Não são inimigos mas se comportam de forma ofensiva para esses povos. Lado a lado com críticas teológicas existe, e isso é coisa observável no Brasil, muita ignorância desses seitas menores do caráter específico da Ortodoxia e da identidade nacional, o que acaba gerando muito desconforto. Ainda mais nesse caso, com pessoas que nasceram e se criaram na mesma fé de seus avós, e isso por séculos e séculos.
Eu não defendo esse tipo de 'abordagem'. Só achei engraçado, rs. Mas eu compreendo qual ultrajados essas coisas deixam os ortodoxos.
Sobre isolacionismo, isso é um mal entendido. Proselitismo não é a mesma coisa que evangelização. A evangelização é uma exigência natural da fé cristã: 'Ide, pois, e ensinai a todas as nações; batizai-as em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo.' É preciso, é essencial pregar o Evangelho e foi assim que a Igreja se expandiu. Foi assim que o Apóstolo Paulo evangelizou a Grécia, que São Constantino cristianizou o Império, que Santa Nina Igual-aos-Apóstolos levou a fé cristã à Georgia, que São Vladimir de Kiev trouxe o Evangelho à Rússia, que os Santos Cirilo e Metódio Iguais-aos-Apóstolos levaram a fé cristã aos povos eslavos.
O proselitismo é uma deturpação da evangelização. Proselitismo é um desvio formal e contextual. É formal porque em vez de se oferecer a fé como uma possibilidade de forma honesta e através de um diálogo sincero, ele é oferecido de forma violenta, com propagandística, com poluição visual e sonora, com a invasão das consciências e do cotidiano com mensagens e conteúdos religiosos invasivos, colocados de forma profana, penetrantes através de meios de comunicação de massa. O desvio se torna contextual quando, junto com o desvio formal, se verifica que este é realizado em países já cristianizados, ou seja, lugares onde, teoricamente, já há cristianismo consolidado.
Some-se a isso circunstâncias dogmáticas, enfrentamento de tradições, toda uma série de conflitos, e nem todos estritamente teológicos, que opõe tradições solidamente cristãs a criticismo de cristãos que se julgam corretores, novos intérpretes de um novo e profético cristianismo. Já viu as críticas dos evangélicos radicais no Brasil ao catolicismo romano? Já viu o teor dessas críticas? O tipo de enfrentamento? Agora transporte isso para países de maior isolamento civilizacional e de uma tradição cristã muito mais arraigada, profunda e bem estabelecida em sua organicidade nacional, étnica e eclesial que essa tradição católica tíbia dos países latinos. Percebe?
A evangelização ortodoxa sequer se imagina penetrando em territórios já cristianizados, mesmo que formado de grupos e comunidades cismáticas e até heréticas. Isso é padrão na Ortodoxia. A Igreja Ortodoxa jamais evangelizou povos cristãos, porque isso é uma contradição em termos, não se evangeliza quem já conhece o Evangelho. Mesmo um Evangelho heterodoxo é Evangelho e isso sempre foi muito nitidamente percebido, vivido e praticado pelos Padres da Igreja medieval, seja bizantina seja eslava. E isso subentende certa unidade nacional-religiosa. Para os ortodoxos, a simples presença de atividade 'missionária' romanista em seus países é puro uniatismo e as razões são óbvias: porque papista iriam querem evangelizar povos já evangelizados? Oras, porque não querem evangelizar nada, querem papistizar, latinizar, submeter essas comunidades às obediências, 'dogmas' e inovações latinas. Não estão preocupados com o bem estar espiritual e social dos povos orientais, mas com sua submissão, sua renúncia às tradições bizantinas e nacionais e isso é muito importante, viu, Gui, porque se esquece também que o uniatismo sempre viu a unidade imperial de Bizâncio como uma ameaça à hegemonia do discurso eclesial papista, não só pelo seu caráter ortodoxo, mas pelo seu caráter imperialmente ortodoxo, pela sua identidade trans-nacional, imperial, de uma unidade orgânica de povos e culturas diversas compartilhando a mesma fé, a mesma unidade espiritual. Inicialmente Roma era parte dessa comunhão, dessa ecumene, mas muito antes do cisma já estavam em 'cisma ' político e cultural pelos próprios eventos que determinaram a gênese do cristianismo ocidental: sua formação original e independente sob Santo Agostinho, em tudo que sua ideia de cristianismo divergia da Tradição dos Padres da Igreja indivisa, e pela catástrofe civilizacional que foi a queda do Império e sua 'transferência' cultural e religiosa para aquela forja de Império que foi o reino dos francos sob Carlos Magno. Data daí as graduais prostituições a que o Ocidente caiu e que determinou a formação de sua face, de união, união não sem interesses resguardados, com um Império transplantado (com uma cultura clássica também artificialmente transplantada) e as várias tentativas de diminuir o Oriente aos olhos de todos, como para justificar uma clara falta de tradição e obscurecer uma forja civilizacional, um transplante artificial. Pra isso se transformar em discurso hegemônico foi um pulo, e esse pulo se vê claramente na época das Cruzadas, Florença e não tem mudado até os dias de hoje, só mudado de face. Adicione-se aqui que o que se chama de unidade religiosa nacional dos países ortodoxos, tão odiado sempre pelo Ocidente, foi uma reação de uma identidade 'ecumênica' bizantina comum nesses países, uma reação que foi uma importante mola propulsora dos movimentos de independência e é a essência de todo nacionalismo eslavo e não se exclua que na configuração do nacional-comunismo stalinista, tenha sido pouco importante essa identidade bizantino-ortodoxa. Há quem enxergue nos diálogos ecumenistas com Roma nada mais que o mesmo imperialismo papista de sempre, mas com outra roupagem, como para compensar a falência da cristandade, sua incapacidade de resistir às fissuras internas, a ruína da cristandade ocidental e sua substituição revolucionário pelos modelos ideológicos e filosóficos que correspondem ao que chamamos de Iluminismo, Esclarecimento, modernidade. Há quem diga que o laicismo, o individualismo, o relativismo nacional (e trans-nacional, com a queda dos Impérios orgânicos e sua substituição por projetos democráticos que mascaram a dinâmica imperialista), étnico, político, social e religioso, enfim, essas pragas modernas não são tanto reações ao domínio papal ou ao teocentrismo medieval como sua consequência natural, a consequência natural da longa tradição de prostituições das ideias tradicionais de Igreja e de Império a que Roma se prestou. Essa era a posição dos pensadores eslavófilos na Rússia, inclusive do próprio
Fiódor Dostoievski.
E embora tal agenda especificamente latinista (se é que se pode ainda falar de agenda depois dos séculos XVII e XVIII) não possa se estender ao proselitismo protestante, esse é sim proselitista pelo simples fato de se colocar como uma evangelização dos já evangelizados, mas mais 'autêntica', portanto, que se arrogava o direito de 'corrigir' os 'erros gregos' pela mesma lógica com que se enfrentava os 'erros latinos', isto é, o proselitismo protestava contra a Ortodoxia enquanto lhe ignorava totalmente os traços mais distintivos, crendo se tratar da mesma coisa que o catolicismo mas mais fiel à sua mítica 'Igreja primitiva' pela recusa em se submeter ao Vaticano. Em outras palavras, desde os primeiros contatos entre Ortodoxia e protestantismo, a primeira é rebaixada, relativizada, tem sua identidade diminuída e deturpada por olhos que aprenderam a entender o cristianismo e sua teologia através do prisma exclusivamente ocidental dos embates dos séculos XVI e XVII entre Roma e luteranismo e calvinismo. E isso é ou não é prova mais que suficiente para se ver que mesmo aqui se repete, embora em outro sentido, a velha história de sempre. A história das relações do Ocidente com a Ortodoxia é a história mais da incompreensão, desconhecimento e ignorância da identidade especificamente ortodoxa desta, como de suas faces históricas, sociais, políticas e religiosas. A Ortodoxia não é vista nem por Roma nem pelos protestantes (embora isso seja mais visível na história das relações do protestantismo com o Oriente) como ela mesma, mas é reificada, objetificada, tratada nunca como o que ela é, a Igreja de Cristo, mas como aquilo que querem que ela seja, o que esperam dela, o que dela entendem na sua interpretação reducionista, ocidental, do cristianismo, a saber, a comunidade cismáticos teimosos em se submeter ao 'vigário de Cristo' ou a comunidade daqueles bravos que se recusaram a se submeter ao papismo mas continuam seguindo tradições 'humanas', 'anti-evangélicas', 'presas de superstições'. Em tudo, em tudo, se vê a Igreja sempre coisificada e diminuída por essa visão ocidentalista de toda a história europeia e do cristianismo em geral. Foi essa a natureza (e, em grande medida, ainda é) a natureza das relações do cristianismo ocidental para com o oriental, a de que se está diante de algo exótico e incompreensível, mas que deve, forçosamente, ser entendido, submetido, enfiado dentro de quadros explicativos, definidores, limitadores do pensamento racionalista ocidental, ou pelo menos, de sua teologia. Os caracteres especificamente orientais são escarnecidos, relativizados ou mesmo negados, é o famigerado 'bizantinismo'. E o pior é que a reação ortodoxa a toda essa reificação é ainda mais grotesca, é auto-reificante, a Igreja se esquece de suas heranças patrísticas e as confina à vida ascética nos monastérios e segue totalmente a agenda ocidental, compreende a si mesma como falha em uma teologia 'irracional' e prossegue, indiscriminada e irrefletidamente, o caminho ocidental de teologizar, esquecendo os aspectos característico do fazer teológico enquanto vida de oração, permitindo que algo da blasfema distinção entre vida espiritual e vida teológica (teologia como mera atividade acadêmica, uma ciência como as outras, mesmo que a principal, escolaticismo), enfim, toda uma invasiva e destrutiva influência da teologia ocidental, do modo ocidental de teologizar, na teologia oriental que vai perdendo sua identidade e pior: sua integração à tradição ascética e monástica da Igreja. Todo esse processo, que vai da renegação das heranças bizantinas e a paulatina assimilação da cultura religiosa ocidental anda a par com a assimilação das ideias ocidentais e do modo de vida ocidental como um todo, uma verdadeira colonização cultural de dentro, que se inicia, na Rússia com o tsar Ivan, o Terrível e só é interrompida com a Revolução bolchevique, em 1917, tendo suas mais terríveis e implacáveis fases no reinado do tsar Pedro, o não-tão-Grande, o grande absolutista, lacaio de ideias políticas e religiosas ocidentais, em suas reformas ocidentalizantes que marcaram a identidade da Rússia, e da ortodoxia russa. Essa ocidentalização foi descrita pelo teólogo ortodoxo russo,
Pe. Georges Florovsky, como o 'Cativeiro Ocidental da Ortodoxia', cativeiro que se estendeu por todo o período moderno e que só, recentemente, com o trabalho de neo-síntese patrística dele de outros colegas seus, como os teólogos
Vladimir Lossky, Paul Evdokimov,
Sergei Bulgakov, John Meyendorff,
John Romanides, dentre outros, se fragmenta e as luzes de um retorno às fontes da tradicional teologia oriental se faz presente e fulminante, de capital importância nas discussões ecumênicas. Esse processo de 'cativeiro' está muito bem explicado no livro do Pe. Florovsky,
'Ways of Russian Theology', de grande importância historiográfica.
A Ortodoxia só chegou ao Ocidente por conta da imigração na época da Segunda Guerra e dos tempos de comunismo, o que faz muitos incautos dizerem que só o cristianismo ocidental era 'criativo', que o Oriente era 'inativo', ou orgulhoso, fechado em si mesmo e que esse isolacionismo tinha caráter ideológico. Pode ser que até tivesse mas se esquecem algumas coisinhas:
1-O proselitismo/evangelização ocidental SEMPRE andou de mãos dadas com o colonialismo ou, pelo menos, com algo que tivesse minimamente a ver com os interesses geopolíticos ocidentais, logo, se há politização no discurso isolacionista ortodoxo (supondo que tal discurso exista, o que raramente se verificou), ele não é menor na expansão da fé cristã a partir do Ocidente europeu mercantilista e capitalista. Você, Fela, sabe disso melhor do que eu. As intenções do Papa poderiam ser as mais puras possíveis, mas nunca a ocidentalização colonialista vinha desacompanhada de cristianização violenta, por vezes até forçada, e se o colonialismo tinha suas justificativas ideológicas naquela ideia de trazer a civilização para os povos dominados, a religião era parte essencial nesse processo.
2-É frequentemente esquecido que a situação do Oriente pós-cisma praticamente inviabilizava missões. Bizâncio estava acuada de todos os lados, de um havia a ameaça constante e terrível do Império Otomano, de outro as ambições ocidentais unidas pela argamassa civilizacional do papismo. De um lado, só se poderia esperar guerra e morticínio, submissão, escravidão e martírio. do outro, um compromisso frágil, uma amizade congelada por séculos de afastamento e estrangulamento cultural, ofertas de união como condição para apoio militar, ou seja, uma aliança interesseira e insincera. No final, sabemos o que aconteceu. O povo e a maioria do clero rejeitou comprometer a fé e o Ocidente não hesitou em nos virar as costas, e isso não antes de invadir nossa Cidade, blasfemar nossos altares, ofender a Cristo. Veio o jugo otomano e séculos de opressão e martírio foram preferidos a uma existência confortável em aliança com uma 'Igreja' que de ortodoxa não tinha nada há tempos. E aí, comunismo, que matou, torturou e perseguiu mais que todos os outros inimigos de Cristo, juntos. A maior preocupação da Ortodoxia foi sobreviver, proteger seu povo e suas tradições do escárnio e da blasfêmia, manter sua unidade nacional e religiosa contra os ataques e projetos hegemônicos do Ocidente. Só poderiam haver missões em países relativamente livres de opressão, como o Império Russo. E o que aconteceu na Rússia? Aconteceram diversas missões entre os séculos XVII e XIX, ou seja, logo no começo da consolidação da Rússia imperial após o jugo tártaro-mongol e terminando apenas com a catástrofe bolchevique, e para quem foram direcionadas tais missões? Não foram para romanistas e para protestantes, nunca, nem mesmo nas etapas mais grosseiramente imperialistas de sua história, a Rússia sequer cogitou na possibilidade de evangelizar povos cristãos, porque isso é impossível, está determinado nos cânones da Igreja antiga, quando a Igreja tinha de se defrontar com os casos de recepções em seu seio de pessoas e até comunidades inteiras advindas de cisma e heresias.
A Rússia foi para os pagãos. Missões financiadas por recursos da própria Igreja, de burgueses piedosos, de doações do povo simples, de pequenos e médios proprietários de terra financiaram centros missionários na Crimeia, na fronteira oriental com a Sibéria, no interior da Rússia, até Sevastopol e além, até o Alaska. E daí se estenderam até mesmo aos E.U.A., sim, as mais bem sucedidas comunidades ortodoxas russas dos Estados Unidos não eram de imigrantes, mas de nativos esquimós e estadunidenses convertidos à Ortodoxia por essas missões russas, principalmente graças a nomes como
São John Maximovitch de São Francisco e Xangai, o Apostólo da China e das Américas e de
São Herman, do Alasca. No que se refere à Rússia oriental, essas missões foram essenciais para recuperar e reintregrar, espiritual e culturalmente, regiões de uma heterogeneidade imensas, pagãos siberianos, muçulmanos tártaros, quirguizes, kazanianos etc, e nessa integração, mesmo que pouco profunda inicialmente, nunca se foi violada a liberdade religiosa e de consciência desse povos, nem foram violentadas suas culturas e identidades. A comunidade ortodoxa na China prosperou até ser quase inteiramente extirpada pelo regime maoísta mas sobreviveu e hoje volta a prosperar.
ícone dos mártires chineses
Alaska:
Sibéria: