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Féminité

Melian

Período composto por insubordinação.
[align=justify]Ah! Por que dói tanto. Alguém poderia me responder, alguém poderia fazer parar de doer. Tem alguém lendo isso? Se tiver, me ajude. Faça parar de doer, me faça parar de sentir. Eu não queria sentir. Eu queria poder escolher. Eu posso escolher? Diga-me o que eu posso fazer? Como eu posso fazer? Podia parar de doer. Eu podia parar de crer. Queria voltar ao primeiro momento. Voltar quando eu tinha certeza de que não poderia dar certo, e, então, eu apenas sorria. Eu apenas via o seu sorriso. Voltar às primeiras fotografias. Rir dos clichês. Você riu quando eu falei da sua foto, aquela foto em que seus cabelos caiam nos seus olhos. Lembrei-me dela, ao ver a última foto que tirei de você. Aquela em que seus cabelos estavam acomodados atrás da orelha. Hoje, eu descobri que preferia quando eles caiam pelos olhos. Preferia quando as palavras caiam, independentemente do que elas pudessem significar. Você está aí? Eu preferia quando estava. Quando sempre estava. Eu ficava triste, deprimida, mas sabia que, uma hora ou outra, você apareceria, e me escutaria. Aconselharia-me. E eu não te daria ouvidos. E eu, quase sempre, discordaria de tudo o que você dissesse, mesmo que quisesse concordar. Continuo discordando da cor do abajur. Eu gosto do abajur laranja. Ele combinaria com a janela lateral, foi o que eu disse. Você cantou, no tom do Flávio Venturini, Paisagem na Janela. Ainda vou comprar aquele abajur laranja que vimos na lojinha que fica na esquina da rua em que moramos. Morávamos. Naquela quarta-feira, compramos o abajur branco, por ser, como você queria, mais discreto. Quando compramos o abajur, ainda não morávamos juntos. Éramos felizes. Éramos amigos. A amizade era o que de melhor tínhamos para oferecer um ao outro. Você não mora mais comigo. É tão difícil dizer isso. Você sempre gostou de discrição. Era discreto demais. Não suportei. Eu pensei que pudesse suportar não ouvir, uma única vez, que eu era, pelo menos naquele momento, a mulher da sua vida. Eu poderia suportar, não sem dor, que você dissesse que no dia seguinte, eu poderia não ser mais a mulher que você tinha escolhido para ficar ao seu lado, aceitaria ouvir você dizendo que o nosso tempo já tinha se acabado, mas não consegui suportar a ausência total de palavras. Você está me ouvindo? Nunca consegui saber se realmente ouvia. Quero dizer, ouvia, acho, quando éramos amigos. Aliás, nosso problema foi nos esquecermos disso, nossa amizade, durante o casamento. Por que as pessoas pensam que casar é se obrigar a ser um total estranho para a pessoa com quem você se deita, toda noite, e acorda ao lado dela? Eu gostava de te ver quando você acabava de acordar. Seus longos cabelos – eu sempre adorei seus cabelos longos, você os cortou? - bagunçados, enrolados na minha mão direita. Por algum motivo, eu sempre adormecia com a mão em seus cabelos. Não sei se você gostava. Nunca perguntei, você nunca falou. Parecia estar sempre atento a tudo o que eu dizia. Balançava a cabeça, mas não falava nada. Naquela noite, você falou. Querida? Querida? Você está chorando, chorando muito. Estou tentando te acordar, o que houve? Não consigo parar de chorar, não consigo falar. Você me abraçou. Abraçou tão forte, que fiquei até sem ar. Não pare de me abraçar, não pare. Querida, estou aqui. Fale comigo. Prometa que vai dizer adeus. Você ficou calado. Foi um adeus? Eu adorava quando você me chamava de querida. Eu tive filhos? Eu não consigo me lembrar. Eu me lembro de que não queria ter. Sempre adorei crianças, mas não queria ser mãe. Não sei quanto tempo faz que estou aqui. Não sei quanto tempo faz desde que nos separamos. Não sei quanto tempo desde a última vez em que votei. Eu adorava militar. Era minha vida. Era nossa vida. Você não militava comigo, mas dizia que me apoiava, e não me repreendia por acreditar Naqueles ideais. Você dizia que alguém tinha de acreditar, e se esse alguém era eu, você entendia, e se orgulhava de mim. Queria que você soubesse que eu parei de fumar. Você parou? Às vezes, me pergunto se você já veio aqui me visitar. Eu não lembro. Você me perdoa por não lembrar? Ainda não perdi aquela mania de me martirizar. Você dizia que eu deveria me permitir errar. Eu não me permitia. Não lembro qual foi o último filme que vimos no cinema. Godard ainda vive? Tanto tempo olhando para essas paredes brancas... As paredes brancas me lembram você. Elas são discretas, silenciosas. Tenho medo delas. Tenho medo do silêncio. Sempre tive. Mas eu, também, tenho medo de barulhos. Aqui se aprende a ter medo de tudo. Estou com medo das pessoas de branco que entraram aqui. Não posso ver o rosto delas, porque elas estão usando uma máscara. Elas estão se aproximando de mim. Não tenho para onde correr. E, se corresse, nem saberia por que. Ainda não aprendi a usar os porquês. Nem a respondê-los. Sempre acreditei que se um dia conseguisse respondê-los, não seria um bom sinal. Sem questionamentos, a vida perde o propósito. A minha ainda não perdeu, mas eu sinto que estou perdendo minha visão. As pessoas de branco, na minha frente, começaram a ficar borradas. Elas não se parecem, nem um pouco, com uma pintura surrealista. Não posso contar com um Salvador Daqui. Elas estão se aproximando de mim. Eu estou em uma cama. Elas estão com alguns aparelhos. Esses aparelhos estão contra meus seios. Tento descobrir algo pelos olhos deles, mas não consigo. Elas são indiferentes, parecem estar acostumadas à situação, seja ela qual for. Eu não estou. Eu não me acostumo a nada. Não me acostumei a esse lugar. Mesmo depois de tanto – é tanto?- tempo aqui, ainda não me acostumei. As pessoas de branco estão se afastando. Elas estão indo embora. Vão me deixar aqui. Sozinha. Para sempre. Eu quero um gole de café.[/align]
 
Ainda não descobri quem eram as pessoas de branco. Almas desencarnadas de propaganda de espiritismo? Enfermeiros de um sanatório? Camisa de força ou (camisa de vênus) exame preventivo de câncer de mama?

A promessa de dizer adeus é um tanto masoquista. Ou um pedido formalizador, pra não ter surpresa.
 

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