça saindo e à noite pode ver o brilho das tochas se movimentando no Bosque dos Carvalhos. Seu coração se encheu de tristeza e, logo depois, de coragem: Iria avisar a velha!

No caminho precisou se esconder dos caçadores e dos cães de caça. Chegou perto da clareira do refugio no momento em que os caçadores prenderam a velha.

A frágil velha estava com uma corda amarrada às mãos. Ela, cansada, caia no chão e era arrastada pelo possante cavalo, então recebia vários golpes de chutes e porretes. Os cães a mordiam e não paravam de mordê-la em seus calcanhares nem quando, com dificuldade, levantava. A arrastaram para o Bispo e Amanda viu, de longe ainda, quando os caçadores fizeram à velha se ajoelhar aos pés do homem da Igreja.

O Bispo disse alguma coisa a velha, que não lhe respondeu, ele então cuspiu nela e ordenou aos caçadores que a levassem.

Os caçadores gritavam e urravam como se estivessem fazendo algo glorioso. Empurraram então algo asqueroso na boca da velha com o porrete e passaram uma corda ao redor do pescoço dela.

Os caçadores jogaram a corda por cima de um galho e puxavam. O Bispo, tão perto da velha que os pés dela o chutavam involuntariamente na agonia, gritava:

- Poderoso Deus dos homens, reconheça a alma impura desta contadora de histórias por estes ratos mortos putrefatos que ela leva na boca. Não a deixe pisar em teus reinos e expulse-a das portas do paraíso direto ao fogo do inferno quando sentir o cheiro.

Depois do clamor o Bispo pediu aos caçadores que a cobrissem a velha com óleo, mesmo enquanto ainda se movia, e a acendessem com as tochas.

- Guarde um pouco do óleo - disse o Bispo. Cansei daquela família amaldiçoada da fazenda. Hoje daremos um fim nesta história de perdição de uma vez por todas.

Amanda saiu dali, engatinhando de costas, deixando um rastro de lágrimas.

Decidiu ir embora e não voltar nunca mais. A seu pai não restava esperanças. Não havia tempo de avisá-lo, mas mesmo que tentasse provavelmente ele a entregaria para tentar aplacar o Bispo.

Amanda voltou ao refugio, os pertences da velha ainda estavam todos lá. O gato preto de olhos dourados saiu miando de uma moita quando a viu. Ela pegou o baú e as pequenas coisas e arrumou-os na pequena carroça. Passou o arreio no burrico e saiu do Bosque dos Carvalhos o mais rápido que pôde para qualquer lugar.

Ao longe se via um clarão enorme rompendo a madrugada vindo do lugar onde seria a casa onde morava.

- Vão me procurar durante algum tempo quando não me acharem no quarto, se é que procuraram antes de atear fogo na casa.

Amanda estava longe quando amanheceu. Fazia frio e o gato preto de olhos dourados dormia enrolado ao lado dela enquanto o burrico já puxava sem pressa.

Estava à procura de um lugar onde ninguém a conhecesse e onde os agora seus livros seriam bem-vindos.

Preciso ir para o mais longe que puder e viver escondendo meu nome, mas não vou esquecê-lo.

E tirou o livro em branco de dentro da blusa.[/align]
 
[align=center] (A)MAR[/align]

[align=justify]
Faz muitos anos desde quando eu tinha apenas 6 anos. Era um garoto tímido e bastante sonhador, daqueles que sempre que via um desenho animado fazia questão de adentrar no mundo proposto. No dia em que eu completei 6 anos, minha família me levou para ver o mar, na praia de Ipanema. Eu iria ser batizado pelas águas do oceano Atlântico e com as ondas sob meus pés, me sentiria forte e invencível. Meu grande sonho era me tornar pescador, mesmo sem nunca ter visto o mar ao vivo, pois sempre que via filmes sobre pescadores e desbravadores de mar eu ficava feliz e sorridente.

Eram seis da manhã quando acordei sobressaltado e fui despertar meus pais, ansioso pelo grande dia. Primeiro, fui recebido com muitos beijos e abraços e desejos de felicidade eterna. Logo depois estávamos em direção ao mar. “O mar de verdade deve ser muito lindo, né mamãe?” perguntava eu enquanto estávamos no carro. “Sim, meu filho é muito belo”, respondia minha mãe enquanto virava para parte de trás do carro e fazia um cafuné, sorrindo com aquele belo rosto.

Ao chegar no mar, minha emoção foi muito grande mas também senti um medo insustentável. O mar era gigante e sublime, não era apenas algo belo mas imortal e parecia me dizer que deveria ser muito corajoso ao entrar, e assim me tornaria um herói ao sair. Tive de segurar a mão de meu pai e de minha mãe para chegar ao mar. Apenas para molhar meus pés demorei uns tantos minutos. Quando já conseguia sentir a água por mim mesmo, soltei minhas mãos das mãos dos meus pais e nesse momento senti o que mais tarde descobriria ser um caixote, e a água me cobriu por inteiro como uma aventura por dentro dos lençóis da cama dos meus pais. Quando consegui me levantar, eu saí novo, senti-me forte mas assim que enxuguei meus olhos vi algo que fez o mar perder toda a magia e senti-me novamente fraco. Havia uma garota em minha frente, linda, com lindos olhos azuis e cabelos negros ondulados. Fiquei sem palavras.

“Qual é o seu nome?” Disse ela ao se aproximar de mim.

“Er...Renan...” Ainda surpreendido por um sentimento ímpar em minha vida.

“Eu me chamo Thaís, vamos brincar?”

“Tudo bem”

Começamos a brincar de castelos de areia próximo das águas, que utilizávamos para lavar os brinquedos e para às vezes molhar um ao outro. Não sabia que o mar escondia algo maior para mim, uma sereia, uma garota de Ipanema, ou seja lá o que for, não importava. Eu estava apaixonado.

Seus cabelos eram o mar em sua melhor forma. Balançavam com o vento e aqueles cachos me hipnotizavam. Seus olhos me prendiam e me faziam ter coisas em minha barriga que até hoje não sei explicar. Ela percebeu que eu estava estático a olhar para ela.

“Ei....porque está me olhando toda hora?”

“É que.... você é muito bonita” E me virei com vergonha de dizer isso.

“Obrigada, você é muito bonito também” Sorriu e segurou a minha mão.

Nossos pais ficavam a olhar a gente e provavelmente falando sobre como éramos lindos brincando juntos na praia. Sorriram para gente quando olhávamos para eles e continuávamos brincando.

“Onde você mora Thaís?”

“Em Minas Gerais. Estamos de férias aqui. E você?”

“Moro aqui no Rio mesmo”

“Legal”

Realmente o mar tinha me batizado e me abençoado, aquele momento era mágico, único e eterno pois havia o mar e sua princesa de toda aquela imensidão. Eu estava feliz.

Passado um tempo após as brincadeiras na areia e as do mar, fomos chamados pelos nossos pais. Demos as mãos e seguimos juntos. Ao chegar, meu pai diz:

“Agora teremos de ir embora e a família da Thaís também vai”.

A mãe de Thaís me entrega uma foto 3x4 da sua filha e um papel com o telefone falando que quando fôssemos para Minas Gerais que ligássemos para eles para podermos sair juntos. Então nos despedimos, ela beijou minha bochecha e disse para não esquecer dela. Depois que eles foram embora, enquanto eu e meus pais íamos para o carro, perguntei para minha mãe se Minas Gerais ficava longe de casa. Para minha tristeza ela disse que sim, era bem longe. Eu fiquei triste e logo ela me abraçou.

Eu fiquei com muita vergonha de ligar para ela, mas todos os dias eu olhava aquela foto que me fazia lembrar duas coisas: sua beleza única e o mar. Eu sempre me lembrei daquele momento. Quando ganhei minha primeira agenda, tratei de anotar rabiscos, ainda muito infantis, sobre aquele dia e que me ajudam até hoje a lembrar de tudo. Eu tive medo mesmo depois de criança de ligar para ela, por não saber como ela reagiria, porque ela poderia não ser mais a mesma, poderia até não mais lembrar de mim. Isso seria mortificante. Preferi tê-la daquele jeito em minha lembrança. Eternizei seu sorriso. E ainda hoje quando me pego lembrando daquele episódio, sinto a mesma coisa na barriga, não é uma paixão sobre uma garota e sim sobre uma garota e mar. Como são estranhas essas coisas do coração. [/align]
 
[align=center]DAS ESTRELAS À STELLA[/align]

[align=justify]De todas as complexas reflexões que diariamente transitam em minha cabeça, e de todos os sentimentos que por ela patrulham e de todas as bobagens despertadas a cada segundo entre todos os pensamentos, o sentimento menos provável de “aparecer” para mim seria o amor. Nenhuma das minha relações durou mais que uma noite e eu nunca me imaginei enfeitiçado por qualquer uma que fosse. A minha vida toda pode ser resumida facilmente em trabalho, estudo, cigarros e muito sexo descompromissado. Amor e compromisso sempre foram palavras inexistentes em meu vocabulário muito rico e bem mais desenvolvido do que o normal das pessoas.

Stella. Nome não muito comum. Bastante exótica. Senso de humor exageradamente extravagante. Orgulhosa da profissão: Operadora de fotocopiadora. Não tem amante e nem tem interesse em ter um. Sorriso enorme, mas bonito, sempre estampado em seu lindo rosto de traços marcantes.

Eu certamente devo estar escrevendo para passar o tempo enquanto fumo o último maço de cigarros do dia; lá pelo quarto maço do dia sinto-me possuído por quantidade de nicotina ? colorindo de preto meu fedido pulmão ? suficiente para resolver fumar mais um único maço (que às vezes estende-se a mais um outro) ? e escrever um pouco sentado em minha confortável poltrona laranja.

É costume meu baralhar em meus escritos devaneios aleatórios, relatos e reflexões sobre mim e sobre um personagem que ocupa minha existência num dado período. Tudo isso acaba ficando muito confuso, principalmente quando a personagem não está inserida em algum contexto, quando minhas produções não têm história. Além disso, muitas vezes interrompo uma seqüência para falar de mim, não me importando se no clímax ou não.

As personagens que me povoam são, ao menos para mim, muito cativantes. O improvável aconteceu sem que para isso eu estivesse “pronto”. Eu pensei que nunca me apaixonaria. Apaixonei-me. Stella. Ah, Stella. Tão simples, mas tão complexa. Sobre ela pouco sei. O que sei é magnífico. Minha fixação por ela é enorme. Passo grande parte do meu tempo pensando nela e tentando desvendar as particularidades dessa formosa mulher, que estão perdidas em minha cabeça. Fora o hábito de coçar o nariz em filas de banco ou salas de espera, nada nela me enoja. Ela fascina-me.

Uma das coisas que acho mais fantástica, mas incomum, é que ela segue o catálogo de cores ao pintar o cabelo. Apareceram cabelos brancos em sua cabeça ainda na juventude, portanto desde cedo coloriu-os. Ela nunca repetiu a cor; pega o catálogo e pinta cor por cor, número por número.

Stella passeia pelo parque toda manhã, e frustra-me o fato de as pessoas não a notarem. Com certeza um ou outro perceba suas avantajadas dimensões do quadril ou suas coxas carnudas. Mas ninguém vê sua bela essência, como vejo. Nenhum outro homem impressiona-se por sua complexa simplicidade ou sua modesta beleza realçada nas noites não muito escuras de pouca chuva, em que ela para ao lado de um poste de parca iluminação.

Sinto uma maravilhosa sensação ao ofuscar minha visão diante dos lindos e cintilantes olhos castanhos que se destacam em meio a um pequenino nariz empinado localizado logo acima de uma boca tão graciosa. Stella tem a testa larga e tem a “maçã do rosto” acentuada. Ela pode não ser a mais perfeita das mulheres, mas para mim ela é muito bonita.

Stella poderia ser muito feliz junto de mim. Sustentaríamos nossa vida facilmente com a venda de meus contos ou eu poderia voltar a tocar saxofone no aconchegante restaurante de um velho amigo. Se para ela fosse bom, ela poderia continuar operando a fotocopiadora e eu não me importaria. Seriamos felizes ? se isso dependesse de mim ? nas noites frias em que o sangue congela, nas tardes quentes de aquecer os ossos do peito, ou em qualquer outra situação. Ela me prenderia por toda vida, num embaraço de pernas, abraços; e sentimentos incorporaria ao meu dicionário os tais conceitos até então inimaginados por minha fértil mente.

Não ouso dizer que Stella seria a “mulher da minha vida”, mas com certeza meu desejo encontra-se voltado a toda ela. Sinto-me como nunca me senti com nenhuma mulher, nem mesmo com aquelas que me levaram à loucura. Não desejo mais ninguém, além de Stella.

A moça de branco que diariamente me importuna em meu quarto já se cansou de insistir que Stella não existe e que é fruto de minha imaginação. Criação de uma mente doentia, imaginativa e mulherenga, que precisa de ajuda. Eu, com certeza, não preciso de ajuda e não sei em que aquele jaleco branco interfere na razão dela. Ela tem uma roupa diferente e acha que tem mais razão. Stella é real. Stella me tira a quietude, e nem os cigarros ? que a mulher de branco teima dizer que são feitos de chocolate ? conseguem devolvê-la.

Stella não é ficção. [/align]
 
[align=center]O INFERNO DAS BOAS INTENÇÕES [/align]

[align=justify] Pingos d'agua. Ah, como eu odeio crianças. Várias gotas, todas em coro uníssono. Odeio crianças. Caem em cima daquele líquido maldito e viscoso. Deus – melhor não botar Deus no meio dessa história, ele não tem nada a ver com isso – odeio crianças. Um caminhão, uma roda, um contato. E a criança. Roda no maldito líquido. Criança na maldita rua. Eu na maldita calçada – certas horas não há como parar e pensar, assim como parar e olhar para os dois lados de uma rua. Humanos precisam fazer decisões na vida. Decisões rápidas, inteligentes e inadiáveis. Como nesse caso. – A roda vira, ele cai, eu corro, agarro, corro, pulo. Ele continua, bate e, graças a mim, não mata ninguém. Todavia, odeio crianças.

- Você está bem? – Não há resposta – Oi, você está bem? – Ela está viva, ela está acordada. Mas não responde. – Você deve estar assustada. Venha, vamos comer algo.

Crianças adoram cachorro-quente. Eu não. Lambuzam-se todas, o ketchup caindo pelo lado oposto da mordida, fazendo com que a salsicha seja atirada, como um caminhão no óleo, para fora do pão. Pegam aquela carne toda tingida de vermelho e amarelo, com a mão inteira, e botam de volta no pão, como se nada tivesse acontecido. Odeio.

- E então, agora pode me dizer o seu nome? – Ela vira o rosto para mim com aquela boca condimentada e depois de alguns segundos volta a morder o pão. Melhor esperar?

Ódio profundo. Cada vez mais minha pressão aumenta. Meu coração bate mais forte. Como? Eu ainda não entendo.

- Terminou? – Inútil. – Agora eu preciso saber: quem é a sua mãe? Onde mora? Eu não posso te ajudar se você não falar comigo.

Ela levanta da mesa, não pronuncia uma palavra sequer e anda até a saída. Apenas até a saída. Seria ela muda? Segui-a até a porta.

- Você quer que eu te acompanhe até a sua casa, é isso? – Nem um sinal. Ela podia ser muda, mas por que não reagia?

Eu sempre pensei que o maior erro dos humanos era a falta de comunicação. Eu sempre quis explicações, sempre a verdade, sempre resolvi meus problemas com longas conversas. O silêncio só atrapalha, o silêncio é ambíguo, cria dúvidas, produz guerras. É misterioso demais. – O mistério maior é a existência de mistérios. É tudo tão facilmente explicado com palavras. Por que romantizar?

Começou então a andar, de novo sem pronunciar uma só sílaba. Seguiu a rua, virou à esquina, continuou reto e atravessou a rua sem parar antes.

- Ei, você não pode atravessar a rua assim desse jeito. Não é toda hora que terá alguém como eu para salva-la.

Ela finalmente parou de andar, de repente, virou pra mim e me olhou com uma cara que, definitivamente, não era de uma criança. Pensei que havia acertado a ferida dela, achei que aquela era a hora de ouvir a sua voz. Mas, depois de um bom tempo parada, olhando profundamente com seus olhos raivosos, virou e continuou andando.

Passamos em frente a um parque de diversões, porque não? Peguei-lhe a mão e entrei no parque. Talvez estivesse muito triste para falar. Uma boa diversão faria bem a ela. Se é preciso suborná-la para ajudá-la, tudo bem. Fomos ao carrossel, não abriu um sorriso. Fomos à montanha russa, nenhum movimento. Fomos no túnel do terror, um grande palhaço pintado com cores gritantes, naquela escuridão imensa, ajudado por uma voz ao fundo de desespero e outra de uma risada maligna caiu de repente sobre nosso carrinho. Não me contive, berrei, maldito susto. Não posso dizer o mesmo dela.

O rosto dela não se movia, era um rosto sério, nervoso, como se estivesse desiludida, mas de uma maneira forte, impactante. Ela me lembrava de minha “ex” quando, na ocasião, segui-a por um bom tempo, implorando por sua volta, perguntando porquês e não obtendo nenhuma resposta. Essas lembranças ligadas ao fato dessa maldita criança me irritam profundamente. Catei a mão dela de novo e saí do parque:

- E então? Você é alguma múmia por acaso? – E ela continuava a fitar o nada, séria. – Menina, entenda uma coisa... Você não pode ficar por aí largada. Sua mãe deve estar preocupada, arrancando os cabelos, chutando tudo, quebrando tudo, com medo. – Eu estava quase descontrolado - Você pode se machucar na rua!

Alguma coisa tinha de ser feita. Eu, cada vez mais, sentia necessidade de fazer algo por ela. Era o certo, ajudar. Mesmo que aquela criança me irritasse profundamente. Na dúvida continuei a andar com ela pela cidade, para, quem sabe, alguém ver ela. Passei por várias delegacias, não, eu seria o suficiente, já bastava o meu empenho. Maldito empenho.

A minha cabeça já começava a doer. Talvez impacto da fina e leve chuva que caía. Fina e leve, mas eu estava embaixo dela fazia horas já. Guarda-chuva? Ela recusara, fugia do guarda-chuva. Então, irritado, joguei-o no lixo com toda a minha raiva. Agora eu sentia que Atlântida estava sendo reconstruída dentro de minha cabeça. E a criança, maldita criança, nada.

- Olha aqui garota... – Eu não agüentava mais. Fiquei na frente dela, abaixei, segurei fortemente seus braços. – Eu preciso te ajudar. Você precisa de ajuda! Então me fale onde fica a porcaria da sua casa! – Minhas mãos apertavam seus braços com muita força mas ela não reagia com um “ai” sequer. – Então?

Soltei-a. Ela novamente olhou para os meus olhos. Aqueles olhos queimavam-me de tão gelados. Não entendia como uma criança poderia ter aquele olhar. Depois disso levantou o braço para frente e apontou. Finalmente uma reação! Agora ela tinha entendido que eu só queria o melhor para ela.

Ela começa a andar e eu sigo triunfante! Ela vira a esquerda, segue, vira a direita, segue, vira a esquerda, está me levando até seu lar? Talvez tenha entendido que eu não sairia do pé dela até ajudá-la. Vira a direita, estamos chegando? Ela chega numa avenida e, quando olho para frente, vejo uma loja de brinquedos. Decepção. Mas por pouco tempo. Quando olho para a menina vejo uma coisa que me faz tremer Ela estava sorrindo. Sim, ela que não demonstrava sentimentos, excetuando-se raivas passageiras sobre minha pessoa, estava sorrindo com todos os dentes amarelos que tinha.

Nesse momento todo o meu corpo se renovou, finalmente eu havia passado no teste secreto dessa criança. Ela estava me testando até agora. Oras, nunca fale com estranhos. Agora ela quer a prova final. Ela queria um brinquedo de lembrança. Uma boneca que a faria lembrar de mim todos os dias? Quem sabe?

Entramos na loja, ela continua sorrindo, compulsivamente. Foi em todos os corredores e na ultimo deles viu o que queria: Uma lousa mágica. Daquelas que você escreve e apaga ao levantar uma película de plástico. Fomos até o caixa, paguei. Ela continuava feliz, eu estava satisfeito.

Saímos da loja e ela estava lá, escrevendo no seu novo brinquedo, como estava feliz! Escrevia, escrevia e escrevia, e apagava quando eu tentava ler. Então nessa brincadeira ela continuou até chegarmos na avenida de novo. Estava tão distraída se com a lousa, pensei eu, que não viu, mais uma vez, o sinal fechado para pedestres. Repetia-se a cena, eu indo atrás dela para não se machucar. E é no meio da avenida que seu brinquedo escorrega e cai. Rola quadradamente por pouco tempo, mas fugindo de minhas mãos. Finalmente a pego. Maldita lousa. Quando olho para a calçada a vejo, sorrindo mais ainda, com seus olhos fixos em mim. Olho para a lousa em sua mão.

Dizem que em certos momentos toda a sua vida passa pela sua mente. No meu caso só consegui lembrar desses acontecimentos. O tempo foi curto. O tempo de olhar para o brinquedo e ler. Depois disso olhei para frente e vi, por um tempo ínfimo, mas infinito, a minha redenção: Um ônibus. Lotado com os sentimentos do mundo, de mistérios pessoais, lotado de gente que, com certeza, eu ajudaria se minha bondade, caridade e curiosidade não estivessem agora no fim do itinerário: No inferno das boas intenções.[/align]
 
Comecem a dizer mais o que acharam dos contos e se ficaram em dúvida na hora de votar. Estou ainda lendo e gostei bastante do primeiro até agora. e um dos que li eu mesmo diria que foi escrito por mim de tanto que parece com o jeito que escrevo :P
 
notei a temática do amor bastante ativa nos contos. povo romântico esse do meia, não?
 

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