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Fidalguia

hamiltox10

Usuário
Pessoal, finalmente tomei coragem e vou postar meu livro aqui no clube dos bardos. A cada cinco dias ou menos sai um capítulo, que eu publicarei e anexarei ao primeiro post para ficar mais organizado. Espero que gostem e opinem sobre os erros, etc etc.

Obrigado para quem for ler, para quem não vai ler mas pode um dia ler, e para quem nunca vai ler mas leu até aqui.:D

Aqui vai o prólogo:

Prólogo

- Sangrou o rio. – Falou Gisborne. Sua calça estava suja de argila até a altura dos joelhos, e a blusa surrada denunciava que havia caído em algum buraco lamacento não muito longe dali. Ele coxeava, e tinha faixas brancas atadas ao calcanhar direito.

- Foi a chuva de ontem. Nunca vi vendaval tão forte. – Respondera um sujeito idoso, gordo e roliço feito uma rodela de queijo, e que tinha dentes mais escuros do que o carvão que queimava em seus olhos. Era o velho Wallet, encarregado das lavouras, que estava agora inspecionando a colheita do fim de mês. Tinha o chapéu todo molhado, e o gibão de couro estava arruinado na cintura, surrupiado por limo e água barrenta.

- Caí num fosso. – Denunciou Gisborne, alisando a superfície encardida da perna dormente. Suas feridas sangravam um pouco e exalavam pus, mas estavam veladas por panos macios. – Machuquei meu pé também.

- Lateja? – Indagara Wallet, escarrando no chão um conteúdo grosso e gosmento. A barba e bigodes brancos e espessos cobriam sua papada e davam um ar respeitável ao aldeão.

- Um pouco, mas dá pra aguentar. De qualquer forma, o monastério é logo ali na colina. – Falou Gisborne, apontando o indicador ossudo na direção de um pequeno monte verde e sem árvores que aflorava um pouco ao norte.

O abastado lavrador confirmara com a cabeça. Sacara dos bolsos uma planta marrom, que dizia ser erva importada do sul. Mascava-a sempre que podia, “pois dava consistência à boca”, afirmava com convicção. Naquela manhã teria de abandonar os afazeres para tratar da perna de Gisborne, e isso o custaria caro.

Os dois, velho e verdureiro, passaram a caminhar rumando à pequena colina que se encontrava ali perto. Wallet arrastava-se presunçoso, com sua pança sempre um passo à frente ribombando a cada passada, já Gisborne, aquele saco de ossos remendados com pouca carne, limitava-se a segui-lo, mantendo a boca fechada e os resmungos para si mesmo.

Patrão e empregado cruzavam os prados verdes ensopados de água, e evitavam as poças de lama que haviam se formado na noite anterior. Estavam já muito perto do monastério. O velho Wallet temia apenas a visão das escadas, que escolhera como algoz desde o dia em que quebrara a bacia tentando subi-las. O que para Gisborne era tarefa de cada dia, para ele era uma vertiginosa escalada.

Antes que pudessem avistar os degraus, porém, Wallet viu o verdureiro parar de repente.

- É a perna? – Indagou, afagando com os dedos a barba, branca como a espuma da cevada. Não precisou de resposta, pois seus diminutos olhos encobertos por camadas de gordura divisaram ao longe um grupo de cavaleiros trotando velozes pela trilha de argila.

Haviam muitos homens, e vestiam armaduras completas, da viseira às botas, trajando gorjais de aço, carregando escudos largos e achas d’armas nas costas. À frente o porta bandeiras erigia o estandarte do alce prateado entalhado na seda verde-musgo, e era escoltado por dois batedores vigilantes, que percorriam o caminho nas laterais.

Gisborne contemplava admirado. Aquele era realmente um grupo forte e numeroso, e os cavaleiros ali somavam cem lanças e duas vezes esse número de espadas. Pareciam estar prontos para dar batalha ou levantar um cerco, só que agora galopavam pela vastidão amargurada que compunha o condado de Becker, terra de lavradores e gente simples.

Wallet jazia ao lado, pensativo, cauteloso como sempre. Podia sentir nos seus calos doídos que algo ruim estava para acontecer. Que queriam aqueles soldados todos em Becker? Não sabia dizer, mas lembrava-se bem de já ter pagado seus impostos à coroa naquele ano, e também não se esquecia de que os cobradores só apareciam na véspera do solstício de verão; naquele momento, seus ossos não podiam estar mais frios.

Verdureiro e lavrador observaram a companhia descrever uma curva angulosa pela colina verde e sem árvores, passando pelas escadas e forçando caminho pelo próprio portão. Subiram todos, em fileira indiana, sempre respeitando a ordem imposta por um sujeito que trajava muitas placas de ferro sobre o peito, e trazia um escudo esférico, liso e nu, de metal polido guarnecido nas costas.

- Apresse-se Gisborne, ou os perderemos de vista! – Chiou o velho Wallet, precipitando-se a correr um pouco. Já nem mais lembrava-se das dores de joelho que sempre o afligiam. O magricela fez um derradeiro esforço para acompanhar o ritmo do patrão, também movido pela curiosidade.

Ambos corriam, aos troncos e barrancos, movendo-se para o cume da pequena colina escarpada recoberta por gramíneas rasas. Alcançaram as escadas e contemplaram o monastério, rudimentar habitação de pedra erguida sobre uma paliçada de argamassa e apoiada por toras espessas de madeira nas laterais. Viram também outros fazendeiros que aravam e semeavam a terra fofa, e também os mercadores que carregavam caixas de lenha de um lado para o outro. Viram todos se reunindo, os que estavam ao redor e os que trabalhavam longe, formando juntos um aglomerado de gente simples, curiosa, absorta, e que circundava aqueles estranhos soldados vestidos com ferro. Lá estavam Bill da taverna, Tom Caolho e Malde Raízes, como muitos outros conhecidos de Wallet.

- Veja Gisborne, os cavaleiros já chegaram! – Indicara o velho, quando notara que a companhia havia atingido o ponto mais alto da colina, onde estavam erguidos o monastério, a estalagem, um ou dois casebres e o mercado de verduras.

O magricelas lutava para tentar enxergar algo. O povo se aglomerava em torno dos cavalos, extasiados, em polvorosa, e um baixinho como Gisborne nunca iria puder ver através da massa de pessoas que se estirava à sua frente. Seu patrão, mais esperto, achara um ponto de apoio em cima de uns tablados velhos de madeira, de onde podia observar tudo o que se passava com facilidade, já ele tentava achar um bom lugar em meio à multidão.

Um sujeito forte e largo, que vestia muitas placas de prata reforçada, liderava todos os soldados ali. Montava um garanhão malhado, negro como a noite e grande como um corpulento touro, e envergava uma espada longa e metálica, que era empunhada com ambas as mãos. Foi este mesmo cavaleiro que desmontou subitamente, com as pesadas botas de ferro chocando-se contra a lama fofa em estrondo. Caminhou um pouco pelo solo encharcado, viseira abaixada, olhos encobertos analisando o povo que agora o encarava. Murmurou algo ao capitão e bateu no peito três vezes.

Seu porta-bandeiras então ergueu no céu o estandarte do alce, e todos puderam ver os cornos de seda verde-musgo que representavam uma das grandes casas nobres do sul. Um arauto fez as honras conforme a norma, mas o velho Wallet pouco ou nada ouviu daquilo. Suas orelhas velhas e enrugadas, entupidas de cera, não faziam justiça à sua audição. O que ele ouviu, porém, fora a voz grossa e retumbante do fidalgo conclamando a vinda do clérigo.

- Chamem o sacerdote! – Ordenou incontestável, brandindo o punho cerrado como se fosse uma pesada maça. Dois criados, que esperavam no canto da porta, prontamente rebaixaram os olhares e, sorrateiros, entraram pela portinhola de madeira que separava o monastério das adjacências.

Isso é jeito de falar com os serventes? Questionou-se Wallet, com um olhar pesaroso. Franziu as sobrancelhas quando viu que todos se perguntavam algo parecido. Não pensou em resposta, porém, e apenas esperou. Não sabia o motivo, nem o porquê, nem a razão daqueles sujeitos espadaúdos estarem ali, mas não gostava nem um pouco. Que querem eles com Benedito? Indagou-se novamente, como era de seu feitio.

Viu o sujeito caminhar de um lado para o outro, ziguezagueando nervoso. Voltara a cair uma chuva fraca e fria, fina como a noite que havia morrido, mas nem sequer um camponês arregrara o pé daquele monte escarpado, verde e sem árvores. Todos queriam ver o que traziam cavaleiros até o minúsculo condado de Becker. Ele mesmo não poderia perder o desenrolar da história, o desfecho daquela visita inusitada. Ledo engano.

O sacerdote Benedito era velho. Mais velho do que qualquer homem que Gisborne já conhecera. Seu avô mamava no berço quando o idoso devoto já aparava as madeixas brancas que fugiam-lhe da cabeça calva. Tinha visto mais de cem invernos, e alguns alegavam que o sujeito somava em passadas cem léguas em cada década. Já fora homem importante, com vilas, criados e todo o resto, mas no fim de sua vida, desejara recolher-se para o campo, e acolhera sorridente seu novo lar no simples monastério de Becker.

Era este Benedito que agora arrastava-se pesaroso, fraco e caduco, sob a cortina de muitos olhares, ao encontro daquela comitiva tão atípica. Não é nada cortês esse nobre. Pensou Wallet, contrariado. Um homem de idade merece repouso no despertar da aurora.

Foi andando Benedito, e via-se claramente que suas pernas tortas arqueavam com o peso das costas esguias. O homem era fraco, mais magro que Gisborne, se isso fosse possível, e ostentava uma comprida barba branca, que cobria suas costelas finas e seu peito esquelético por inteiro e denunciava os longos anos de sabedoria dedicados ao estudo.

- Por acaso não pode esperar até o entardecer para receber a benção do Senhor e da Senhora, como todos os outros? Ou será que seu sangue nobre lhe dá poder e autoridade para fazer o contrário? – Perguntou o sacerdote, supreendentemente desafiador. Dirigiu seus pequenos e enrugados, porém firmes, olhos em direção à carranca zombeteira daquele nobre galante, que jazia ao lado de seu garanhão musculoso e castrado.

Wallet concordava positivamente com a cabeça. Não se acorda nem camareiro durante um bom sono, afirmava com convicção. Já Gisborne, lutava para subir em um pequeno apoio pedregoso que descobrira não muito distante do mercado. Esgueirara-se por entre a massa de gente até encontrar aquele recinto elevado, onde um anão transformava-se em gigante. Era perto de onde alguns cavaleiros montavam guarda, mas sua curiosidade era tremenda, e após dois segundos de breve meditação conferiu que valia a pena arriscar.

Gisborne moscou-se sorrateiro por entre a pequena multidão que lotava o montículo. Chegou bem perto de onde um lanceiro estava distraído, e galgou seu local para assistir às cenas que iriam se desenrolar. Viu surpreso quando o nobre tomou bruscamente o estandarte verde da mão de seu porta-bandeira e fincou-o no chão.

- Vê isto, velho senil?! – Gritou ele, apontando o punho cerrado protegido pela manopla prateada em direção aos cornos de sua flâmula. – Dobre os joelhos e a língua quando for se dirigir a um Eamon de Corintho.

Disparate. Nada mais que um ultraje! Fungou, junto de muitos outros que não apreciavam o rumo da conversa. Viu seu primo em terceiro grau, Furúnculo, e o cunhado de sua falecida irmã, Bill da taverna, erguerem as mangas à procura de paus e foices. Eu sabia. Nunca haviam falhado as premonições dos seus ossos velhos. O que poderia acontecer com aquela gente? Paus e estacas não são úteis contra achas de ferro.

- Sacerdote, serei bem claro e perguntarei não mais de uma vez. – Disparou aquele nobre ousado, enquanto puxava o cabo da espada em tom solenemente ameaçador. – Onde está o ouro?

Ouro? Era aquele homem cego ou louco? As maiores oferendas que o monastério recebia erma sacolas esfarrapadas de couro velho que continham pedra, ferro, e umas raras moedas de cobre amassado.

Gisborne arregalara bem as orelhas pontiagudas, assim como todos os outros. Não havia ouro no campo, só raízes, verdura, e mais raízes. Talvez os cavaleiros tivessem se enganado, para o bem da verdade, mas não era o que descrevia a expressão odiosa e carrancuda daquele sujeito prepotente.

- Ah, poderoso fidalgo, os cobradores de imposto de vossa graça já vieram este ano. – Respondeu o clérigo, sempre cortês. – E confesso; levaram quase tudo o que tínhamos.

- Não falamos por vossa graça. – Respondeu-lhe, com a voz profunda e grave. Seu capitão avançou, esporeando o cavalo, e se pôs ao lado. Desembainhou aço firme, reluzente, e apontou-o para a face enrugada e pálida daquele senhor idoso, que revelou-se surpreso, mas não amedrontado.

- Não temo seu aço, meu jovem. – Respondeu Benedito, incólume. Abriram-se largos sulcos em sua testa, e as manchas que tinha no pescoço nunca estiveram tão evidentes, mas mesmo assim, o velhinho provou-se resistente para alguém de cem estações.

Wallet lutava consigo mesmo. Sua vontade era de puxar qualquer pau que estivesse próximo e avançar para defender o amigo. Se ao menos restasse alguma força naqueles seus ossos velhos, ou se sua barriga não envergasse cinco vezes o peso de seus braços. Dizia que tinha de fazer algo, mas seu impulso morreu quando ouviu, com suas debilitadas orelhas, algo que o deixou estupefato.

- Não é você que corre perigo, velho tratante. – Falara o nobre, no topo de sua arrogância. Pusera a mão no cabo da espada e a apontara em direção aos camponeses, velhos, meninos e meninas que o circundavam – Tenho aqui comigo cem espadas... – Seus cavaleiros, que antes permaneciam impassíveis, desembainharam as armas, esporearam as montarias e fecharam um cerco. Tudo em questão de segundos.

Wallet fora empurrado grosseiramente por um brutamontes blindado. Quase rachara a bacia novamente quando caíra no chão, mas fora erguido por dois meninos que viram sua queda. Gisborne tivera menos sorte. Um dos lanceiros percebeu sua presença sorrateira, agarrou-o pelo fino pescoço e o socou violentamente três vezes, até ver sangue rubro escapulir por suas narinas alongadas e desproporcionais.

São os homens que conheço. As pessoas com quem vivi minha vida. Pensava o velho Wallet, e a erva importada do sul já não tinha mais gosto em sua boca. Poderia lutar, assim como Bill da Taverna, Furúnculo e Will Toureiro, mas sabia que contra aqueles cavaleiros de nada valeriam. Podia sentir a raiva percorrendo suas veias murchas e frágeis. Desejou ser jovem novamente, e lembrou-se de sua mulher. Agradeceu ao Senhor e à Senhora por ela ter viajado para a casa das irmãs apenas uma semana atrás. Que os deuses sejam bons...

- Podemos resolver isso de outra forma, meu fidalgo. – Falou Benedito, com o olhar pesaroso que abaixou-se até se encontrar com o chão. – Não há ouro, mas talvez se o senhor seu pai aceitar algum outro tipo de pagamento...

Não Benedito. Não se dobre, não se curve. Pedia Wallet, indeciso, relutante, mas corajoso, e pedia mesmo que isso lhe custasse a vida. Nunca fora homem audacioso, esse era o papel de seu irmão. Nunca quis ser marinheiro, nem soldado, nem explorador. Queria ser lavrador, arar a terra, plantar sementes, e quem sabe visitar a capital do rei uma vez a cada ano só para admirar suas belas muralhas. Naquele dia uma súbita coragem brotara em seu coração, algo inesperado, e de certa forma, indesejado.

- Não há ouro? – Indagou-se o nobre, com um gracejo. – Homens, ele diz que não há ouro! – Urrou alto, e seus soldados gargalharam muitas vezes antes de se calarem.

Herege. Não se rouba monastérios nessa terra santa. Protestou Wallet, mas então seus olhos foram à procura de Gisborne. Onde estaria o garoto? Não via o magricela em lugar nenhum, e temia que algo ruim o tivesse acometido. Por outro lado, nutria esperanças de que o jovem havia fugido enquanto era tempo, antes que todos fossem feitos cativos.

Gisborne, porém, estava estatelado no chão, com a boca sangrando e os dentes doendo. Era a primeira vez que desejava mascar a velha erva do patrão, para atestar a veracidade de seu efeito. Suas mãos estavam trêmulas, nervosas da porrada que acabara de sofrer. Os olhos, também dormentes, não distinguiam nada, de modo que tudo o que viam eram imagens disformes que se moviam como sombras num fundo branco. Sua cabeça doía, rodopiava, e o que escutava eram batidas, baques surdos que iam crescendo cada vez mais, em ascendente intensidade.

De repente, sentiu-se como se algo o estivesse puxando. Abriu as pálpebras fracas, e viu um rosto austero, frio, marcado pela guerra, que estava protegido por uma viseira semiaberta, complementando uma armadura ornamentada com placas de ferro e bronze. Era o nobre, aquele que chefiava os algozes de sua morada, montado novamente em seu alazão negro, grande como uma besta do inferno, e que agora bufava e guinchava a todo instante.

- Eis aqui um plebeu. – Disse fidalgo, erguendo o pobre Gisborne com apenas uma das mãos. – Se não há ouro, estamos aqui perdendo tempo, meu senhor sacerdote. – Foi ao encontro do velho Benedito, com as rédeas de sua montaria atadas à mão direita, e carregando o leve verdureiro com a canhota.
Gisborne recobrou os sentidos lentamente. Olhou ao redor e viu o clérigo, envergado pelo peso da vergonha. Ergueu o pescoço e contemplou desesperado todos os que conhecia feito prisioneiro. Passou a procurar pela mãe, mas não a encontrou em lugar nenhum. Tentou achar também seu patrão Wallet, mas os olhos ainda doíam muito, e ele não conseguia distinguir claramente os rostos na multidão.

Outra vez fora erguido, e dessa vez pode encarar a face viva de seu inquisidor. O nobre levantou a viseira completamente, pôs devagar a face no ouvido pontiagudo de Gisborne e cochichou baixinho. – Vá, fuja. - Escarniou. – Diga a todos que o alce esteve aqui. Espalhe esta notícia onde estiver, e será esse o pagamento por sua vida.

Dito isso deu uma estocada com o lado da espada na barriga do magricelas, que quebrou duas costelas e o fez estremecer. Os homens riram alto. Uma saraivada de xingamentos e zombarias se sucederam às gargalhadas.

- Matem todos! – Declarou o fidalgo, com o estandarte do alce erguido novamente em suas mãos. – Eles conspiram contra a coroa de Cedric e contra todo o reino. Matem todos! – Ordenou incólume.

Perdoe-me. Foi o que falou e pensou Wallet. Sentiu um golpe forte na nuca que o atingiu por trás, os sons morrendo, as cores sumindo. Passou a mão rugosa pela cabeça e a pintou de vermelho, caiu no chão, desfalecido. Ergueu os olhos mareados, Malde Raízes estava estirada na grama, perfurada por uma lança, Tom Caolho jazia morto, roxo como uma uva, Seu primo Bill afogava-se na própria poça de sangue, tapando com as mãos os buracos por onde as facas perfuraram.

Perdoe-me. Wallet Junior fechou os olhos. Fechou para não mais abrir.
 
Última edição:
Hae \o/
:clap: Parabén pela coragem! Um dia talvez, quem sabe, eu poste a minha também...
De qualquer forma, belo início. Que raiva que deu desse Eamon de Corintho!
Poste mais, sim?

Pergunta: que época mais ou menos se passa sua história?
 
Oi Lissa, obrigado por responder.

Bem, essa história não se passa no nosso mundo e portanto não se enquadra na nossa linha do tempo "convencional", mas se fosse para chutar diria que me baseei nos idos de 1200 a 1350, por aí.

Vou postar a continuação da história amanhã. A trama se desenvolve do ponto de vista de quatro personagens então não é muito convencional, mas mesmo assim espero que goste, e que vc se surpreenda com os plot twist que estão inseridos no texto.

Abrçs...
 
Pessoal, vou postar aqui o primeiro cap, um pouco atrasado ^^.

Obrigado pelos possíveis comentários.

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Dalton

Damien Dalard sentava-se à mesa, imóvel, como se estivesse trabalhando em mais uma de suas peças de madeira. Iluminada pela chama de um pequeno archote, sua sombra dançava na escuridão, bruxuleando a cada brisa, como se comemorasse algo que há muito esperava. Ao lado do sofá, logo no início da sala de estar, erguiam-se dois soldados, blindados por gorjais e clavas de aço, e ainda um sujeito, alto como uma torre e com uma cara dura de quem tinha poucos amigos.

De longe, entre alguma fresta minúscula que nascera da união da velha cômoda com o assoalho, espiavam Dalton, Melissa e o primo Ruy. Espiavam preocupados, pois Damien estava com o rosto abatido e o olhar abaixado, corado de suor e com a voz trêmula.

Tudo por causa da Torre. Há dois dias, quando pela primeira vez seu pai fora interrogado, Dalton contemplara de perto o rosto medonho daquele que era o homem mais alto que já vira. Foram duas noites repletas de pesadelos, e quando por fim a manhã chegava, nem mesmo a presença do pai acalmava o medo em seu coração. E agora, pela terceira vez, a Torre bombardeava Damien com perguntas.

- Quando foi a última vez que deixou o condado de Braga? – Sua voz gutural era profunda como os sonhos de Dalton.

- Verão passado, no fim da colheita. Eu, minha mulher e filhos fomos até a casa de meu primo em terceiro grau, Estevão. – Damien suava como um porco pronto para o abate.

- E onde estão seus filhos? - A Torre queria saber de tudo, cada palavra sua tinha um propósito, cada gesto um significado. Era famoso por sua estatura, mas mais ainda pela habilidade de minunciosamente levar qualquer interrogado a entregar seus mais profundos segredos.

- Viajaram para a casa de minha sogra. Vão passar um tempo lá, até que a colheita amadureça e eu encontre uma utilidade para os meninos mais novos. Enquanto isso continuo trabalhando em meus móveis, dormindo cedo, e evitando confusão, juro. – Damien estava afundado na cadeira acolchoada com peles de texugo, batendo levemente a sola dos sapatos no chão.

A Torre deu seu sorriso seboso, o que sempre dava quando estava prestes a descavar a verdade. – Mas a colheita de Braga acontece após o Festival das Hortaliças, em setembro. Ainda estamos em março... O ciclo das estações não bate com o que narra, marceneiro. Você se contradiz.

Damien travou, como se tivesse sido abatido por um raio. Dalton, que metia os olhos azuis por entre a fenda de madeira e o piso sujo do acarpeto, contou nos dedos o passar dos meses, e para seu desespero constatou que o pai havia errado.

- Verão?! Eu quis dizer inverno! – Damien tinha os braços colados aos da cadeira. – Me perdoe, é que estou a muitos dias preocupado com o assunto e por isso não consigo dormir, nem comer, nem pensar direito.

A Torre calou-se. Fungou com a boca, levando a mão à barba negra. Sua face, marcada pela varíola, endureceu como metal forjado ao encontro da água. Sua boca se apertou, as sobrancelhas adelgaçaram, o nariz adunco enrijeceu, e por um longo tempo ele encarou carrancudo o olhar simplório de Damien Dalard.

Quando por fim cansou-se, deu as costas para o marceneiro e abandonou o conforto da sala de estar, não sem antes deixar seu recado.

- Voltarei amanhã. – Foi o que disse, logo antes de escancarar a soleira da porta com um pontapé medonho. Seus dois cães de aço o seguiram, calados e mudos como sempre foram.

Demorou um tempo até Dalton articular um movimento. Não pensava em fazer qualquer barulho antes que seu pai ordenasse. Fora estritamente proibido de abrir a boca, quanto mais arriscar algum chiado. Antes de trancá-lo com Melissa e primo Ruy, Damien explicitou as regras da maneira mais clara possível. Não se podia respirar muito alto, nem tossir, nem bocejar, e espirrar estava fora de cogitação. As punições, em caso de desobediência, seriam severas e eram válidas até mesmo para Melissa, que sempre costumava sair intacta de castigos e confusões.

- Eles já foram? – Sussurrou a menina, com seus dois olhos azuis que mais pareciam pérolas refulgindo no escuro.

- Sim. – Dissera uma voz que viera d’além do assoalho. – Graças aos deuses. – Damien abrira a entrada para o sótão, que estava escondida bem no canto da sala, embaixo do tapete vermelho. – Agora saiam daí e me ajudem com o jantar. Pegaremos a estrada amanhã, antes de o sol nascer.

Um por um os meninos escalaram os pequenos degraus de madeira e encontraram novamente a liberdade. Dalton não gostava nem um pouco do sótão, era apertado, escuro e cheio de bichos estranhos, mas o que mais lhe incomodava era a poeira. Melissa pensava semelhante, detestando o calor abafado ainda mais do que a poeira. Já Ruy, medroso como um guaxinim acanhado, preferia enfrentar as setes caldeiras do inferno antes de encarar o rosto austero da Torre novamente, e não se incomodava nem um pouco com os rios de ácaro que corriam pelo velho piso de madeira da residência dos Dalard.

- Quer dizer que vamos embora papai? – Indagou a menina Melissa, com os olhinhos brilhando e os cachos dourados balançando. Antes que um segundo se passasse engatou outras duas perguntas. – Cadê a mamãe? Ela já voltou da viagem?

Damien permaneceu calado, olhando para o chão. O suor que escorria de suas bochechas momentos antes agora estava impregnado em todo o rosto. Num segundo suas olheiras cresceram, suas pernas fraquejaram, e seu humor voltou ao estado negro em que estivera nos últimos dois dias. A boca se apertou, juntamente com o punho.

- Vão lá pra cima. – Disse ele. – Hoje faço a sopa sozinho.

Fora o bastante para Dalton tomar o caminho das escadas. Ruy seguiu-o sem pestanejar, mas a pequena Melissa foi contrariada, sem ganhar ao menos um cheiro ou uma resposta.

O quarto dos três estava arrumado. Lençóis sob a cama, fronhas e seis largos travesseiros alinhados junto à escrivaninha. Tituba, a empregada, havia aprontado tudo antes de ter ido embora com os outros. Dalton não se esquecia do adeus melancólico, quando a lestense abandonou-os soluçando lágrimas de gelo, acenando com a mão enquanto era levada pela carroça molambenta do velho feitor.

- Sinto falta da Tituba. – Choramingou Melissa. – E da mamãe, e do feitor.

Ruy estava mordendo as unhas, olhando pro teto. – Eles vão voltar. Foram chamados pelo homem do castelo, mas logo vão voltar. Tituba, junto da tia Malde, e também os outros. Sei disso.

Quem dera... Pensava Dalton, se remoendo em devaneios estranhos. Quem dera soubesse disso também. Temia que algo pior estivesse acontecendo, algo como as guerras sangrentas que eram cantadas nos poemas ou alguma peste que viera assolar o povo pobre do campo. Não ousava, porém, falar nada disso aos outros dois, pelo medo que sentia ou pela coragem que tentava transparecer. Além do mais, ninguém precisa ficar ainda mais preocupado.

Quando Damien bateu com as colheres o jantar estava servido. Na mesa retangular se encontravam duas panelas de barro recheadas com guisado de coelho e sopa de ervilhas, que tinha como brinde especial alguns raros caroços de milho. Pão seco complementava o cardápio, e o suco de uva ajudava a empurrar tudo pra dentro.

Melissa fez careta para comer, Dalton não reclamou, e Ruy se empanturrou como o leitão lhe garantia apelido. Comeram até se satisfazerem, ajudaram a limpar a louça e depois conversaram um pouco no sofá, até o sinal das doze badaladas, quando por fim o cansaço bateu.

Logo estavam os três no quarto novamente, aguardando silenciosos a vinda do sono, que como era de costume veio primeiro para Dalton, acompanhado de um sonho bizarro e incomum, que lhe perseguiu durante toda a noite.

Começava com ele na cama, descansando de um longo dia no campo. Sozinho, tinha as mãos doídas, calejadas com marcas e feridas. A lua brilhava intensa pela pequena janela estreita do quarto de seu pai. Ela o chamava, mas ele relutava em ir. A brisa corria fraca por entre as fronhas que o recobriam, e a noite perdia-se na escuridão crepuscular. O luar ia crescendo, sussurrando, convidando Dalton a se levantar, mas ele negava, virava o rosto e enfiava a cabeça sob o travesseiro. Tudo ia sumindo, as coisas se esvanecendo, descolorando, até que nada mais restava para ser visto.

Ficou tudo escuro, e por um bom tempo Dalton e sua cama jazeram inertes no meio do limbo, esperando pela vinda da manhã. Mas o sonho não parava por aí. A paleta cinza e negra que regia o mundo ganhava uma nova cor, o vermelho escarlate do fogo, que saiu tingindo os céus e a terra numa violenta tormenta flagelante, deixando escombros e destroços por onde passava.

- Pai! – Gritava Dalton. Estava sozinho, deitado na cama em alguma colina verde, com a pele queimada e o ar faltando no pulmão, tossindo freneticamente. – Pai! – Tentou outra vez, mas sua voz morria na garganta, sufocada por escarcéus negros que vinham das densas nuvens que se agigantavam no ar.

Um mar de chamas rugia em estrondo, vomitando labaredas e flamejas para todo o lado, encobrindo o mundo com fogo e destruição. Muitos eram levados por suas ondas, afogados em tufões que não diminuíam a cólera, arrasando tudo o que tocavam. Dalton estava a salvo em sua colina, seu último refúgio, mas tinha os olhos cheios de lágrimas e a pele escura, pintada por uma névoa negra. Contemplava atônito as pessoas serem arrastadas por aquele oceano de fogo, sem conseguir fazer nenhum movimento.

O corpo de Damien boiava na lava, sob um dos muitos armários de madeira que haviam sido feitos por suas hábeis mãos. Melissa estava sendo carregada pela casinha de bonecas que sua mãe lhe presenteara na virada do ano retrasado, e por último, flutuando no magma borbulhante, vinha Ruy, atrelado às portas da despensa, que havia sido arrancada da cozinha.

- Melissa! Pai! – Gritava impotente. – Ruy, segure minha mão!

Ninguém lhe dava ouvidos. Todos continuavam inertes como sacos de batata, sendo carregados pelos rios de fogo.

Dalton chorava. Chorava muito, descontroladamente. Sua casa estava sendo arrastada, e todos que conhecia agonizavam. Por fim, sua mãe Malde veio carregada por uma porta de madeira, muda e calada, como se a vida tivesse a abandonado.

- Mãe! – Dalton continuou tentando, inutilmente.

Eu posso. De repente, uma voz grossa como um acorde estourou no céu, derrubando árvores com sua potência, cortando ventos e tornados e se lançando diretamente no consciente do garoto. Eu posso. A lua brilhava forte, e sua luz enfrentava as flamejas mortais que tentavam chegar ao corpo de Dalton. Eu posso. Ele saiu correndo colina abaixo, tomado por uma súbita coragem, com a voz martelando sua cabeça a cada segundo. Eu posso. Cada vez mais alta, cada vez mais intensa. Eu posso. Era a mesma palavra sempre, e sempre e sempre e sempre. Eu posso. Dalton já nadava sobre a lava, com os olhos fechados. Eu posso. O fogo tomava conta de seu corpo, e o levava cada vez mais fundo. Eu posso. O tempo parou, e tudo que antes ardia e queimava se apagou, como uma fogueira ao encontro da chuva.

Dalton estava na sua cama, pingando, molhado como se tivesse saído do banho. O quarto permanecia escuro, mas a luz da lua ainda refletia nos cachos de Melissa e os roncos de Ruy impediam que o silêncio imperasse. O vento ainda corria, as folhas farfalhavam e o mundo era o mesmo, sem fogo nem morte.
Mas algo havia mudado. Sua garganta estava seca, desidratada e inflamada. Dalton podia sentir as ranhuras, a irritação em seu pescoço, e ansiou por um copo d’água. Não tardou para abandonar o leito e descer as escadas, à procura de uma jarra. Poderia não ter a chance de se hidratar durante a viagem, já que a estrada para o sul era longa e perigosa, e preferia não arriscar caminhar com sede.

Antes que pudesse terminar os degraus, porém , cessou o avanço. Vozes estranhas vinham da sala, barulhos e ruídos, sussurros ao vento. Dalton agachou-se, acompanhando a linha da escadaria rente à parede de madeira e pedra. Não podia arriscar ser visto. Estava tudo escuro, mas se alguém estivesse invadido certamente estaria de olhos bem abertos e com os ouvidos atentos.

Quando por fim alcançou a seção onde o corrimão se aplainava, teve coragem de levantar a cabeça. Um passo de cada vez. Lentamente ergueu os joelhos flexionados, sem fazer o menor barulho. Ouviu mais sussurros, cada vez mais altos. O vento fez o piso de madeira estalar.

- Quem está aí? – Perguntou alguém à suas costas, para seu desespero.

Ruy estava de pijamas, calçando pantufas de couro, com os olhos fechados e coçando o cabelo ruivo.

- Pensei ter ouvido alguma coisa. – Bocejou, antes de ser atingido por uma seta que veio da escuridão.

Tudo aconteceu muito rápido. Dalton se levantou desesperado, subindo as escadas o mais rápido que podia. Ruy caiu estatelado no chão, com o peito vermelho e sem respirar. Os sussurros se transformaram em gritos, e de repente fumaça subiu pelo canto da parede.

Dalton abriu a porta do quarto com um estampido. Melissa ainda dormia. Agarrou a garota com toda a força que tinha e a carregou corredor afora. Ela agora se debatia, perguntando pelo pai.

Onde estaria Damien? Morto, provavelmente, mas o pensamento aterrorizava o filho do marceneiro mais do que qualquer outra coisa. O destino infeliz que fora imposto ao primo poderia ser o mesmo de seu pai.

- Cadê o Ruy? – Perguntou a menina, com os cachos dourados refletindo no fogo, que agora se alastrava pelas paredes, pelo teto, carpete, cortinas e todo o resto da casa. – Fogo! Tem fogo na sala!

Dalton suava rios. Entrou no quarto do pai e viu que estava vazio. Quis desabar no chão, sem forças. Se Damien não estava no segundo andar só podia jazer morto na sala. As vozes cresciam, em número e intensidade. As chamas percorriam a madeira velha da residência dos Dalard, corroendo tudo o que tocavam, e Melissa chorava assustada.

Estavam os dois trancados, impedidos de fugir pela porta da sala, sem saber onde estava Damien, e com perseguidores ao encalço, mas de alguma forma ainda havia esperança. Uma janela, pequena e estreita mas ainda assim uma janela, estava aberta bem do lado da cama de seu pai. Para Dalton não foi uma escolha difícil, era única maneira de salvar sua irmã e a ele mesmo do fogo. Foi rápido em puxar um banco e se esgueirar por entre a abertura de vidro. Ainda com a irmã nos braços, passou pelo alambrado que cercava o segundo andar e se apoiou na sacada velha de madeira.

Era uma queda alta. Seis metros contando com a terra reclinada, que descia em curva. A irmã chorava intensamente. “Não pula! Não pula!” Soluçava, com as pequenas mãos carnudas encobrindo os olhinhos azuis.

Dalton quis recuar. Talvez tivesse outra maneira. Talvez ainda pudesse encontrar seu pai, ou o primo Ruy, que estava agonizando no chão. Mas nada disso importava mais, só a vida de Melissa.

- Não pula! Papai disse que você não pode brincar no alambrado. – Chiou a irmã, num último apelo.

Dalton ergueu a cabeça, à procura de algo para se pendurar. A lua brilhava majestosa, bem alto no céu. O vento corria forte, e atrasava as chamas que carcomiam a casa de madeira. – Eu posso. – Disse ele, fechou os olhos, abraçou bem forte Melissa e pulou.
 
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Vlw pelos comentários positivos. Mais dois capítulos e terminamos de conhecer os personagens principais da história.

Abraços...

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Maric

- Maldita prostituta! – Berrou Maric Staffron, enquanto tateava os lençóis sedosos da cama à procura de sua pequena bolsa de couro.

Estava em um cômodo pouco iluminado e mal mobiliado, decorado pobremente com uma cama velha de lenha, uns feios móveis de cerâmica, uma tapeçaria do sul e dois espelhos lestenses vindos além mar. Sybila, sua rameira particular, havia-o confortado na noite anterior com as mais diferentes formas de prazer, mas mal o sol aparecera ela fugira de soslaio, tomando todo o cuidado para não acordá-lo. Antes, porém, certificara-se de receber sua merecida recompensa, e roubar outras coisas mais.

- Vadia traiçoeira! – Rosnava Maric, percebendo que nunca mais veria aquela bolsa de couro trabalhada em tons beges, e nem mais apalparia o traseiro rechonchudo e perfeitamente esférico de sua meretriz. Numa hora dessas a puta deve estar fodendo a meio mundo de distância.

Teve de se vestir, pois o senhor intendente havia marcado um encontro em alguma estalagem da cidade, e não apreciava esperar pelos subordinados. Na verdade, não apreciava esperar por ninguém, fosse quem fosse, e por isso o conforto da cabine em que estava tinha de ser renunciado.

Fazia sol quando abandonara o convés pomposo da galé de guerra Besta Negra, não sem antes agraciar o capitão por seu proveitoso silêncio. “Um homem tem de foder assim como um homem tem de comer!” respondera-lhe o barbado marinheiro, com uma risada rouca e atrapalhada, que se perdia no meio de uma tosse aguda. Uma vez por semana recebia um punhado de boas moedas reluzentes de cobre, e para isso fechava os olhos à silhueta alegre de Maric Staffron, e tapava os ouvidos a seus gemidos de prazer.

Não era permitida promiscuidade na marinha. Se fosse pego, Maric seria açoitado até que sua pele branca virasse carne-viva, ou quem sabe apedrejado, dependendo do humor do senhor almirante. Se fosse pego. O marujo certificava-se de encobrir todos os prováveis rastros de suas escapadas. O capitão era o primeiro a receber sua mesada, e depois o contramestre, seguido pelo cocheiro, primeiro imediato e também Tom, o garoto das laranjas. Certamente esse dinheiro gasto com subornos poderia ter outra utilidade, mas enquanto estivessem atracados em Corintho, prostitutas, jogos e vinhos eram suas únicas razões de viver.

E agora ia Maric Staffron pelas ruas, bamboleando pra esquerda e direita, com o hálito forte da noitada anterior, seguindo sua sombra projetada pela contra luz do sol nascente. Deixou o porto sem demora, e logo o cheiro desagradável de peixe podre e lulas encardidas que infestava o ar das docas se dissipou com o vento fresco. Dirigia-se à pequena estalagem Potro Louco, onde serviam a melhor cerveja daquele lado do mar e cobravam a maior gorjeta. Ou pelo menos fora isso que lhe disseram num beco qualquer.

Há aí qualquer coisa estranha. Cochichava desconfiado. Não era chegado de nenhum intendente, nem mesmo conhecia um capitão de grande patente. Na verdade, Maric não suportava a presença dos altos oficiais, com seus egos inflados e peitos imensamente estufados, a imagem escarrada de baiacus com fardas carregando estrelinhas nos ombros. Mesmo assim era ele quem iria se sentar em das mesas cuspidas do Potro Louco, se questionando do por que de Gildred tê-lo chamado. Certamente não pelo ambiente agradável.

A porta da estalagem mantinha-se sempre aberta, e era revestida por uma espécie de material duvidável. Por entre as paredes lodosas de madeira apodrecida, a música nunca cessava, e os copos estavam sempre cheios. Uma sorridente garçonete servia os marmanjos que entravam, e não se incomodava em ser apalpada nas coxas ou acariciada por entre as pernas quando ia servir comida nas mesas. Um homem largo e abastado, com três queixos e uma papada digna de um porco, assentava-se sobre dois bancos de madeira, que haviam sido unidos para sustentar seu peso descomunal. Estava rodeado por um balcão esférico que abrigava as contas e pedidos, e entre gritos e estalidos, comandava o estabelecimento enquanto tentava manter-se sóbrio.

Maric não precisou procurar muito para achar o senhor intendente, um sujeito afilado, nariz adunco e maxilar pontiagudo, poltrão, com um jeito acanhado, barba por fazer e com os pelos da monocelha afiados feito arame. Sentava-se no canto mais vazio da taverna, onde quase não se ouvia barulho e a devassa garçonete não passava com frequência.

- Demorou você. – Fitou-o o homem, ranzinza. Os olhos castanhos perolados carregavam uma aspereza típica dos senhores intendentes.

- Problemas no Porto. – Respondera Maric, e a mentira atravessara seus lábios ressecados com um gosto saboroso, doce como o mais requintado mel. Mas para o bem da verdade, estava mesmo com problemas no Porto.

- Sem desculpas esfarrapadas. – Respondera Gildred, ríspido. – Sei de suas prostitutas.

Maric sentiu um frio crocitante na espinha. Enregelou-se até a última fibra de seus ossos, e temeu ser delatado. Se fosse, provavelmente iria dali para as celas do palácio de Lorde Eamon, e nunca mais poria os pés em um convés, nem foderia uma prostituta, nem beberia vinho direto do odre. Pela carranca feia de Gildred, porém, não seria.

- Quem me entregou? – Indagara, precavido. Tinha as sobrancelhas cerradas e o punho fechado.

O intendente não esperou dois segundos. – O cocheiro. – Revelou, arrotando em seguida. – Vale menos do que morto em cemitério.

Maldito homenzinho. Pagava um bom dinheiro pelo silêncio de seus companheiros, e ainda assim um irmão da marinha o traíra com a maior facilidade, negando a decência de pelo menos alertá-lo. – Quanto? – Indagou.

- Duas de cobre, uma de prata, e a prostituta que dormiu com você na noite de ontem. – Respondeu o senhor intendente, com um sorriso maroto no rosto, enquanto melava a garganta com um gole profundo de cerveja esmaltada. - Como era mesmo o nome dela? Sybila! Uma coisinha fascinante, lambedora de cacete mole, ela. Lestense, não é?

Maric Staffron ficou vermelho, com as suíças ruivas eriçadas de raiva. Sybila, sua senhora do prazer, e Baner, filho bastardo de uma mãe mal comida. Não bastasse suportar a traição, tinha de aturar as troças zombeteiras do senhor intendente. Não era nenhum verme, nenhum cocheiro para ser insultado daquela forma. – Olha como fala Gildred. – Alertou, com os dedos estalando na madeira lodosa da mesa.

- Não é? – Agora o rosto do intendente estava sério, e seu nariz adunco parecia maior do que sempre fora. – Ou será que devo perguntar ao senhor almirante? Talvez ele saiba me informar de que bordel veio sua rameira.

Maric engoliu seco. Lembrou-se da última vez que um marujo fora pego com prostitutas em Corintho. Deram-lhe tantas chicotadas nas costas que sua pele apodreceu, até que a derme caiu expondo espinha e vértebras nuas, numa mistura de ossos e sangue. Podia bem matar o senhor intendente agora, mas então selaria seu destino, e seria um defunto antes do fim da tarde. Tinha o sangue quente, veloz, mas nada fez. Apenas anuiu com a cabeça, e se esforçou para não demonstrar sua raiva.

- Lestense, de Urraca. – Disse, tentando não parecer encolerizado. – Uma puta que não valia um tostão, pelo visto.

Gildred aquiesceu, sorrindo com sua boca desprovida de dentes. Estalara os dedos atraindo a garçonete. – Mais dois copos. – Ordenou, voltando a encarar Maric nos olhos.

- Por que fui chamado? – Indagara a seu superior. Não queria mais saber daquela conversa difamatória e estava curioso a respeito de sua convocatória sigilosa.

A jovem servente deslizou por onde sentavam-se Gildred e Staffron, não sem expor um pouco do decote exagerado que encobria seu par de seios roliços. Deixara as duas canecas cheias sobre a mesa, ao lado do carrancudo e careca intendente. Não trouxera nada para Maric.

- Nem mesmo os deuses para me responder. – Suspirara o homem, com os olhos percorrendo o teto barrento da estalagem. Dera imediato trago profundo em sua cerveja esmaltada, resmungando um ou outro chiado inaudível. – Não sou eu quem está falando com você agora. Minhas palavras são as do senhor almirante Elroy, e ele, para meu infortúnio, mandou-me fazê-lo capitão.

A frase estalou pela cabeça de Maric feito um raio. Assim, de repente, ele promovido, nomeado capitão. Mal podia acreditar no que acontecia. Os homens cresciam barbas longas e brancas, amoleciam os corações e demoravam vidas suando por longos anos para assumir o comando do convés, e ele, antes dos trinta, era agora condecorado, e ainda por cima, pelo intendente Gildred, o sujeito mais duro, e alguns diriam imprestável, das sete fozes de Corintho.

- Como? Por quê? – Foram as únicas palavras que saíram de sua boca. Ficou parado, contemplado o rosto desnivelado do intendente, em silêncio.

- Não pergunte, nem eu sei dizer. – Rosnara Gildred, e sua cerveja esmaltada agora parecia ser azeda e velha, feito mijo de cavalo. – Talvez o senhor almirante tenha enlouquecido. Não é qualquer puto como você que dirige o próprio leme.

Maric desconsiderou aquilo. Capitão de um navio. Era pedir demais. No comando de sua própria embarcação seria altamente estimado, lutaria com contrabandistas em alto-mar, perseguiria os inimigos do alce, viajaria em missões sigilosas, foderia tantas prostitutas e de tantas terras diferentes que teria o membro impotente antes de terminar o verão. No meio de tamanha empolgação, porém, percebeu um entrave. Mas e o navio? Qual barco da armada havia cedido o senhor Elroy? Havia, na frota de Corintho, tantas velas quanto conchas no mar. Seria o Consorte Real, uma galé de guerra gigantesca de trezentos remos, capaz de cruzar os sete mares sem aportar uma única vez? Talvez o Almirantado, com sua proa de ferro perfurante que afundava qualquer navio inimigo ao mínimo e singelo toque? Quem sabe o Três Torres? Besta Negra? Seis Dragões?

- Qual embarcação vou – Não pôde terminar a fala. Gildred encarou-o com um sorriso no rosto, malicioso, e remexeu os dedos longos, como se tentasse apalpar sua própria alegria eufórica.

- A Baronesa do Mar. – Disparou, com um risinho. – Cem remos, rápida, leve, e propensa à sua missão.

Maric parou por um instante. Missão? Algo não lhe cheirava bem. Aquilo tudo poderia ser uma armação bem bolada, ou um enigma, ou quem sabe mais uma das troças do senhor intendente. – Estamos brincando aqui? – Afiançara, já sem paciência. Estava disposto a cavar sua própria cova, se fosse para silenciar o boca zombeteira daquele velho desdentado.

Gildred soltou uma gargalhada. – Não estou brincando. O senhor almirante quer que você assuma a Baronesa e parta de Corintho em uma semana, no mais tardar. Deu-me duzentas moedas de ouro para pagar sua tripulação e abastecer o deck do navio, ao que você receberá cinquenta, e mandou-me encarregar de todos os preparativos necessários.

- Cinquenta? E o resto? – Questionara indignado.

- Fica comigo, pelas suas noites de prazer com a lestense. – Novamente esboçou um sorriso, dessa vez ainda mais asqueroso. – Inda tenho de cruzar o Mar Salgado e visitar Urraca. Dizem que lá se vendem os melhores vinhos, e o sol é forte o ano todo! – Suspirou o velho desdentado, passando as mãos esguias pela barba mal feita, que mais parecia chelpa velha remendada pelas mãos de um cego.

- Por que tenho de contratar uma tripulação? E os homens do almirante? – Maric era agora um saco de dúvidas, e bombardearia sem piedade o intendente com suas perguntas.

- O almirante vai enviar alguns soldados com você, mas essa missão é especial, de suma importância para Lorde Eamon, e necessita do mais extremo sigilo. Homens do alce tem a língua solta, por isso quanto menos, melhor. – Respondera Gildred, abaixando um pouco o tom de voz. – O dinheiro suborna a lealdade tão eficazmente quanto títulos e terras, além do mais, com cinquenta moedas de ouro você compra os soldados de toda Corintho, suas primas, irmãs e mães, e as usa como amas de leite até a morte. – Lançou uma pequena bolsa de couro nas mãos de Staffron, que estava cheia de metal dourado. O som das moedas tilintou por entre a superfície fina da mesa, e atiçou a mente do capitão.

A garçonete passou novamente, bamboleando a saia e mostrando as partes. Aquilo que Gildred falara era bem verdade. Em Corintho não se admitia prostituição, mas o povo tratava de camuflar os bordéis chamando-os de tavernas, e sempre se achava um jeito para enganar os soldados do alce, fosse comprando-os com as moedas do rei ou os convidando para desfrutar de algumas garotas, nativas ou não. As mais desejadas eram geralmente as que vinham como escravas além-mar, de Urraca ou Cinabar.

Se a missão era tão importante, por que eu? Indagava-se inquieto o mais novo capitão. Não era louco, nem burro de perguntar isso. Talvez fosse até burro, mas agora que fora recém-nomeado não podia duvidar de sua própria capacidade. Maric Staffron não questionava suas habilidades no casco de um navio, mas as palavras do senhor intendente não eram nenhum pouco tranquilizadoras.

- O que tenho de fazer? – Indagou ávido por informações. Agora começava a suar um pouco, mas não sabia se era por nervosismo ou se o Potro Louco estava ficando mais quente.

- O que você faz tão bem. – Respondera o intendente, se divertindo com a expressão de dúvida estampada na face do capitão. - Se esconder, comprar as pessoas certas pelo preço adequado, subornar, ludibriar, matar de vez em quando e sequestrar também, se necessário.

- Só isso? – Achava difícil terem o nomeado só para aquele tipo de serviço. Não lhe cederiam um navio de guerra sem um real propósito. Para os trabalhos escondidos pagavam contrabandistas, que eram mais baratos, e morriam mais rápido.

Gildred respirou longa e profundamente. Não era particularmente um fã de interrogatórios, principalmente quando ele era o interrogado. – O senhor almirante quer lhe enviar para o norte, passando pela costa, por Bertioga, e chegando até as Ilhas. O propósito, nem eu sei, mas talvez vá saber depois do conselho...

Maric pareceu surpreso. Os intendentes sempre sabiam de tudo, tinham olhos e ouvidos em cada canto de Corintho. Ocorresse algo com alguém, fosse com um relés marujo ou com o capitão-da-frota, era o intendente que sabia onde lamber as feridas. Para que fosse lhe negada uma informação tinha de ser algo muito confidencial, e também importante.

- Como vou saber o que fazer? – Indagara ao que o outro respondera prontamente.

- Uma carta, guardada em papel de seda e escrita à punho pelo senhor Elroy. Está na primeira gaveta do armário de madeira que fica em seu cômodo, na Baronesa. Vai encontrar o que fazer lá. O navio está ancorado no porto, atrás das galés de Lorde Eamon. – Falou, engolindo um trago de cerveja. – A carta responderá algumas perguntas, mas também lhe trará dúvidas. De qualquer forma, parece que Lorde Eamon convocará um conselho de guerra na alvorada da próxima semana. Esteja nos Campos da Corte ao primeiro raio de sol. Procure Lleyton Ruse, Grande Intendente, e diga-lhe que representa Gildred da Colina. É muito importante que vá, na verdade. Agora que é capitão tem de se acostumar a frequentar esse tipo de coisa.

- Conselho de guerra? – Maric estava mais do que confuso. Estupefato, na verdade. – Lorde Eamon vai declarar guerra?

O intendente nada respondeu, apenas franziu sua monocelha farpada em sinal de cansaço. – Você é pago pra obedecer, não pra pensar. Tente se lembrar disso, e tente se lembrar também que vai dividir a mesa com homens como Glein Highaxe e Luther Mortense. Estará me representando diante dos melhores. - Dessa vez, Gildred se levantava e tomava o caminho da porta.

Ouviu-se o barulho da música aumentar. Muitos homens agora entravam pela portinhola de madeira e preenchiam as mesas vazias do Potro Louco. O taverneiro, aquele enorme leitão de três queixos, desdobrava-se para suprir todas as bocas famintas com cerveja e petiscos, peixes fritos e fedorentos, comprados diretamente do porto. Em breve muitas mulheres chegariam à estalagem, e fariam a festa dos marmanjos. Para Gildred, um oficial intendente, não era agradável a presença de tais tipos. O Potro Louco estava muito cheio, com muitos olhares, muitos rostos diferentes. Por isso ergueu-se para abandonar o local.

Antes de sair, porém, lançou seus olhos para Maric uma última vez. – Staffron, eu não gosto de você e sei que não gosta de mim, mas Elroy mandou pessoalmente que lhe recomendasse para o cargo de capitão. O motivo, como já lhe disse, nem eu sei, mas sei que estou arriscando meu pescoço ao colocar você no conselho de guerra, e sei que não gosto de passar vexame na frente dos outros intendentes. Não falhe comigo Staffron, ou teremos uma conversa antes de você içar as velas. - Dito isso, foi-se pelo canto da estalagem, sorrateiro, e partiu como entrou, sem ser visto.

Sigilo. Pensou Maric. Era agora capitão de um bom navio, mas tinha uma missão à altura. É um longo caminho de Corintho às Ilhas. Muitos navios naufragavam na costa, ou se perdiam em alto-mar, para nunca mais aparecerem. Mas a viagem não o preocupava tanto assim. Já velejara de Urraca até Cinabar, já cursara o leito do Caudaloso sete vezes e atravessara o Mar Raso em pleno inverno. Tinha agora de celebrar, beber uns bons tragos com os amigos, conhecer seu navio e contratar uma tripulação adequada, apta para a tarefa. As sarjetas estavam lotadas de homens dispostos a morrer por uma boa causa, e se não estivessem, as masmorras eram sempre uma boa opção.

Antes que pudesse pensar em contratar alguém, porém, deparou-se com o sorriso medonho da garçonete devassa, que agora o encarava.

Foi ela toda jeitosa, deslizando novamente para a extremidade da mesa, e lembrou-lhe, com aquela voz fina e irritante, típica das meretrizes. – A conta senhor.

Pagou-se aí, sua primeira despesa.
 
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