Bem informativo o artigo da Tolkien Gateway mesmo... Pelo visto havia os gigantes nos contos antigos (Home 1-3), criaturas associadas a Melkor. Mais tarde, gigantes aparecem em O Hobbit:
Gandalf! (...) Não o camarada que costumava contar histórias maravilhosas nas festas, sobre dragões, orcs e gigantes e sobre resgates de princesas e sobre a sorte inesperada de filhos de viúvas?
Em outro capítulo:
(...) Quando espiava os clarões dos relâmpagos, via os gigantes de pedra do outro lado do vale, lançando pedras uns sobre os outros, como num jogo, apanhando-as, jogando-as na escuridão embaixo, onde elas se despedaçavam por entre as árvores ou se estilhaçavam em mil fragmentos com um ruido ensurdecedor. Então vinham vento e chuva, e o vento sacudia chuva e granizo em todas as direções, de tal modo que uma pedra saliente não representava proteção nenhuma. Logo estavam todos quase encharcados, e os pôneis estavam parados com as cabeças baixas e os rabos entre as pernas; alguns gemiam de pavor. Ouviam os gigantes gargalhando e gritando por todas as encostas das montanhas.
- Assim não dá! - disse Thorin. - Se o vento não nos levar, se não nos afogarmos, se um raio não cair em nossas cabeças, seremos apanhados por algum gigante e chutados para o céu como uma bola de futebol.
- Bem, se você conhece algum lugar melhor, leve-nos para lá! - disse Gandalf, que estava muito irritado e nada satisfeito com os gigantes.
(...)
O pobre Bilbo ficou sentado no escuro, pensando em todos os nomes horríveis de todos os gigantes e ogros de que já ouvira falar em histórias, mas nenhum deles tinha feito todas essas coisas.
(...)
O mago, para falar a verdade, não se incomodava em explicar sua esperteza mais de uma vez; então disse a Bilbo que tanto ele como Elrond sabiam muito bem da presença de orcs malignos naquela região das montanhas. Mas seu portão principal ficava numa passagem diferente, mais fácil de atravessar, de modo que frequentemente pegavam pessoas surpreendidas pela noite perto de seus portões. Evidentemente as pessoas haviam deixado de trilhar aquele caminho, e os orcs provavelmente tinham aberto a nova entrada no topo da passagem que os anões haviam escolhido, e muito recentemente, porque até então ela parecera bastante segura.
- Preciso ver se encontro um gigante mais ou menos confiável para bloqueá-la de novo - disse Gandalf - ou logo não haverá como atravessar as montanhas.
Nota-se que os gigantes são associados aos ogros. Porém, Gandalf tem a esperança de "negociar" com um gigante para tampar a passagem nas montanhas.
Em O Senhor dos Anéis, a tendência era que os gigantes continuassem aparecendo. Havia uma região ao norte de Valfenda chamada "entish lands", proveniente do termo inglês arcaico "ent", que significava justamente "gigante". E era o gigante Barbárvore que aprisionava Gandalf, não Saruman. Mas na versão final, Barbávore virou um "ent", e a região das entish lands viraram "Ettenmoors, the troll-fells north of Rivendell". Quer dizer, os gigantes "desembocaram" em trolls e ents. Daí também pode vir a inspiração que originou a fala de Barbárvore sobre trolls serem criados como "imitação" e "escárnio" dos ents. Por fim, em O Senhor dos Anéis vemos várias menções a trolls, eles parecem tão endêmicos quanto os orcs, assim como, em O Hobbit, ogros e gigantes pareciam associados.
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Daí fica difícil interpretar os gigantes de O Hobbit perante essa nova ótica de O Senhor dos Anéis. Podemos criar hipóteses, no mesmo sentido que se discute, no fandom, a natureza do Tom Bombadil ou a origem dos orcs...
[1] Lembrando que os ents, tal qual os anões, eram um povo livre por si só, dotados de alma,
[2] podemos conjecturar que os trolls sejam...
(1) meras imitações sem alma dos ents, como os orcs no Mitos Transformados VIII
[1][3] o eram em relação aos elfos.
(2) ents deformados, similares aos orcs do Mitos Transformados X
[1][4] que eram humanos deformados (e esta parece ter sido a versão final de Tolkien sobre a origem dos orcs).
Os gigantes também podem ser alguma dessas duas coisas - talvez meramente algum sub-tipo de troll, no final das contas. Ou talvez tenham natureza espiritual "invertida" em relação aos trolls: trolls seriam (1), mas os gigantes seriam (2), por exemplo. Outra hipótese é a de que os gigantes sejam
(3) ents deformados mas que, por algum motivo, se viram livres do controle do Melkor, antes de propriamente virarem trolls. O fato dos trolls estarem ligado às pedras, inclusive virando pedra em certas ocasiões, torna plausível algum "parentesco" com os gigantes de pedra - talvez os gigantes de pedra sejam o meio do caminho entre ents e trolls também
in-universe. Nesse sentido, os gigantes de pedra seriam similares aos meio-orcs de Saruman:
(...) na Terceira Era, Saruman redescobriu isso, ou aprendeu através do conhecimento antigo, e na sua cobiça por poder realizou-o, seu ato de maior crueldade: o cruzamento de Orcs e homens, produzindo tanto Homens-orc grandes e traiçoeiros, quanto Orcs-homens pérfidos e desprezíveis. (Myths X)
[1][4]
Assim como essas criaturas eram orcs com sangue humano mais pronunciado (ou homens com sangue órquico mais pronunciado), talvez os gigantes de pedra sejam trolls com uma veia ent mais prevalente, ou ents com alguma deformação "trollesca".
Outra hipótese é a de que
(4) os gigantes sejam uma espécie por si só, distinta dos ents mas de origem similar, isto é, originados de algum grupo de espíritos que, tal qual no caso dos ents, foram "convocados" por Yavanna para se misturar entre kelvar e olvar (animais e plantas).
[2] O fato de serem de "pedra" não atrapalha essa hipótese demasiadamente - Fruta d'Ouro era "filha do rio", mas ninguém duvida que estava bem integrada entre kelvar e olvar. Seriam espíritos da natureza, no final das contas, como os trolls de Frozen, mas um tanto quanto desordenados, talvez por influência de Melkor.
Por fim, mais ou menos nesse sentido, pode ser que os gigantes de pedra sejam
(5) uma visão mais infantil e fantasiosa, inserida pelo Bilbo em seu livro, do mesmo tipo de espírito ou tendência indeterminada que parecia tomar conta de Caradhras. Gigantes jogando pedra uns nos outros seriam apenas um retrato fantasioso de tremores e desmoronamentos, por exemplo. Gandalf talvez quisesse meramente fechar a passagem "lidando" com a montanha mesma... Sem falar da hipótese mais simples de serem
(6) simplesmente maiar...
Eu dispenso a a hipótese dos gigantes serem
(7) eruhíni grandes (como Hagrid de Harry Potter, ou talvez até maiores), visto a ligação evidente entre trolls, ents e gigantes, e o fato da descrição dos gigantes jogando pedras uns nos outros parece pouco conciliável com humanos, mesmo que através de alguma interpretação mais metafórica... Além disso, no original, Gandalf diz que espera achar um "more or less decent giant". Não parece se referir a humanos, pois mesmo entre povos do extremo sul e leste espera-se que haja toda a variedade de decências,
[5] logo seria natural que Gandalf procurasse alguém meramente decente (sem "more or less"). Já se são criaturas como trolls, por exemplo, uma criatura "more or less decent" poderia ser interpretada como uma criatura com a qual se possa negociar, a despeito de serem criaturas relativamente indecentes (como orcs).
De minha parte, gosto de uma mistura das hipóteses 4 e 5. Talvez os gigantes fossem espíritos ancestrais de origem similar à dos ents, mas que, assim como os ents ficaram "arvorescos" e se tornaram pouco discerníveis do meio a sua volta, talvez os gigantes tenham ficado "montanhescos" e pouco discerníveis das montanhas em geral. Daí inclusive podemos arriscar uma origem mais factual para as lendas gondorianas sobre suas montanhas, e unificar a explicação dos gigantes com a explicação do fenômeno de Caradhras, até porque ocorrem na mesma região e em momento similares da história. A visão da comitiva em O Hobbit poderia ser uma visão mais "espiritual" do que propriamente "física", como se eles vivenciassem uma representação imagética da realidade espiritual das montanhas - mais ou menos como ocorre em visões rápidas de santos ou de deuses. Ou, talvez, essa passagem do livro seja meramente algo proveniente da liberdade poética do próprio Bilbo,
[6] como o que ocorre nas passagens da bolsa falante e dos animais falantes (inclusive cães que servem a mesa), ou da raposa falante em O Senhor dos Anéis - porém, nada impede que, ainda assim, a passagem retratasse uma realidade invisível e subjacente aos fenômenos naturais das montanhas.