Pips
Old School.
Escapulário
por Pips
Há um tempo atrás quando ela e eu estavámos por aí a andar, olhando para o alto como se poesia e vida fossem feitos da mesma essência. Como se o céu tivesse uma resposta, como se ambulantes, gravatas ou caminhões soubessem a razão. Dentre todos indigentes que furtam nossa atenção, nos perderíamos um do outro mesmo de mãos dadas. Observava seu passar de mão pelo cabelo, primeiro fazendo um rabo e depois arrumando a franja gentilmente, irritada pedia para eu parar com o que estava fazendo. Fazia frio, e como fazia, mas mesmo assim não queria se encostar em mim para se aquecer. Parecia muito bem aquecida com seu cachecol cor de abóbora, sua jaqueta revestida e com pêlinhos no capuz e luvas pretas com pequenos detalhes brancos nas articulações dos dedos. Ainda permanecia com meu gorro de alguma marca que não me lembro, uma blusa de moletom a qual ela odiava e sem luvas, confesso que minhas mãos estavam geladas. Pedi para que tomássemos um café para acompanhar a minha vontade de fumar. Mesmo não sendo um viciado ou dependente do tabaco, nos dias de frio, para mim, eles combinam com um bom café coado.
Ao sentar perto de uma lareira improvisada na cafeteria, ambos aliviaram o peso de tantas roupas de frio. Ela tirou as luvas e eu, por impulso, tomei a sua palma como se a fosse ler. Não que dominasse a arte da quiromancia. Longe disso. Queria tocar sua mão gelada de qualquer forma antes que o chá, que havia pedido à pouco, a esquentasse. Minha relação com mãos é muito forte; faço uma análise detalhada de personalidade através do toque e do dançar pela palma e linhas. Nada mágico, apenas uma intuição bem forte sobre a pessoa. Outra vez durante um casamento, no momento da valsa, peguei a mão da madrinha que fazia par comigo e logo a soltei. Mão suada. Não que fosse nojento, também, mas era uma personalidade frágil e sem caráter, a procura de algo que não quer de uma maneira que não gosta. Teve que se contentar com a minha mão em sua cintura, um passo pouco usual para esse tipo de ocasião.
Porém a mão da minha companhia era um desejo quase platônico. Analisei as cores com que pintava as unhas, o único anel que usava esporadicamente, como segurava as duas juntas quando estava nervosa, a inquietude quando estava incomodada, o jeito leve de escrever e a palma branca como um lenço de cetim. Faltava mesmo era tocar suas mãos e sentir as linhas e o lenço de cetim com minha própria pele, trocar calor, força ou alguma reação química que fosse florescer uma paixão dentro dela ou de mim, tanto faz. Talvez eu já estivesse querendo aquilo como uma prova para dizer: "É ela". E nos conhecíamos há um bom tempo, antes mesmo de ficar frio e antes mesmo do calor que veio antes desse frio. Era bastante tempo mesmo e em nenhuma dessas oportunidades consegui tocar sua mão. Tinha algo nela sempre, além da sua vontade de escapar do meu toque, que não a deixava a vontade. Uma vez escorreguei lentamente a minha mão enquanto ela estava distraída e fui fisgado, por uma coincidência cretina, pelo olhar dela. Ela veio e colocou mão sobre mão, mas não deixou eu passear e dançar em sua palma, ela estava no controle, apenas deitou sua cabeça no meu ombro e ficamos um bom tempo sem falar. Claro que notei que estávamos quase sendo imitados por um casal duas mesas atrás. Uma menina de cabelo cacheado com uma cor que me lembrava chocolate, olhava diretamente para nós. Me senti acuado e confortável. Contemplei aquela noite quente como nenhuma outra. Verdade que isso deve ter acontecido com várias pessoas, mas só de sentir o peso da cabeça dela em meu ombro foi uma satisfação.
Dessa vez ela deve ter percebido minha intensão e não lutou contra as minhas mãos, tive certeza que as suas eram leves e macias. As unhas estavam pintadas de uma cor bem clara como as de uma noiva. Ela me fintou com um sorriso e esperou que eu retribuísse. Olhei de volta meio sem jeito e continuei a minha valsa pela palma, sentindo cada linha sem pressa. O café chegou e interrompeu o meu pensamento, tinha certeza que iria falar algo muito bonito depois que cheguei ao fim da linha da vida. Minha mente ficou vazia, muito vazia mesmo, não é a toa que dizem que o nada é imenso, mas uma coisa eu tive certeza quando olhei de volta para ela após o primeiro gole de café: "Meu amor por você é intenso e imenso como o nada, bem porque o nada eu não sei explicar e não consigo nada que me faça declarar o que sinto por você". A reação foi totalmente oposta ao que imaginava, meio fantasiosa esperava um pulo no pescoço e um beijo depois de soltar uma frase, mesmo que sem querer, muito poética. Ela virou e colocou o dedo na minha boca, "O toque na mão é mais intenso e imenso que o nada", ela disse, "Não precisa me falar o que sente, porque eu já sabia". Fiquei espantado com tal declaração, entretanto ela parou de falar, talvez esperando uma reação explosiva para perguntar se ela sentia o mesmo ou se eu estava desperdiçando meu tempo com algo idealizado.
Concordei com a cabeça e fiquei em silêncio, tomei mais um gole do meu café e acendi o cigarro, atrasado. Nós dois continuamos em profunda admiração para as chamas da lareira improvisada. A lareira fazia estouro de pipoca e algumas cinzas saltavam para fora. Nos seus olhos cor de mel eu vi uma distância sem fim, algo perdido que se nesse momento eu a tocasse ela choraria. Gostaria de ter tal intimidade para dar-lhe meu ombro para chorar. Mas acontece que fiquei comovido com tal momento, não era a primeira vez que esses olhos fintavam o vácuo buscando uma resposta, porém a busca parecia muito mais intensa e íntima. Era uma análise de si própria, vontade forte de se descobrir como desconhecida de si mesma. Pelas mãos não a conheci, foi ao contrário, ela me descobriu e me jogou de lado por temer que não a entendesse. Como se ela não quisesse e ao mesmo tempo desejasse, intimamente, um par para despejar seus medos. Eu era um de seus medos, talvez um de seus amores, e possivelmente os dois juntos, confusos como deve ser um carinho. Enquanto o chá de camomila curtia a água, deixei minha caneca de café de lado apagando o cigarro dentro. Ao invés de puxá-la como um adolescente para tentar, erroneamente, beijá-la, me aproximei e dei meu ombro. Ela virou o rosto e encostou em meu peito. Senti as úmidas lágrimas no casaco, talvez fosse impossível que penetrassem tantos panos, mesmo com tanto desespero engolido com os tempos. Amor declarado e confirmado é uma responsabilidade mais pesada do que qualquer paixão bandida.
Passaram pouco mais, ou menos, de três horas de puro silêncio. Ambos confortados. Não tocamos no assunto das mãos ou dos sentimentos, saímos da frente da lareira e ela apenas estendeu a mão. Era um escapulário sem um dos lados com o desenho de um anjo e uma escrita em latim atrás, preso em uma corrente de ouro bem fina. A outra parte eu reconhecera em seu pescoço quando ela mordia ansiosa por alguma coisa, "Não tenho nada para te dar em troca". Gentilmente colocou no meu pescoço e senti um arrepio, não porque a corrente deveria estar gelada, mas por estar quente como a palma de sua mão. Ela saiu andando, "Isso não é nada", me deixando para trás com um sonho. Levando os meus com ela. Nunca mais a vi ou a toquei. O que nos liga é essa pequena corrente que guardo dentro de uma gaveta, repleta de cartas não enviadas, trancada a chave. Não ando com ele em meu pescoço com medo de perder assim como perdi a outra parte. Contemplo ele de tempos em tempos, ora de olhos abertos ora com eles fechados na lembrança, cuidadosamente tentando mapear seu sorriso na minha memória.
texto original publicado em 26 de Setembro de 2007
por Pips
Há um tempo atrás quando ela e eu estavámos por aí a andar, olhando para o alto como se poesia e vida fossem feitos da mesma essência. Como se o céu tivesse uma resposta, como se ambulantes, gravatas ou caminhões soubessem a razão. Dentre todos indigentes que furtam nossa atenção, nos perderíamos um do outro mesmo de mãos dadas. Observava seu passar de mão pelo cabelo, primeiro fazendo um rabo e depois arrumando a franja gentilmente, irritada pedia para eu parar com o que estava fazendo. Fazia frio, e como fazia, mas mesmo assim não queria se encostar em mim para se aquecer. Parecia muito bem aquecida com seu cachecol cor de abóbora, sua jaqueta revestida e com pêlinhos no capuz e luvas pretas com pequenos detalhes brancos nas articulações dos dedos. Ainda permanecia com meu gorro de alguma marca que não me lembro, uma blusa de moletom a qual ela odiava e sem luvas, confesso que minhas mãos estavam geladas. Pedi para que tomássemos um café para acompanhar a minha vontade de fumar. Mesmo não sendo um viciado ou dependente do tabaco, nos dias de frio, para mim, eles combinam com um bom café coado.
Ao sentar perto de uma lareira improvisada na cafeteria, ambos aliviaram o peso de tantas roupas de frio. Ela tirou as luvas e eu, por impulso, tomei a sua palma como se a fosse ler. Não que dominasse a arte da quiromancia. Longe disso. Queria tocar sua mão gelada de qualquer forma antes que o chá, que havia pedido à pouco, a esquentasse. Minha relação com mãos é muito forte; faço uma análise detalhada de personalidade através do toque e do dançar pela palma e linhas. Nada mágico, apenas uma intuição bem forte sobre a pessoa. Outra vez durante um casamento, no momento da valsa, peguei a mão da madrinha que fazia par comigo e logo a soltei. Mão suada. Não que fosse nojento, também, mas era uma personalidade frágil e sem caráter, a procura de algo que não quer de uma maneira que não gosta. Teve que se contentar com a minha mão em sua cintura, um passo pouco usual para esse tipo de ocasião.
Porém a mão da minha companhia era um desejo quase platônico. Analisei as cores com que pintava as unhas, o único anel que usava esporadicamente, como segurava as duas juntas quando estava nervosa, a inquietude quando estava incomodada, o jeito leve de escrever e a palma branca como um lenço de cetim. Faltava mesmo era tocar suas mãos e sentir as linhas e o lenço de cetim com minha própria pele, trocar calor, força ou alguma reação química que fosse florescer uma paixão dentro dela ou de mim, tanto faz. Talvez eu já estivesse querendo aquilo como uma prova para dizer: "É ela". E nos conhecíamos há um bom tempo, antes mesmo de ficar frio e antes mesmo do calor que veio antes desse frio. Era bastante tempo mesmo e em nenhuma dessas oportunidades consegui tocar sua mão. Tinha algo nela sempre, além da sua vontade de escapar do meu toque, que não a deixava a vontade. Uma vez escorreguei lentamente a minha mão enquanto ela estava distraída e fui fisgado, por uma coincidência cretina, pelo olhar dela. Ela veio e colocou mão sobre mão, mas não deixou eu passear e dançar em sua palma, ela estava no controle, apenas deitou sua cabeça no meu ombro e ficamos um bom tempo sem falar. Claro que notei que estávamos quase sendo imitados por um casal duas mesas atrás. Uma menina de cabelo cacheado com uma cor que me lembrava chocolate, olhava diretamente para nós. Me senti acuado e confortável. Contemplei aquela noite quente como nenhuma outra. Verdade que isso deve ter acontecido com várias pessoas, mas só de sentir o peso da cabeça dela em meu ombro foi uma satisfação.
Dessa vez ela deve ter percebido minha intensão e não lutou contra as minhas mãos, tive certeza que as suas eram leves e macias. As unhas estavam pintadas de uma cor bem clara como as de uma noiva. Ela me fintou com um sorriso e esperou que eu retribuísse. Olhei de volta meio sem jeito e continuei a minha valsa pela palma, sentindo cada linha sem pressa. O café chegou e interrompeu o meu pensamento, tinha certeza que iria falar algo muito bonito depois que cheguei ao fim da linha da vida. Minha mente ficou vazia, muito vazia mesmo, não é a toa que dizem que o nada é imenso, mas uma coisa eu tive certeza quando olhei de volta para ela após o primeiro gole de café: "Meu amor por você é intenso e imenso como o nada, bem porque o nada eu não sei explicar e não consigo nada que me faça declarar o que sinto por você". A reação foi totalmente oposta ao que imaginava, meio fantasiosa esperava um pulo no pescoço e um beijo depois de soltar uma frase, mesmo que sem querer, muito poética. Ela virou e colocou o dedo na minha boca, "O toque na mão é mais intenso e imenso que o nada", ela disse, "Não precisa me falar o que sente, porque eu já sabia". Fiquei espantado com tal declaração, entretanto ela parou de falar, talvez esperando uma reação explosiva para perguntar se ela sentia o mesmo ou se eu estava desperdiçando meu tempo com algo idealizado.
Concordei com a cabeça e fiquei em silêncio, tomei mais um gole do meu café e acendi o cigarro, atrasado. Nós dois continuamos em profunda admiração para as chamas da lareira improvisada. A lareira fazia estouro de pipoca e algumas cinzas saltavam para fora. Nos seus olhos cor de mel eu vi uma distância sem fim, algo perdido que se nesse momento eu a tocasse ela choraria. Gostaria de ter tal intimidade para dar-lhe meu ombro para chorar. Mas acontece que fiquei comovido com tal momento, não era a primeira vez que esses olhos fintavam o vácuo buscando uma resposta, porém a busca parecia muito mais intensa e íntima. Era uma análise de si própria, vontade forte de se descobrir como desconhecida de si mesma. Pelas mãos não a conheci, foi ao contrário, ela me descobriu e me jogou de lado por temer que não a entendesse. Como se ela não quisesse e ao mesmo tempo desejasse, intimamente, um par para despejar seus medos. Eu era um de seus medos, talvez um de seus amores, e possivelmente os dois juntos, confusos como deve ser um carinho. Enquanto o chá de camomila curtia a água, deixei minha caneca de café de lado apagando o cigarro dentro. Ao invés de puxá-la como um adolescente para tentar, erroneamente, beijá-la, me aproximei e dei meu ombro. Ela virou o rosto e encostou em meu peito. Senti as úmidas lágrimas no casaco, talvez fosse impossível que penetrassem tantos panos, mesmo com tanto desespero engolido com os tempos. Amor declarado e confirmado é uma responsabilidade mais pesada do que qualquer paixão bandida.
Passaram pouco mais, ou menos, de três horas de puro silêncio. Ambos confortados. Não tocamos no assunto das mãos ou dos sentimentos, saímos da frente da lareira e ela apenas estendeu a mão. Era um escapulário sem um dos lados com o desenho de um anjo e uma escrita em latim atrás, preso em uma corrente de ouro bem fina. A outra parte eu reconhecera em seu pescoço quando ela mordia ansiosa por alguma coisa, "Não tenho nada para te dar em troca". Gentilmente colocou no meu pescoço e senti um arrepio, não porque a corrente deveria estar gelada, mas por estar quente como a palma de sua mão. Ela saiu andando, "Isso não é nada", me deixando para trás com um sonho. Levando os meus com ela. Nunca mais a vi ou a toquei. O que nos liga é essa pequena corrente que guardo dentro de uma gaveta, repleta de cartas não enviadas, trancada a chave. Não ando com ele em meu pescoço com medo de perder assim como perdi a outra parte. Contemplo ele de tempos em tempos, ora de olhos abertos ora com eles fechados na lembrança, cuidadosamente tentando mapear seu sorriso na minha memória.
texto original publicado em 26 de Setembro de 2007