problema na questão de terem ou não asas os Balrogs se divide, na
verdade, em três pontos principais:
O primeiro deles, e mais óbvio, é efetivamente a simples pergunta "Têm
asas os Balrogs?" (ou, mais especificamente, "Tem asas o Balrog de
Moria?"). Por incrível que pareça, esse é o ponto que, também, tem a
resposta mais óbvia: Não, os Balrogs **NÃO** têm asas! E a explicação é,
novamente, muito óbvia - os Balrogs não têm asas (como não tem também
nenhum outro apêndice como rabo, chifres, língua de fogo, ...) porque não
existem, são apenas frutos da imaginação. Não sendo um ente (ou objeto)
real, não é possível que tenham posse de qualquer atributo ou
característica.
Mas isso não resolve a segunda questão, que é "Por que tantas pessoas
acham que os Balrogs têm asas, enquanto outras tantas acham que não?".
Aqui, novamente, a resposta é meio óbvia (não tanto quanto à primeira
questão): Pessoas acham que eles têm ou não asas porque isso é o resultado
de sua imaginação. E esse é simplesmente o resultado da função básica de
um livro (ou de uma história contada), estimular a interpretação ou
imaginação das pessoas. Esse interpretação é uma característica subjetiva,
baseada no conjunto de experiências anteriores e no conjunto de estímulos
recebidos pelo leitor (ou ouvidor) da história. Como tais conjuntos são
diferentes para cada um, o resultado do processo é também diferente. O
autor escreve um livro para que seja interpretado pelo leitor e isso é
intrinsecamente diferente daquela de um filme ou peça de teatro, onde a
caracterização de personagens, cenários e locações induz uma interpretação
bem mais restrita (o ser humano normalmente tem a grande maiora de seu
aprendizado associado à percepção visual).
Antes de passar à terceira questão, vale apena uma pequena digressão sobre
aquela segunda. O que poderia induzir uma pessoa a imaginar que os Balrogs
teriam ou não asas? Poder-se-ia especular que em média 50% achariam que
eles as têm e outras 50% não. Tais pesos são modificados pela experiências
do leitor. Por exemplo, aqueles que não tiveram conhecimento com o
Silmarillion e apenas leram o SdA em uma tradução (e não é só a Martins
Fontes que comete erros de tradução!) onde existe o termo "abriu suas
asas...", em grande maioria imaginarão aquele personagem com asas. Aqueles
que tivessem porventura lido "The Fall of Gondolin" achariam a frase
apenas uma licença poética. E aqueles que tivessem lido o original e ainda
consultado o "Oxford English Dictionary" no verbete "Wings", provavelmente
interpretariam no sentido de exercer poder (do Balrog).
O parágrafo anterior é importantíssimo, pois justifica a franca admiração
que nosso colega Ancalagon tem por Peter Jackson e sua filmagem do LTR.
Como um dos mais ferenhos defensores das asas do Balrog, ele ficou
encantado (embora disfarce bem) por PJ as ter colocado no personagem do
filme. Não por causa do filme em si ou por causa da caracterização do
monstro (bleargh!), mas sim porque esse pequeno detalhe do PJ aumentou em
muito o número de pessoas que imaginam o Balrog com asas. Toda aquela
imensa maioria de pessoas que viu o filme e não leu o livro, ou mesmo
aqueles que leram o livro depois de ver o filme, terão agora uma
predisposição visual para imaginar o Balrog com as asas do PJ. Trocando em
miúdos, o PJ fez mais pela OSBA com três ou quatro minutos de filme do que
todos os defensores dela com suas mensagens em todas as páginas "Tolkien
based" (só para lembrar, mesmo somando a impressão acumulada do LTR em
todas as línguas durante os 50 anos e multiplicando por um número adequado
de leitores - digamos uns 4 por livro - ainda é muito menos do que os
espectadores do filme em apenas três anos). Para um verdadeiro OSBA, mais
vale um 'tico' de um PJ que as muitas baboseiras do M. Martinez!
Aqui entramos na terceira pergunta relevante ao assunto, "O que Tolkien
pensava a respeito das asas dos Balrogs?". Essa questão é de suma
importância, pois se soubéssemos sua resposta não existiria mais discussão
sobre o assunto. Entretanto, se Tolkien fosse vivo, ele não deveria
fornecer essa resposta, pois ao autor não cabe explicar a interpretação de
sua obra (vide Umberto Ecco), interpretação reservada aos leitores.
Estando morto, a questão fica ainda mais complicada.
Há pouco tempo o seguinte argumento foi postado na lista de discussões
Valinor (msg # 31129) "Mas para mim não há dúvida que Tolkien se referia a
abrir asas mesmo, se de sombra ou não aqui não é relevante." Mas como não
ter dúvidas? O autor (da mensagem) por acaso tem um texto escrito de
Tolkien afirmando aquilo? Ou será que conhece o pensamento de Tolkien? -
Mas que pretensão! Como é que alguém pode ter certeza do que Tolkien
pensava quando escreveu aquele trecho, se ele já está morto há mais de 30
anos, quando o autor da mensagem nem tinha nascido ainda (ou então estava
pelos cueiros)? Nem mesmo Deus (o católico) para saber o que os outros
pensam (vai contra o livre arbítrio da humanidade, de modo que os trechos
das antigas escrituras onde Deus conhece o pensamento dos homens são
reconhecidos como metáforas literárias dos escribas - inspirados ou não
por Ele).
Voltando ao tema, qualquer um pode achar o que quiser do "seu" Balrog,
porém não pode querer usar o seu "achismo" como argumento em uma
discussão. Principalmente, não pode usar argumentos errados para tentar
convencer outras pessoas de sua opinião. Indo para o lado jurídico, nós
teríamos que ter ou uma prova, ou indícios suficientes, para afirmar qual
era a intenção de Tolkien.
Prova mesmo, infelizmente não há. Apesar de Tolkien ser um dos autores em
que o processo de composição de suas obras é melhor documentado pelas
várias versões (publicadas nos HoMe e em alguns textos esparsos, como na
Vinyar Tengwar), não se encontra uma frase que defina a existência
daquelas asas. Até o momento, descontando pegadinhas de primeiro de abril,
há 99% de incerteza sobre o assunto, os textos conhecidos não se referem a
elas.
Isso desloca a discussão para a existência de indícios. Quer dizer, se
existirem vários indícios, embora isoladamente não conclusivos, mas com
qualidade para formar uma base corente, podemos assumir qual é a opção
mais provável.
Aqui é onde os participantes da OSBA pecam. Os argumentos apresentados
nessa categoria são todos muito fracos (alguns até mesmo ridículos como
alguma coisa sobre jogar galinhas, densidade do ar, tamanho dos
salões,..), não se sustentam em qualquer discussão séria, não apaixonada.
Um deles tem sido exaustivamente re-apresentado em várias versões (a
questão do 'flying over Hithlum' que implica na existência de asas, mas o
'Flight of the Noldor' ou, no LTR, 'Flight to the Ford' não implicam que
os Noldor, ou Frodo, Sam, Aragorn, Merry, Pippim e Glofindel as tenham!
Haja falta de coerência nesse raciocínio !).
Recentemente, uma outra mensagem na lista Valinor invocou nova aparição
daquela expressão (msg # 31040): "Nesse trabalho da revisão, vcs
corrigiram o apêndice onde diz que o balrog fugiu VOANDO para Moria?"
[Nota: RR, 2nd. ed, Allen & Unwin, 1966, apêndice A, p. 353: ... a thing
of terror that, flying from Thangorodrim, had lain hidden ...]. No
entanto, o autor da mensagem não reclamou que, no capítulo 'The Field of
Cormallen' [ibid, p. 227: ... their enemies were flying and the power...],
a tradução [SdA, MF, 1991, p. 1006] usa "... os inimigos estavam
fugindo..." Isto é, segundo a OSBA orcs, trolls e 'beast-enslaved' tinham
todos asas, talvez até mesmo em alguns Haradrin ou Southron usados como
cobaias para experimentos transgênicos ...
Por outro lado, vários indícios corroboram o uso, por Tolkien, do "spread
one's wings" como expressão idiomática (com o sentido de desenvolver
poderes ao máximo) e que constitui, com alguns outros fragmentos,
evidência a favor de Balrogs sem asas (não se entra aqui em detalhes, os
interessados podem ver o texto nos arquivos da Valinor, "A questão das
Asas dos Balrogs...").
Para obter indícios indicativos sobre a linha de pensamento de Tolkien no
seu processo de composição é necessário se colocar em sua posição. Muitos
dos leitores que entram na discussão das asas (e em outras semelhantes)
ignoram completamente quem era o o autor daquelas linhas. Tolkien não era,
como um Paulo Coelho, simplesmente um escritor.
Para saber quem era Tolkien, pode-se referir a Seamus Heaney (prêmio Nobel
de Literatura) no prefácio de sua tradução do Beowulf: 'However, when it
comes to considering Beowulf as a work of literature, there is one
publication that stands out. In 1936, the Oxford Scholar and teacher
J.R.R. Tolkien published an epoch-making paper entitled "Beowulf: The
Monsters and the Critics" which took for granted the poem's integrity and
distinction as a work of art and proceeded to show in what this integrity
and distinction inhered.' {Entretanto, quando se considera Beowulf como
uma obra literária, exite uma publicação que se destaca.Em 1936, o erudito
e professor de Oxford J.R.R. Tolkien publicou um artigo que marcou época
chamado "Beowulf: Os montros e os críticos" onde assumiu a integridade e
distinção do poema como uma obra de arte e prosseguiu demonstrando no que
essa integridade e distinção residia.}
A sentença acima, em primeiro lugar, define corretamente Tolkien - erudito
e professor. Adicionalmente, demonstra como Tolkien trabalhava: como um
pesquisador, erudito, sábio. Reconhecia o valor (até então esquecido) do
poema como uma obra de arte e demonstrava porque. Esse trabalho mudou
completamente a maneira como Beowulf passou a ser encarado na literatura
inglesa.
Essas características é que são necessárias de serem compreendidas. Como
age e escreve um 'Erudito'. Ele procura não só a beleza literária, mas
também de onde vem essa beleza. Ele pesquisa o texto, as sentenças e
palavras para que sejam usadas de acordo com seu sentido histórico,
literário ou comum. Escolhe-as para refletirem não só o sentido desejado
(mesmo que inconsciente) mas também para que se situem corretamente na
boca da personagem ou do narrador. Ele não mostra apenas a beleza, mas tem
o conhecimento e a prova de porque ela é bela.
Vamos então nos situar na posição de Tolkien. Sabemos, porque está
documentado, que ele escreveu o LTR após ter participado do OED (e após
ter publicado um dicionário do Middle - English). Ele contribuiu para a
seleção de aproximadamente 2 milhões de palavras e frases de um repertório
disponível com 5 milhões! Por qualquer parâmetro, isso lhe dá um domínio
linguístico (apenas no inglês) simplesmente inigualável em termos
modernos.
Sabemos também que ele iniciou seus trabalhos no OED pela letra W. No
'Biography' (Carpenter, p. 108) cita-se, como exemplo a entrada para
"wasp" e as múltiplas variantes através de muitas línguas usadas por
Tolkien para a descrever sua origem. É razoável que ele tenha também
escrito o verbete para "wing" (ou supervisionado, ao menos) ao longo dos
anos que colaborou com o dicionário.
Sabemos, basta consultar o OED, que a expressão "spread one's wings"
aparece indexada no verbete "wing" (escrito por Tolkien?) e não no
referente a "spread" (escrito antes dele unir-se à equipe.
Esses três indícios sugerem que Tolkien sabia muito bem a diferença entre
escrever "spread the wings out", "stretched the wings" ou "spread its
wings".
Além disso, sabemos também como ele era cuidadoso ao escolher as palavras
ou frases. A frase de Frodo em Sammath Naur é um exemplo disso (vide a
lista Valinor ali pelas mensagens 30320 e respostas derivadas). Outros
exemplos são mais notórios: o uso "pipeweed" no lugar de "tobacco" (pois
'tobacco' é uma palavra que não existe no inglês antigo, importada após a
descoberta da América), o contraste entre a moderna 'potatoes' e a antiga
'taters' (tubérculos, raízes). Na edição inglesa de 1966 ele eliminou os
'tomatoes' da despensa de Bilbo, trocando-os por 'pickles', já que os
tomates também só surgiram na Inglaterra após metade do século XVI.
O capítulo do Conselho de Elrond é revelador em termos do domínio
linguístico. Com mais de 20 personagens falando (eventualmente através da
narrativa de outros), as sentenças no original refletem o 'status' (ou
antiguidade) da pessoa que as utiliza. Quando Elrond fala, ele usa
construções arcaicas, que refletem sua idade da primeira era: "This I will
have as a weregild for my father, and my brother" (citando Isildur);
'weregild' é simplesmente arcaica no inglês, e a colocação do objeto na
primeira posição This I will have... segue uma regra antiga de que o verbo
é a segunda posição na frase, devendo trocar posição com o sujeito quando
algo diferente ocupa a primeira posição (regra essa praticamente esquecida
no inglês moderno onde é raro o sujeito não preceder o verbo e o objeto
não seguí-lo) [T.A. Shippley, Tolkien - Author of the Century].
Até mesmo a simples descrição da 'touca'de joias de Arwen foi importada
diretamente do inglês antigo (médio), usando sua tradução do Sir Gawain.
O conjunto acima já é suficientemente forte para mostrar que Tolkien
escreveu (mesmo que de forma inconsciente) com segurança e domínio de
causa a frase " and its wings were spread from wall to wall ". Tivesse ele
querido se referir a asas reais, provavelmente teria escolhido outra
construção.
Existem ainda indícios indiretos. O "Fall of Gondolin" (e outras histórias
da saga dos elfos e homens na primeira era) eram conhecidos há muito tempo
e bastante discutido nos Inklings, onde o LTR foi também exaustivamente
lido e discutido. Escritores como CS Lewis e C Williams não deixariam
passar uma inconsistência dessas entre Balrogs com e sem asas (Lewis
revisou praticamente todos os textos escritos por Tolkien até o final da
guerra).
A verdade, nua e crua, é que a maioria dos indícios apontam realmente para
Balrogs tolkienianos (isto é, apenas imaginários) sem asas. Entretanto,
como dito mais acima, isso é uma questão de imaginação, ou, parafraseando
novante nosso Dragão de um só vôo, "questão de fé".
O que eu recomendaria, em termos de uma "questão de fé", é que ela ficasse
restrita ao dogma, sem procurar estendê-la ou justificá-la com argumentos
errados ou mal-versados. E, principalmente, não procurar empurrá-la goela
abaixo dos pobres neófitos, ignorantes do assunto, que frequentemente
postam nas listas a primeira das perguntas listadas lá no início. Afinal,
os restos da carne queimada durante a Inquisição ainda assombram os porões
da história recente da humanidade. E, disso temos também certeza
documental, Torquemada tinha plena convicção de sua fé, tanto é que a
impunha a ferro e fogo àqueles pobres coitados que não tinham a sorte de
compreendê-lo.
Enerdhil