Melian
Período composto por insubordinação.
[align=justify]Tomou com gosto um gole de café. Fez cara feia. Estava com gosto de sabão. Não que ela soubesse qual era o gosto de sabão. Ela não se lembrava de ter experimentado sabão alguma vez. Talvez uma lembrança remota, de quando criança, dessas lembranças que a gente não quer lembrar, que a gente quer esquecer, para não ter de viver de novo a humilhação de ir lavar a boca cheia de gordura, com sabão, e rir, com o riso que só uma criança sabe sorrir, e sentir a espuma entrando na boca e as lágrimas saindo dos olhos. E o ouvido captando as mais agudas risadas das crianças ao seu redor.
Ainda uma lembrança vinda do quarto da mãe e do pai, da mãe mandando o pai tirar as mãos dela. E do pai mandando a mãe lavar a boca com sabão, para nunca mais ousar levantar a voz contra seu marido.
Não, ela não sabia qual era o gosto de sabão. Mas ela sabia que o seu café com leite estava com gosto de sabão. Poderia ser a xícara, mal lavada, com sabão grudado nos cantos, mas preferia acreditar que era um gosto de sabão vindo de outro lugar. Do pensamento, talvez. Disseram-lhe, uma vez, que esses comandos vêm do cérebro, essas coisas de sentir gosto. Seu cérebro estava teimando em dizer-lhe que o café com leite estava com gosto de sabão.
Ela sentia uma necessidade de pensar em um gosto comparável ao gosto do sabão, assim como, agora, eu tenho uma necessidade de palavras que expressem o seu sentir. Quero dizer, o sentir dela. Eu só penso em falar sobre ela. Só penso nela. E o gosto de sabão.
Tem o sabão do banheiro, também. O sabão de corpo inteiro. Menina, mandou a mãe, pare de se esfregar com esse muleque. Cês tão se esfregando feito sabão esfrega em roupa. Que roupa? Não tinha roupa. Mas tinha sabão. A mãe juntou a gordura velha, aquela da fritura, comprou soda, no supermercado, e fez sabão.
Cortou um pedaço da mangueira da mãe, para fazer de canudinho, para brincar de bolinha de sabão. A mãe descobriu, bateu nela. Bateu com a mangueira. Fez cada vergão que ardeu quando ela foi tomar banho e ensaboou o corpo. Dormiu chorando. Imaginou o céu, cheio de estrelas, com milhões de estrelas, e fez um pedido, um pedido só, a todas elas. Queria acordar adulta, grande, no outro dia, para não apanhar mais. Alguma coisa dentro dela doía. O gosto de sabão lembrava a dor. Todas as dores.
Sonhou com Clarice. Nunca conheceu Clarice, nunca viu uma foto dela, mas eu sei que a moça do sonho era ela. Clarice estava na rua, na ruazinha que dá para a escola. Sentada, no banco, no banco de madeira, feito embaixo da árvore, parece uma praça. O velho que passou parece Drummond. Mas ela nunca conheceu Drummond. Nunca viu foto de Drummond. Nunca leu Drummond, mas já nasceu tropeçando em pedras. E se confunde com a fumaça do cigarro. Clarice fumava, Drummond caminhava, e ela, ela sentia gosto de sabão.
Já está quase amanhecendo. O galo já vai cantar. As chaleiras de café já vão começar a trabalhar. O cheiro de café vai invadir minhas narinas. O jornaleiro não vai trazer o jornal, e está na hora de ela acordar. Eu vou observar. Eu gosto de observá-la. Sinto prazer em falar sobre ela, em olhar para ela. Vou ficar quieto, quietinho, quero ser o primeiro a ver a menina grande. A menina moça. A menina mulher.
E se ela imaginou o inferno, no lugar do céu?
- Não lava o coador com sabão, menino, que cê estraga o café. [/align]
Ainda uma lembrança vinda do quarto da mãe e do pai, da mãe mandando o pai tirar as mãos dela. E do pai mandando a mãe lavar a boca com sabão, para nunca mais ousar levantar a voz contra seu marido.
Não, ela não sabia qual era o gosto de sabão. Mas ela sabia que o seu café com leite estava com gosto de sabão. Poderia ser a xícara, mal lavada, com sabão grudado nos cantos, mas preferia acreditar que era um gosto de sabão vindo de outro lugar. Do pensamento, talvez. Disseram-lhe, uma vez, que esses comandos vêm do cérebro, essas coisas de sentir gosto. Seu cérebro estava teimando em dizer-lhe que o café com leite estava com gosto de sabão.
Ela sentia uma necessidade de pensar em um gosto comparável ao gosto do sabão, assim como, agora, eu tenho uma necessidade de palavras que expressem o seu sentir. Quero dizer, o sentir dela. Eu só penso em falar sobre ela. Só penso nela. E o gosto de sabão.
Tem o sabão do banheiro, também. O sabão de corpo inteiro. Menina, mandou a mãe, pare de se esfregar com esse muleque. Cês tão se esfregando feito sabão esfrega em roupa. Que roupa? Não tinha roupa. Mas tinha sabão. A mãe juntou a gordura velha, aquela da fritura, comprou soda, no supermercado, e fez sabão.
Cortou um pedaço da mangueira da mãe, para fazer de canudinho, para brincar de bolinha de sabão. A mãe descobriu, bateu nela. Bateu com a mangueira. Fez cada vergão que ardeu quando ela foi tomar banho e ensaboou o corpo. Dormiu chorando. Imaginou o céu, cheio de estrelas, com milhões de estrelas, e fez um pedido, um pedido só, a todas elas. Queria acordar adulta, grande, no outro dia, para não apanhar mais. Alguma coisa dentro dela doía. O gosto de sabão lembrava a dor. Todas as dores.
Sonhou com Clarice. Nunca conheceu Clarice, nunca viu uma foto dela, mas eu sei que a moça do sonho era ela. Clarice estava na rua, na ruazinha que dá para a escola. Sentada, no banco, no banco de madeira, feito embaixo da árvore, parece uma praça. O velho que passou parece Drummond. Mas ela nunca conheceu Drummond. Nunca viu foto de Drummond. Nunca leu Drummond, mas já nasceu tropeçando em pedras. E se confunde com a fumaça do cigarro. Clarice fumava, Drummond caminhava, e ela, ela sentia gosto de sabão.
Já está quase amanhecendo. O galo já vai cantar. As chaleiras de café já vão começar a trabalhar. O cheiro de café vai invadir minhas narinas. O jornaleiro não vai trazer o jornal, e está na hora de ela acordar. Eu vou observar. Eu gosto de observá-la. Sinto prazer em falar sobre ela, em olhar para ela. Vou ficar quieto, quietinho, quero ser o primeiro a ver a menina grande. A menina moça. A menina mulher.
E se ela imaginou o inferno, no lugar do céu?
- Não lava o coador com sabão, menino, que cê estraga o café. [/align]